"Ou Deus quer eliminar o mal do mundo, mas não pode, ou pode, mas não quer eliminá-lo, ou não pode nem quer; ou pode e não quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não pode nem quer, não é o Deus bom e, ademais, é impotente. Se quer e pode - e isto é o mais seguro - então, de onde vem o mal e por que Ele não o elimina?", (Epicuro, apud Lactâncio, in "Ira Dei" - "A ira de Deus)."
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Nesse livro, escrito provavelmente em 313, Lactâncio adverte os partidários de Epicuro de que Deus não é somente bondade, mas também é justiça vindicativa contra os maus.
Antes de entrar no tema em foco, peço licença ao benévolo e eventual leitor, para uma ressalva: quando, pelas minhas colocações, pareço atribuir a Deus a responsabilidade pela presença do mal físico e moral no mundo, ou uma alusão mais desairosa à Igreja, isto não representa necessariamente, e em sua totalidade, o que penso a respeito. Minha intenção é provocar uma reflexão mais aprofundada sobre alguns problemas da vida eclesial e da Teologia, porque não podemos instalar-nos sobre as conquistas já feitas, sob o pretexto de coisa definitiva e absoluta. Tratando do problema do mal no mundo, eu o trato sob as perspectivas abertas por Andrés Torres Queiruga, em três de suas obras: "Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus", "Recuperar a Salvação", e "Creio em Deus Pai". E o cito:
-"Desde que a primeira mãe deu à luz com dor e a primeira criança nasceu chorando, foi posto o problema. A vida humana está assediada pelo mal, o mundo está cheio de crucificados, e surge a pergunta pelo porquê disso tudo. Pergunta inaugural e permanente". (Andrés Torres Queiruga, "Teologia em Diálogo").
Lendo também o livro de H. Bechert, "Buddismus", na página 322, em que ele fala da concepção budista do nirvana como símbolo da aniquilação absoluta da existência pessoal, encontrei um dito que vem muito a propósito do que pretendo tratar neste nosso diálogo: -"Tudo é dor."
À primeira vista, nada tão oposto ao Deus de Jesus de Nazaré, que conhecemos pelos Evangelhos como Pai de amor e de bondade infinita, que a presença do mal no mundo criado por Ele, presença terrível e sem remédio, que se estende por todos os tempos e a todos os seres, sem exceção. Em forma de catástrofe cósmica, de enfermidade e sofrimento orgânico, de padecimento ou deformação física ou moral, o mal se ergue como uma barreira, aparentemente intransponível, entre a sensibilidade espontânea do homem e mulher, e a bondade presente em Deus.
"O problema do sofrimento e do mal está na raiz de numerosas crises de Fé. Se Deus existe, por que este fracasso, esta morte prematura, esta traição ao nosso amor, este acidente de trânsito, esta doença que me faz sofrer, esta perda de emprego, este revés na vida?" (Missal Dominical, segundo domingo da Quaresma).
Andrés Torres Queiruga, ao tratar do tema em seu livro "Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus", nos lembra que, considerando-se em abstrato a onipotência divina, impõe-se reconhecer que, em pura honestidade lógica, as alternativas propostas pelo Dilema de Epicuro são insuperáveis. Com efeito, nessa perspectiva, se no mundo há mal, é porque Deus onipotente não quer eliminá-lo. E da mesma forma, se considerarmos o dilema sob o prisma da possibilidade de um mundo sem mal, e se apesar de tudo, o mal existe, é porque o Deus "bom" não pode evitá-lo.
Sendo assim, não seria o ateísmo a única solução lógica para o ser humano acossado pelo mal sem remédio, conforme proclama pelo mundo inteiro o profeta do ateísmo moderno, Richard Dawkins, com seu livro recente, "Deus, um delírio?"
Diga-se o que se disser, apresentem-se os mais consoladores argumentos, recorra-se à teodiceia ou à retórica piedosa, atéia ou agnóstica, o fato é que um "deus" que em si mesmo fosse impotente e limitado não seria Deus. Um "deus" bom que, podendo, não quisesse evitar o imenso horror do mal no mundo, tampouco seria Deus. Inclusive, qualquer pessoa simples e decente estaria em patamar superior a esse pretenso "deus", pois ninguém que possua um mínimo de humanidade deixaria, se estivesse em seu poder, de acabar com a miséria e a fome de milhões de crianças em vastas áreas do planeta, com o espanto dos crimes e das guerras, do terrorismo sem freio, ou com os tormentos da doença e da morte.
Este é o dilema que proponho à consideração do prezado e benévolo leitor.
Como católico, lembro que o Concílio do Vaticano II abriu a Igreja Católica para o mundo, arejou o marasmo em que se encontrava a sua teologia, e se tornou uma alvorada de esperança para as pessoas de boa vontade de toda a ecumene e, na sequência, o novo Código de Direito Canônico, a seguir publicado, deveria continuar esta abertura e inserção no mundo, mas o Código frustrou as expectativas ao insistir na centralização do poder eclesiástico na Cúria Romana, castrando assim a colegialidade do episcopado e a efetiva participação do Povo de Deus nas decisões de interesse de suas comunidades.
Tomo aqui a liberdade de fazer ao benévolo leitor os seguintes questionamentos: a Igreja Católica, tanto em nível local como em nível universal, continuará exibindo essa estrutura fortemente piramidal, conforme o espírito do Concílio Vaticano I, em uma única mão, a do Papa? ou, ao contrário, estará mais próxima das bases eclesiais, segundo o Vaticano II? Ou ela continuará centralista ou pluralista, dogmática ou dialógica, de forma ingenuamente autocentrada ou, apesar de todas as dúvidas da Fé, capaz de encarar decididamente o futuro?
Neste enfoque, trago um texto do grande e controvertido teólogo suíço, Hans Kung, no seu livro "Teologia a Caminho". A citação é um tanto longa, mas creio que é de suma e vital importância para o que venho tratando até aqui. A seguir:
- "A Igreja Católica procurou conservar seu paradigma medieval e da Contra Reforma até o Concílio Vaticano II, por meio de decretos autoritários, sanções disciplinares e estratégias políticas. (...) Ela se refugiou na centralização e burocratização. Será que a imposição autoritário-inquisitorial por parte da Cúria, de uma estrutura hierárquico-burocrática corresponde à situação religiosa pós-moderna, embora essa estrutura fosse legitimada e elevada à condição de dogma de fé pelo Vaticano I (1870)? Será que a atual ressacralização dessas estruturas eclesiais, (no pontificado de João Paulo II), feudais e pré-modernas, é a resposta correta à situação religiosa pós-moderna de esvaziamento de um catolicismo culturalmente hermético e fechado em si mesmo?"
O certo é que não podemos permanecer enclausurados na repetição por assim dizer mecânica de um passado morto, mas devemos abrir-nos para a recriação autêntica de uma experiência que há de ser tão atual como a refletida nos textos tradicionais e que exige de nós seja traduzida em palavras vivas que falem à nossa compreensão, e alimentem as possibilidades de nossa vida e de nossa história, nos tempos em que vivemos. Gostemos ou não, temos que pagar nosso tributo à pós-modernidade e aos sinais dos tempos, como diria o saudoso João XXIII.
Devo dizer que não aceito uma leitura literalista ou fundamentalista da Bíblia Sagrada, isto é, tomar ao pé da letra o que nela está contido, sem uma segura exegese histórico-crítica de seu conteúdo. Muitas denominações evangélicas fazem isto, e acabam resvalando para os maiores absurdos. Vários setores do catolicismo também o fazem, inclusive boa parte do "Catecismo da Igreja Católica" e a comunidade "Canção Nova", sem esquecer, é claro, a maioria das pregações nos púlpitos de nossas igrejas. Por causa dessa leitura fundamentalista da Bíblia, há muitas verdades que os cristãos, católicos e protestantes, afirmam, mas no íntimo chegam a não crer nelas. São demasiadas as palavras da Bíblia que dizem aceitar, mas suspeitando que alguma coisa pode não ser bem assim como está nela.
Diz-nos o teólogo Andrés Torres Queiruga ("Recuperar a Salvação") que atualmente, diante dos progressos da pesquisa e da hermenêutica bíblica, nem o mais conservador dos teólogos pode - embora o pretendesse - levar ao pé da letra a estrela de Belém, ou a fuga para o Egito, ou a ascensão física de Jesus atravessando as nuvens para chegar ao Céu. Como dificilmente poderá "crer" na milagrosa entrada de uma legião de demônios numa vara de porcos, nem na moeda na boca do peixe para pagar o imposto devido aos romanos.
E mais:
- Quem é capaz de pensar que Deus castigou durante milênios a milhões de seres humanos por um pecado pretensamente atribuído a nossos primeiros pais, quando nenhuma pessoa decente é capaz de maltratar uma criança, por maior que seja o crime que seu pai ou sua mãe tenham praticado?
- Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina de acordo com santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa, que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer, a herdar o pecado de um ancestral remoto?
- Qual a mãe que poderia crer de verdade que sua pequenina criatura recém-nascida, diante da qual seu coração se desfaz em ternura, está em pecado e condenada a nunca fruir da visão beatífica, se morrer antes de ser batizada?
Felizmente a nova liturgia do Batismo, após o Concílio Vaticano II, abandonou aquela esdrúxula fórmula usada até tempos atrás, quando o sacerdote, depois de soprar três vezes sobre o rosto da criança a ser batizada, dizia com voz enfática: -"Sai dela, ó espírito imundo, e dá lugar ao Espírito Santo Paráclito..."
- Em que cabeça cabe que Deus pudesse exigir a morte violenta de Seu filho feito homem, Jesus de Nazaré, para resgatar os pecados da humanidade, como lemos nos manuais de piedade em uso por aí?
William P. Loewe, em seu livro "Introdução à Cristologia", adverte-nos de que esta maneira de falar "pode levar a imagens grotescas de Deus como um tirano sanguinário, que exige a morte de um filho inocente para apaziguar Sua ira, imagens da morte de Jesus como um caso supremo de crueldade divina contra o próprio filho."
Esta afirmação de Loewe é corroborada por Joseph Ratzinger (mais tarde Papa Bento XVI) em "Introdução ao Cristianismo", pág. 208: _ "Diante da atitude expressa em certas práticas religiosas impõe-se, praticamente, a convicção de que a Fé cristã na cruz se baseia na imagem de um Deus que, em Sua justiça intransigente, exige de um pai o sacrifício de um ser humano, o sacrifício do próprio filho. Aterrorizadas, muitas pessoas mais sensíveis viram as costas a uma justiça que, com sua ira sinistra, torna implausível a mensagem do amor."
- É aceitável a monstruosidade de um Deus que, chamado "Pai" pelos cristãos, tenha exigido de um outro pai, Abraão, que lhe sacrificasse seu filho único e querido, Isaac, como prova de obediência?
- Quem pensaria hoje em louvar a Deus dizendo que Ele é um guerreiro que "Se cobriu de glória afundando no mar cavalo e cavaleiro", como rezamos semanalmente na "Liturgia das Horas"?
- Quem veria hoje um gesto de fidelidade e religiosidade profunda no cumprimento de um voto que, como no caso de Jefté, no livro dos "Juízes", implicava sacrificar a Javé sua filha inocente?
- "Se Deus previu o pecado de Adão com todas as suas funestas consequências, e não tomou medidas bem seguras para evita-lo, carece de boa vontade para com o homem... e se fez tudo o que pôde para impedir a queda do homem e não o conseguiu, então voltamos ao dilema de Epicuro: não é todo-poderoso como supúnhamos." (Pierre Bayle, "Réponses aux questions", citado por Queiruga, em "Recuperar a Salvação").
A respeito do problema do pecado de Adão ser transmitido a toda a sua descendência, o teólogo luterano Pannemberg, em sua "Teologia Sistemática II", tem colocações muito oportunas que peço licença para citar:
-"Foi rejeitado como revoltante para a sensibilidade ética a afirmação de que Deus teria imputado o pecado de Adão a seus descendentes como culpa, ainda antes que tivessem cometido, de sua parte, qualquer ato mau. Este princípio, imputar aos filhos de Adão o pecado de seu ancestral, pareceu inconciliável com a fé na justiça de Deus e em Seu amor que perdoa."
- "Pode-se conceber que um Deus que é amor, na ousada afirmativa do evangelista João, se dedique a castigar com tormentos inauditos e por toda a eternidade, no assim dito inferno, um ser humano que em momentos de fraqueza tenha cometido uma ação que os moralistas chamam de mortal?
- "E sem falar que o teólogo oficial da Igreja até tempos atrás, São Tomás de Aquino, tenha afirmado na sua "Suma Teológica" (questão XCIV, art. III) que a contemplação dos tormentos padecidos pelos condenados no inferno aumenta o gozo dos bem-aventurados no Céu?"
Verdadeiro absurdo.
Estes são apenas alguns exemplos do modo de falar dos cristãos, mas que não tem mais lugar hoje em dia, diante de uma leitura crítica da Bíblia Sagrada. Nesta leitura é de fundamental importância que se faça uma distinção urgentíssima entre aquilo que os autores bíblicos pensavam em seu tempo, e tudo aquilo que nós, aprendendo com eles, devemos pensar nos dias de hoje.
Voltando finalmente ao dilema de Epicuro, não importa a que deus se refere ele, seja Marduc, Baal, Moloc, Júpiter, Javé, ou outro qualquer do panteão dos povos. O que interessa é que o seu questionamento atravessou os séculos, e tem intrigado filósofos e teólogos; teses e livros têm sido escritos sobre tal dilema, tanto entre católicos como entre protestantes. Inclusive homens sem religião, agnósticos, ateus, ou como Hegel, Kant, Kierkegard, Feuerbach, entre outros, se debruçaram sobre esse famoso dilema, e cada qual deles procurou dar-lhe uma resposta, o que nem sempre conseguiram.
"Admitir que o mal tem sua origem na liberdade e no livre arbítrio do ser humano não é capaz de desonerar o Criador da responsabilidade por essa Sua criação. Seja qual for o modo como a criatura é livre, ela é criatura de Deus justamente nessa sua liberdade." (Pannenberg, "Teologia Sistemática", II).
Este é o âmago da questão, e é por esse âmago que Epicuro questiona os sábios de seu tempo, e esse fato ressoa até os dias de hoje, como nos atesta Torres Queiruga ao tratar do tema em vários de seus livros:
- "Existe Deus? Se existe, onde está Ele, quando nos acontece uma desgraça, ou nos sentimos infelizes? Como se situa Ele em nossa vida e em nossa história? "
E eu ponho ponto final no meu blog de hoje propondo, ao eventual e benévolo leitor, dois pensamentos que me perturbaram durante todo o tempo em que redigia este texto:
- "Toda a ciência do mundo não vale as lágrimas de uma criança que sofre, implorando a Deus, em vão, o fim desse sofrimento." (Dostoievski, "Os irmãos Karamazov").
- "Eu me recuso até à morte amar uma criação na qual crianças, seres inocentes, são torturadas." (Camus, "A Peste").
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(Quem visitar o Hospital Pequeno Príncipe, ou o setor de cancerologia do Hospital Erasto Gaertner, ambos aqui em Curitiba, poderá ser testemunha pessoal da terrível verdade das palavras do romancista russo).
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Antes de entrar no tema em foco, peço licença ao benévolo e eventual leitor, para uma ressalva: quando, pelas minhas colocações, pareço atribuir a Deus a responsabilidade pela presença do mal físico e moral no mundo, ou uma alusão mais desairosa à Igreja, isto não representa necessariamente, e em sua totalidade, o que penso a respeito. Minha intenção é provocar uma reflexão mais aprofundada sobre alguns problemas da vida eclesial e da Teologia, porque não podemos instalar-nos sobre as conquistas já feitas, sob o pretexto de coisa definitiva e absoluta. Tratando do problema do mal no mundo, eu o trato sob as perspectivas abertas por Andrés Torres Queiruga, em três de suas obras: "Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus", "Recuperar a Salvação", e "Creio em Deus Pai". E o cito:
-"Desde que a primeira mãe deu à luz com dor e a primeira criança nasceu chorando, foi posto o problema. A vida humana está assediada pelo mal, o mundo está cheio de crucificados, e surge a pergunta pelo porquê disso tudo. Pergunta inaugural e permanente". (Andrés Torres Queiruga, "Teologia em Diálogo").
Lendo também o livro de H. Bechert, "Buddismus", na página 322, em que ele fala da concepção budista do nirvana como símbolo da aniquilação absoluta da existência pessoal, encontrei um dito que vem muito a propósito do que pretendo tratar neste nosso diálogo: -"Tudo é dor."
À primeira vista, nada tão oposto ao Deus de Jesus de Nazaré, que conhecemos pelos Evangelhos como Pai de amor e de bondade infinita, que a presença do mal no mundo criado por Ele, presença terrível e sem remédio, que se estende por todos os tempos e a todos os seres, sem exceção. Em forma de catástrofe cósmica, de enfermidade e sofrimento orgânico, de padecimento ou deformação física ou moral, o mal se ergue como uma barreira, aparentemente intransponível, entre a sensibilidade espontânea do homem e mulher, e a bondade presente em Deus.
"O problema do sofrimento e do mal está na raiz de numerosas crises de Fé. Se Deus existe, por que este fracasso, esta morte prematura, esta traição ao nosso amor, este acidente de trânsito, esta doença que me faz sofrer, esta perda de emprego, este revés na vida?" (Missal Dominical, segundo domingo da Quaresma).
Andrés Torres Queiruga, ao tratar do tema em seu livro "Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus", nos lembra que, considerando-se em abstrato a onipotência divina, impõe-se reconhecer que, em pura honestidade lógica, as alternativas propostas pelo Dilema de Epicuro são insuperáveis. Com efeito, nessa perspectiva, se no mundo há mal, é porque Deus onipotente não quer eliminá-lo. E da mesma forma, se considerarmos o dilema sob o prisma da possibilidade de um mundo sem mal, e se apesar de tudo, o mal existe, é porque o Deus "bom" não pode evitá-lo.
Sendo assim, não seria o ateísmo a única solução lógica para o ser humano acossado pelo mal sem remédio, conforme proclama pelo mundo inteiro o profeta do ateísmo moderno, Richard Dawkins, com seu livro recente, "Deus, um delírio?"
Diga-se o que se disser, apresentem-se os mais consoladores argumentos, recorra-se à teodiceia ou à retórica piedosa, atéia ou agnóstica, o fato é que um "deus" que em si mesmo fosse impotente e limitado não seria Deus. Um "deus" bom que, podendo, não quisesse evitar o imenso horror do mal no mundo, tampouco seria Deus. Inclusive, qualquer pessoa simples e decente estaria em patamar superior a esse pretenso "deus", pois ninguém que possua um mínimo de humanidade deixaria, se estivesse em seu poder, de acabar com a miséria e a fome de milhões de crianças em vastas áreas do planeta, com o espanto dos crimes e das guerras, do terrorismo sem freio, ou com os tormentos da doença e da morte.
Este é o dilema que proponho à consideração do prezado e benévolo leitor.
Como católico, lembro que o Concílio do Vaticano II abriu a Igreja Católica para o mundo, arejou o marasmo em que se encontrava a sua teologia, e se tornou uma alvorada de esperança para as pessoas de boa vontade de toda a ecumene e, na sequência, o novo Código de Direito Canônico, a seguir publicado, deveria continuar esta abertura e inserção no mundo, mas o Código frustrou as expectativas ao insistir na centralização do poder eclesiástico na Cúria Romana, castrando assim a colegialidade do episcopado e a efetiva participação do Povo de Deus nas decisões de interesse de suas comunidades.
Tomo aqui a liberdade de fazer ao benévolo leitor os seguintes questionamentos: a Igreja Católica, tanto em nível local como em nível universal, continuará exibindo essa estrutura fortemente piramidal, conforme o espírito do Concílio Vaticano I, em uma única mão, a do Papa? ou, ao contrário, estará mais próxima das bases eclesiais, segundo o Vaticano II? Ou ela continuará centralista ou pluralista, dogmática ou dialógica, de forma ingenuamente autocentrada ou, apesar de todas as dúvidas da Fé, capaz de encarar decididamente o futuro?
Neste enfoque, trago um texto do grande e controvertido teólogo suíço, Hans Kung, no seu livro "Teologia a Caminho". A citação é um tanto longa, mas creio que é de suma e vital importância para o que venho tratando até aqui. A seguir:
- "A Igreja Católica procurou conservar seu paradigma medieval e da Contra Reforma até o Concílio Vaticano II, por meio de decretos autoritários, sanções disciplinares e estratégias políticas. (...) Ela se refugiou na centralização e burocratização. Será que a imposição autoritário-inquisitorial por parte da Cúria, de uma estrutura hierárquico-burocrática corresponde à situação religiosa pós-moderna, embora essa estrutura fosse legitimada e elevada à condição de dogma de fé pelo Vaticano I (1870)? Será que a atual ressacralização dessas estruturas eclesiais, (no pontificado de João Paulo II), feudais e pré-modernas, é a resposta correta à situação religiosa pós-moderna de esvaziamento de um catolicismo culturalmente hermético e fechado em si mesmo?"
O certo é que não podemos permanecer enclausurados na repetição por assim dizer mecânica de um passado morto, mas devemos abrir-nos para a recriação autêntica de uma experiência que há de ser tão atual como a refletida nos textos tradicionais e que exige de nós seja traduzida em palavras vivas que falem à nossa compreensão, e alimentem as possibilidades de nossa vida e de nossa história, nos tempos em que vivemos. Gostemos ou não, temos que pagar nosso tributo à pós-modernidade e aos sinais dos tempos, como diria o saudoso João XXIII.
Devo dizer que não aceito uma leitura literalista ou fundamentalista da Bíblia Sagrada, isto é, tomar ao pé da letra o que nela está contido, sem uma segura exegese histórico-crítica de seu conteúdo. Muitas denominações evangélicas fazem isto, e acabam resvalando para os maiores absurdos. Vários setores do catolicismo também o fazem, inclusive boa parte do "Catecismo da Igreja Católica" e a comunidade "Canção Nova", sem esquecer, é claro, a maioria das pregações nos púlpitos de nossas igrejas. Por causa dessa leitura fundamentalista da Bíblia, há muitas verdades que os cristãos, católicos e protestantes, afirmam, mas no íntimo chegam a não crer nelas. São demasiadas as palavras da Bíblia que dizem aceitar, mas suspeitando que alguma coisa pode não ser bem assim como está nela.
Diz-nos o teólogo Andrés Torres Queiruga ("Recuperar a Salvação") que atualmente, diante dos progressos da pesquisa e da hermenêutica bíblica, nem o mais conservador dos teólogos pode - embora o pretendesse - levar ao pé da letra a estrela de Belém, ou a fuga para o Egito, ou a ascensão física de Jesus atravessando as nuvens para chegar ao Céu. Como dificilmente poderá "crer" na milagrosa entrada de uma legião de demônios numa vara de porcos, nem na moeda na boca do peixe para pagar o imposto devido aos romanos.
E mais:
- Quem é capaz de pensar que Deus castigou durante milênios a milhões de seres humanos por um pecado pretensamente atribuído a nossos primeiros pais, quando nenhuma pessoa decente é capaz de maltratar uma criança, por maior que seja o crime que seu pai ou sua mãe tenham praticado?
- Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina de acordo com santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa, que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer, a herdar o pecado de um ancestral remoto?
- Qual a mãe que poderia crer de verdade que sua pequenina criatura recém-nascida, diante da qual seu coração se desfaz em ternura, está em pecado e condenada a nunca fruir da visão beatífica, se morrer antes de ser batizada?
Felizmente a nova liturgia do Batismo, após o Concílio Vaticano II, abandonou aquela esdrúxula fórmula usada até tempos atrás, quando o sacerdote, depois de soprar três vezes sobre o rosto da criança a ser batizada, dizia com voz enfática: -"Sai dela, ó espírito imundo, e dá lugar ao Espírito Santo Paráclito..."
- Em que cabeça cabe que Deus pudesse exigir a morte violenta de Seu filho feito homem, Jesus de Nazaré, para resgatar os pecados da humanidade, como lemos nos manuais de piedade em uso por aí?
William P. Loewe, em seu livro "Introdução à Cristologia", adverte-nos de que esta maneira de falar "pode levar a imagens grotescas de Deus como um tirano sanguinário, que exige a morte de um filho inocente para apaziguar Sua ira, imagens da morte de Jesus como um caso supremo de crueldade divina contra o próprio filho."
Esta afirmação de Loewe é corroborada por Joseph Ratzinger (mais tarde Papa Bento XVI) em "Introdução ao Cristianismo", pág. 208: _ "Diante da atitude expressa em certas práticas religiosas impõe-se, praticamente, a convicção de que a Fé cristã na cruz se baseia na imagem de um Deus que, em Sua justiça intransigente, exige de um pai o sacrifício de um ser humano, o sacrifício do próprio filho. Aterrorizadas, muitas pessoas mais sensíveis viram as costas a uma justiça que, com sua ira sinistra, torna implausível a mensagem do amor."
- É aceitável a monstruosidade de um Deus que, chamado "Pai" pelos cristãos, tenha exigido de um outro pai, Abraão, que lhe sacrificasse seu filho único e querido, Isaac, como prova de obediência?
- Quem pensaria hoje em louvar a Deus dizendo que Ele é um guerreiro que "Se cobriu de glória afundando no mar cavalo e cavaleiro", como rezamos semanalmente na "Liturgia das Horas"?
- Quem veria hoje um gesto de fidelidade e religiosidade profunda no cumprimento de um voto que, como no caso de Jefté, no livro dos "Juízes", implicava sacrificar a Javé sua filha inocente?
- "Se Deus previu o pecado de Adão com todas as suas funestas consequências, e não tomou medidas bem seguras para evita-lo, carece de boa vontade para com o homem... e se fez tudo o que pôde para impedir a queda do homem e não o conseguiu, então voltamos ao dilema de Epicuro: não é todo-poderoso como supúnhamos." (Pierre Bayle, "Réponses aux questions", citado por Queiruga, em "Recuperar a Salvação").
A respeito do problema do pecado de Adão ser transmitido a toda a sua descendência, o teólogo luterano Pannemberg, em sua "Teologia Sistemática II", tem colocações muito oportunas que peço licença para citar:
-"Foi rejeitado como revoltante para a sensibilidade ética a afirmação de que Deus teria imputado o pecado de Adão a seus descendentes como culpa, ainda antes que tivessem cometido, de sua parte, qualquer ato mau. Este princípio, imputar aos filhos de Adão o pecado de seu ancestral, pareceu inconciliável com a fé na justiça de Deus e em Seu amor que perdoa."
- "Pode-se conceber que um Deus que é amor, na ousada afirmativa do evangelista João, se dedique a castigar com tormentos inauditos e por toda a eternidade, no assim dito inferno, um ser humano que em momentos de fraqueza tenha cometido uma ação que os moralistas chamam de mortal?
- "E sem falar que o teólogo oficial da Igreja até tempos atrás, São Tomás de Aquino, tenha afirmado na sua "Suma Teológica" (questão XCIV, art. III) que a contemplação dos tormentos padecidos pelos condenados no inferno aumenta o gozo dos bem-aventurados no Céu?"
Verdadeiro absurdo.
Estes são apenas alguns exemplos do modo de falar dos cristãos, mas que não tem mais lugar hoje em dia, diante de uma leitura crítica da Bíblia Sagrada. Nesta leitura é de fundamental importância que se faça uma distinção urgentíssima entre aquilo que os autores bíblicos pensavam em seu tempo, e tudo aquilo que nós, aprendendo com eles, devemos pensar nos dias de hoje.
Voltando finalmente ao dilema de Epicuro, não importa a que deus se refere ele, seja Marduc, Baal, Moloc, Júpiter, Javé, ou outro qualquer do panteão dos povos. O que interessa é que o seu questionamento atravessou os séculos, e tem intrigado filósofos e teólogos; teses e livros têm sido escritos sobre tal dilema, tanto entre católicos como entre protestantes. Inclusive homens sem religião, agnósticos, ateus, ou como Hegel, Kant, Kierkegard, Feuerbach, entre outros, se debruçaram sobre esse famoso dilema, e cada qual deles procurou dar-lhe uma resposta, o que nem sempre conseguiram.
"Admitir que o mal tem sua origem na liberdade e no livre arbítrio do ser humano não é capaz de desonerar o Criador da responsabilidade por essa Sua criação. Seja qual for o modo como a criatura é livre, ela é criatura de Deus justamente nessa sua liberdade." (Pannenberg, "Teologia Sistemática", II).
Este é o âmago da questão, e é por esse âmago que Epicuro questiona os sábios de seu tempo, e esse fato ressoa até os dias de hoje, como nos atesta Torres Queiruga ao tratar do tema em vários de seus livros:
- "Existe Deus? Se existe, onde está Ele, quando nos acontece uma desgraça, ou nos sentimos infelizes? Como se situa Ele em nossa vida e em nossa história? "
E eu ponho ponto final no meu blog de hoje propondo, ao eventual e benévolo leitor, dois pensamentos que me perturbaram durante todo o tempo em que redigia este texto:
- "Toda a ciência do mundo não vale as lágrimas de uma criança que sofre, implorando a Deus, em vão, o fim desse sofrimento." (Dostoievski, "Os irmãos Karamazov").
- "Eu me recuso até à morte amar uma criação na qual crianças, seres inocentes, são torturadas." (Camus, "A Peste").
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(Quem visitar o Hospital Pequeno Príncipe, ou o setor de cancerologia do Hospital Erasto Gaertner, ambos aqui em Curitiba, poderá ser testemunha pessoal da terrível verdade das palavras do romancista russo).
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