terça-feira, 21 de março de 2017

SAUDADES DA RAQUEL



                 Saudades da Raquel - no seu aniversário

                            Minha filha Raquel, que te partiste
                                          tão cedo, desta vida, descontente:
                                          repousa lá no Céu, eternamente,
                                          e viva eu cá na Terra sempre triste.

                                          Se lá no assento etéreo aonde subiste
                                          lembrança desta vida se consente,
                                          não te esqueças daquele amor ardente
                                          que em meus olhos de pai tu sempre viste

                                          E se vires que pode merecer-te
                                          alguma coisa, a dor, que me ficou
                                          da mágoa sem remédio, de perder-te,

                                           Roga a Deus, que teus anos encurtou,
                                           que tão logo daqui me leve a ver-te,                 
                                           quão cedo de meus olhos te levou!

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         I - Continuando viva entre nós, por essa humilde, invisível e misteriosa presença de cada dia, de cada hora, de cada momento, com que impregnamos de esperança a nossa saudade, como também a grande alegria da certeza de que ela, na Casa do Pai de todos os pais, passou a velar por nós, agora na plenitude de sua vida com Deus e com os santos do Céu. Foi  da Raquel bíblica que escolhi o nome para minha filha, ao batizá-la.
            Raquel, do hebraico "hael" (ovelha), era filha de Labão, irmão de Rebeca, e pertencia à linhagem do patriarca Abraão. Conheceu Jacó à beira do poço da aldeia e os dois logo se apaixonaram à primeira vista. Labão contratou Jacó para trabalhar durante sete anos para ele, em troca da mão de sua filha Raquel. Começou assim a história das doze tribos de Israel, o Povo de Deus.
            O texto bíblico mostra-nos Raquel como a mãe de José, o patriarca de uma grande tribo do Povo de Deus. - "Então Deus se lembrou de Raquel. Deus atendeu às preces dela, tornando-a fecunda. Ela concebeu e deu à luz a um filho, e disse: - "Deus retirou a minha desonra". Deu ao filho o nome de José, e rogou que Deus lhe desse mais um filho.
            A história da Raquel bíblica revela que os filhos dela com Jacó nasceram sempre com a ajuda direta de Deus, que interveio na vida dela e curou-lhe a esterilidade. Como nos conta a Bíblia, Deus se lembrou de Raquel, e ela deu à luz José, o patriarca da grande tribo que recebeu as bênçãos de Deus e que se destacou entre seus outros irmãos.
            A história das duas mulheres de Jacó, Lia e Raquel, personagens de um dois mais belos sonetos da língua portuguesa, pela pena mágica de Camões, e mães dos doze filhos que formaram as doze tribos de Israel, vem contada nos capítulos 29 a 31 do "Gênesis". Jacó trabalhava havia sete anos para seu tio Labão. Seu "salário" seria o casamento com a prima mais jovem, Raquel. Labão, porém, seguiu os costumes da região e, na noite de núpcias, introduziu furtivamente na tenda nupcial a filha mais velha, Lia.
            O autor bíblico diz que Lia era odiada, mas não revela quem a odiava. O pai a entregou a um homem que não a amava. A mulher que Jacó amava era realmente sua prima Raquel. Nas sociedades patriarcais a posição das mulheres era determinada pelo número de seus filhos. Lia tornou-se mãe de quatro. Com o nascimento de cada filho ela esperava ganhar o amor de Jacó, mas em vão. Foi uma mãe feliz pelos filhos que teve, mas mal amada pelo marido.
            A Bíblia narra com detalhes os nascimentos dos descendentes de Lia e de Raquel. Elas são as grandes matriarcas de Israel. Infelizmente, não havia meios para Lia, a irmã mais velha e menos atraente, de segurar o amor de seu marido. Até o fim da vida, Raquel foi a predileta de Jacó.
            Retornando ao nosso tempo atual: assim como para o tão grande amor de sua filha Isabela, de seus irmãos Carlos e Júnior, assim também foi tão curta a vida de Raquel, minha filha inesquecível. Mas, como a Raquel bíblica, que deixou dois filhos que foram os fundamentos do Povo de Israel, assim também minha falecida filha Raquel deixou uma filha, Isabela, que na sua radiosa personalidade, é a esperança e a alegria de seus velhos e sofridos avós.

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                                 II - Que Deus a tenha na Sua Paz

            17 de março de 2017 - Se minha filha Raquel fosse ainda viva até essa data , iria completar 50 anos de idade. Não podemos festejar seu aniversário natalício, apenas chorar, desconsolados, a sua ausência física dentre nós. A morte inexorável a levou para a Casa do Pai/Mãe de todos os pais e mães que ainda peregrinam pelas estradas deste mundo.
            Ela separou-se fisicamente de nós, mas passou a viver mais intensamente com sua filhas Isabela, com seus irmãos Carlos e Aroldo Júnior, e com seus chorosos pais, após o seu falecimento em 21 de agosto de 2010, em hospital de São José dos Pinhais, vitimada por insidioso câncer.
            Numa união misteriosa e singular no Espírito Santo, comunicada às coisas que deixou e aos acontecimentos do dia-a-dia em que viveu conosco por esse tão curto tempo, a verdade é que ela partiu para a eternidade, mas continua a viver conosco pela dor sem remédio da saudade.
           Sua morte fez com que a revivamos nos objetos em que tocou, nas vestes que deixou e que nós conservamos com carinho, na lembrança das palavras que com ela trocávamos, nos fatos alegres ou tristes que juntos vivemos, e agora até nos fatos que se seguiram à sua morte, e que nós lhe comunicamos diariamente na prece, e com ela conversamos como se estivesse ainda viva em nosso hoje solitário lar.
            A morte, destino de todos os viventes, a levou, mas a devolveu de novo a nós, banhada pela luz da Eternidade com Deus e pela gloriosa certeza de sua ressurreição NA morte, que é a Fé que anima e conforta seus pais, e que os mantém ainda vivos para cultuarem sua memóriabém a grande alegria da certeza de ela, na Casa do Pai de todos os pais, passou a velar por nós, agora na plenitude de sua vida com Deus e os santos do Céu.
            Nesta certeza, nós a temos sempre a nosso lado, em nossa vida de cada dia, velando por sua filha Isabela, por seus irmãos, por seus já idosos pais.
            Presença permanente nos labores do dia-a-dia, no silêncio e na solidão das noites indormidas, enxugando-nos as lágrimas da saudade que não passa.

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                          III - Vida para além da morte

            A morte de minha filha Raquel fez-me refletir sobre o seu sentido espiritual e, com isso, perguntar a mim mesmo: dentro da Fé cristão-católica que professo é possível uma visão positiva do fenômeno doloroso da Morte? E a Fé que me anima responde-me que sim, porque dentro da vida humana há uma chance única na qual homem e mulher, pela primeira vez, nascem totalmente ou acabam de nascer: na Ressurreição, que acontece justamente no instante da morte, como defendem os maiores teólogos da atualidade, contestando a doutrina tradicional, segundo a qual a Ressurreição só acontecerá no final dos tempos.
            Com isso, afirmo que a morte significa já o final dos tempos, o fim do mundo para a pessoa que morre. Na morte, homem e mulher entram num modo de ser que anula as coordenadas do tempo e passam para a atmosfera de Deus, que é a Eternidade. Já a partir deste ponto de vista se deve dizer que não é mais compreensível afirmar qualquer tipo de "espera", de "tempo intermediário" entre a morte e uma suposta Ressurreição no final dos tempos. Por isso, a "espera" pela Ressurreição no final dos tempos é uma representação mental inadequada ao modo de existir da Eternidade.
            Para acabar com esta concepção errada e muito comum, é preciso repetir sempre: na Eternidade não há tempo. A Eternidade é um eterno hoje, um eterno presente. Se na Eternidade não há tempo, como é que os mortos vão esperar o tempo final? O final dos tempos para a pessoa que morre é justamente o seu falecimento.
            Na morte, a pessoa, pela Ressurreição que acontece na morte, nem antes nem depois, entra no final dos tempos, e aí recebe a sua destinação final. Nesta concepção concordam os mais influentes teólogos dos tempos modernos.
            A morte sempre foi entendida como o fim da vida corporal. Ela é dolorosa e triste como um fim de festa ou como o derradeiro aceno de uma despedida.
            A morte é sim o fim da vida. Ela marca a ruptura de um processo. Como que criando uma cisão entre o tempo presente e a Eternidade. Mas ela cobre apenas um aspecto do ser humano: o biológico e o temporal. Homem e mulher constituem algo muito superior ao biológico, porque são mais do que um animal. São também superiores ao tempo, porque suspiram pela perenidade do amor e da vida.
            Homem e mulher são pessoa e, mais que isso, interioridade. Para eles a morte não é simplesmente um fim, mas um fim-plenitude, um fim-meta alcançada, o lugar do verdadeiro e definitivo nascimento, alcançado na Ressurreição. E eu tenho a firme convicção que a Ressurreição acontece no próprio instante da morte, como me ensinou o mestre em teologia, Frei Leonardo Boff.
Lembra-me a mulher grávida que, entre angústia, dor e esperança, segura o filhinho recém-nascido e murmura, agradecida: atingi meu fim: sou mãe!
            É nesta Fé que minha filha Raquel, alcançando na morte a sua Ressurreição, alcançou também o seu nascimento definitivo.
            Se a sua ausência física entre nós enche-nos de uma angustiosa e pungente tristeza, paradoxalmente, pela sua vida plenamente vivida, pela sua Caridade ardente por todos que a rodeavam, a certeza inabalável de que a Raquel descansa hoje no Reino de Deus, enche-nos também de uma radiosa  e prazerosa alegria...


                                        
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           IV - Descanse na paz do Senhor
           Neste 21 de agosto de 2013 , na Igreja Paroquial, durante a Santa Missa celebrada pelo Padre Alceu, em sufrágio da alma da Raquel, mais uma vez familiares, ex-companheiros de trabalho na Caixa Econômica Federal, e inumeráveis membros da comunidade paroquial, nos irmanamos na imorredoura saudade e no dolorido pranto por ocasião de mais um aniversário do falecimento de nossa inesquecível filha.
           A tristeza infindável que nos martiriza pela ausência física da pessoa amada é, paradoxalmente, aliviada pela alegria da certeza absoluta de que ela, pela sua vida cristãmente vivida, pela Caridade ardente que animava todo o seu relacionamento com as pessoas com quem convivia, descansa hoje na Bem-aventurança eterna, junto ao Pai de todas as vida.
           Com seu organismo debilitado pelo câncer que lhe corroía coluna vertebral, pulmões e cérebro, ela esperava a morte, com plena consciência, mas transfigurada pela resignação, pela acendrada confiança em Deus e pelo amor de toda a sua pequena família, que também sofria em comunhão com ela.
            Permanece a dor da saudade no coração de sua filha Isabela, de seus pais Aroldo e Cleusa, de seus irmãos Carlos  e Aroldo Júnior, que dedicam à saudosa Raquel este singelo poema nascido da dor, abrandada, porém, pela certeza de que ela repousa em paz junto ao "Abbá" de Jesus de Nazaré, junto ao Pai de todas as vidas:
                                                 Eu esperei a morte como se espera o Bem Amado
                                                 ignorava como ela viria
                                                 nem como viria
                                                 mas eu a esperava
                                                 e não havia medo nessa expectativa
                                                 havia somente ânsia e curiosidade
                                                 porque a morte do cristão é bela
                                                 porque a morte do cristão é uma porta
                                                 que se abre para mundos desconhecidos
                                                 mas imaginados
                                                 como o amor
                                                 que nos leva para um outro mundo
                                                 como o Amor
                                                 que nos promete uma outra vida
                                                 diferente da nossa
                                                 Eu esperei a morte como se espera o Bem Amado
                                                 porque eu sei que em breve ela viria
                                                 e me receberia
                                                 em seus braços amigos
                                                 Seus lábios frios tocarão a minha face
                                                 e sob a sua carícia
                                                 eu adormeceria o sono da Eternidade
                                                 como nos braços do Bem Amado
                                                 Sei que este sono
                                                 será um ressurgimento
                                                 porque sei que a morte é Ressurreição
                                                 é Libertação
                                                 é Comunhão Total
                                                 com o Amor Total e Infinito
                                                 do Pai de todas as vidas


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            V - O último andar
            Hoje, de manhãzinha, este velhote já meio careca, ralos cabelos brancos na cabeça,   bastante carcomido pelo peso de seus 81 anos, confessa francamente, de público, que chorou .Estava dando uma arrumadela em seus livros, na estante, e encontrou ali, meio escondido entre pesados livros de Teologia, um pequeno volume intitulado "Um olhar sobre a cidade", do saudoso Dom Hélder Câmara, falecido em 28 de agosto de 1999.
            O velhote chorou, confesso mais uma vez, porque encontrou na primeira página do livro esta dedicatória: -"Para o pão-duro, munheca e boco-moco do meu irmão, que esta oferta grátis faça que o próximo ano marque para Você uma maior abertura de si mesmo. Darcy".
            Darcy. Minha irmã. Quem tem a pachorra ou a curiosidade de entrar no meu "blog do mestre"
encontra lá uma espécie de poema intitulado "Meus dois amores", e nele se fala da Darcy que, procurando mais vida numa mesa de cirurgia, na vida encontrou a morte, ao lado de Raquel, aquela que lutando contra a morte num leito de hospital, na morte encontrou a Vida Eterna
            Pois é, ambas, meus dois amores: Darcy, minha irmã;  Raquel, minha filha
            Folheando o belo livro de Dom Hélder, encontrei lá nas últimas páginas um poema de Cecília Meireles, com o sugestivo título de "O último andar".
            Peço licença  à Cecília Meireles para transcrever aqui os versos maravilhosos que também me fizeram chorar:
                                         No último andar é mais bonito
                                         do último andar se vê o mar
                                         é lá que eu quero morar
                                         O último andar é muito longe
                                         - custa-me muito lá chegar -
                                         mas é lá que eu quero morar
                                         todo o céu fica a noite inteira
                                         sobre o último andar
                                         é lá que eu quero morar
                                         Quando faz lua
                                         no terraço fica todo o luar
                                         é lá que eu quero morar
                                         Os passarinhos lá se escondem
                                         prá ninguém os maltratar
                                         No último andar
                                         de lá se avista o mundo inteiro
                                         tudo parece perto, no ar
                                         É lá que eu quero morar



            Chorei de manhãzinha porque, relendo o poema de Cecília Meireles, lembrei-me da Raquel,
minha filha querida que flechou verticalmente o Céu em busca do infinito. E este infinito, novo nome para "O último andar", é ali que se tornou definitivamente a morada eterna da Darcy e da Raquel, ambas os meus dois amores.
           Ambas no último andar. Será vaidade querer morar no último andar, onde ambas agora estão morando? Se de lá se vê o mar, se a noite inteira todo o Céu fica sobre o último andar; se de lá se avista o mundo inteiro, como não querer ir para o último andar? Sobretudo se é lá, no último andar, que os passarinhos se escondem para ninguém os maltratar, como pode ainda haver dúvida, quanto a meus dois amores terem querido ir morar no último andar?
            Para os meus dois amores, a Darcy e a Raquel, como foi também para os santos do Céu, a morte não lhes apareceu como um horrendo esqueleto com uma foice nas mãos. Elas, como os santos, não tiveram medo de morrer. Se morrer, para elas, é ressuscitar,  sei que elas nunca falaram em morrer. Quando fosse o caso, elas falavam em ressurreição na morte, ou então preferiam falar em partir...
            E como fez São Francisco de Assis, uma que procurava mais vida, e procurando mais vida se
deparou com a morte, a outra, que lutava contra a morte num leito de hospital,  e lutando contra a morte, na morte encontrou a Vida Eterna, saíram ambas vitoriosas, porque saudaram a Morte como uma irmã querida, que veio para leva-las para a Casa da Vida Eterna.

Para o ´Ultimo Andar".



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