segunda-feira, 26 de setembro de 2011

"O SILÊNCIO" DE DEUS SERÁ MESMO REAL?

    Ocasiões há em que Deus parece que nos fala sem cessar; noutras, porém, Ele parece esconder-se nas profundezas do Céu, e nós então nos sentimos sozinhos, quando precisaríamos da presença aconchegante do Criador junto de nós.
    Embora conheçamos, dentro de nossas limitações de criaturas os desígnios gerais de Sua Providência, ignoramos completamente a realidade de Seus propósitos particulares a respeito de cada um de nós.
    Há períodos no longo caminhar da História em que homem e mulher, de maneira dolorosa, tomam consciência da aparente ausência de Deus neste nosso mundo. Pois este período histórico em que vivemos atualmente parece-nos testemunhar esta ausência ou este afastamento de Deus de nosso meio. Temos a impressão de vivermos num daqueles tempos de apocalipse, preditos pelos profetas. Há guerras em várias partes do mundo; o terrorismo e o fanatismo sem freios têm atacado alvos em toda parte, espalhando o medo e fazendo milhares de vítimas; fenômenos naturais catastróficos assustam populações inteiras, destruindo cidades, habitações, e colocando seus habitantes, justamente apavorados, quase sem capacidade de reações.
    Enquanto isso, dizem-nos as estatísticas, milhões de vítimas da fome morrem à míngua em bolsões de miséria da África e da Ásia, com maior impacto principalmente entre as crianças que, pela desnutrição endêmica, jazem quase sem esperança de sobrevivência. A justiça torna-se uma caricatura em vários países dominados por oligarquias tirânicas e sanguinárias, que defendem a ferro e fogo sua permanência no poder, esquecidas das mais elementares normas de respeito às populações em busca de seus direitos calcados aos pés pelos tiranetes do dia. O custo de vida aumenta sem parar, países inteiros sofrem com sérios problemas econômicos, que atingem mesmo uma escala global. Um escritor da Europa central, Gheorghiu, chegou a publicar um livro a que deu o sugestivo título de "A Vigésima Quinta Hora", no qual fotografa literariamente as tragédias que nos atingem, profetizando que nem mesmo um Messias conseguiria salvar-nos.
    A impressão que temos seria de que nada mudou no mundo, desde o surgimento do Cristianismo. Os próprios cristãos, apesar de sua Fé na Providência Divina, parecem sofrer mais que os outros: não são poupados pelos flagelos universais, e ao mesmo tempo acabrunha-os o sentimento de pecados que avassalam o mundo, e perdem o ânimo diante da apostasia planetária. Todos os dias lhes pedem para ser novos cruzados empenhados na salvação do que resta ainda de bom em nossa época, mas eles não se sentem com forças ou preparados para essa magna tarefa.
    "Silêncio de Deus", outro nome para traduzir a tragédia do universo? Seriam o homem e a mulher uma "paixão inútil", como proclamava tempos atrás o racionalista e ateu francês, Jean Paul Sartre, na sua literatura e no seu teatro do absurdo, em Paris?
    Diante deste silêncio enigmático de Deus, que parece ter-se esquecido de Sua criação, muitos cristãos desejariam uma manifestação sensacional do Criador, uma espécie de trovoada celeste que limpasse de uma vez por todas a atmosfera, e reconduzisse à Fé a humanidade inteira.
    Enganam-se, porém, os cristãos que desejam milagres espetaculares da parte de Deus. O romance de Bruce Marshall que acabo de reler, "O  milagre de Dom Malaquias", prova esta minha afirmação, de maneira bastante humorística. Um frade faz uma aposta com certo pastor "evangélico", nestes termos: com uma prece fervorosa, pediria a Deus que atirasse para cima de uma alta montanha um cabaré que se instalara cinicamente bem defronte ao seu mosteiro, com grandes danos para a vida religiosa sua e de seus irmãos frades. Foi ouvido por Deus. O cabaré, seus móveis, copos e garrafas, orquestra, mulheres de escassa virtude, mundanas em disponibilidade, bons cidadãos extraviados, tudo voou para o pico mais alto da montanha. O milagre é proclamado no mosteiro e em todas as igrejas da diocese; agradece-se a Deus pela prece atendida. Entretanto, o bispo diocesano mantém-se na defensiva: -"A Igreja não gosta muito de milagres", - confia ele ao superior do mosteiro.
    O pastor "evangélico" afirma que o fenômeno milagroso se explica perfeitamente por um ardil dos papistas; os ateus e racionalistas falam de auto-sugestão. Mas a verdade estava mesmo é com o bispo. Após uma corrida fantástica para a igreja paroquial, as pessoas começam pouco a pouco a afastar-se das missas e das novenas. Depois de algum tempo a igreja fica quase deserta. Muito mais do que isso: o malsinado cabaré, transferido para um local sensacional, atrai quase toda a população da cidade para os seus espetáculos não muito decentes, e os seus negócios  duplicam em poucos dias.
    O frade apostador cai em si e se convence de ter sido impaciente; reconhece que homem e mulher são feitos de tal material que, não estando moralmente preparados para ir ao encontro com Deus, nem o milagre mais extraordinário os convencerá. É preciso ser paciente. Esperar o dia e a hora de Deus. Não querer antecipar-se aos desígnios do Senhor. Ter Fé e Esperança. Uma outra breve e contrita oração do frade, e o cabaré volta ao seu lugar anterior, e tudo recomeça como antes!
    Ora, o cristão parece não ter um minuto de trégua neste mundo. Os problemas surgem-lhe ao mesmo tempo e de todos os lados. A historieta de Dom Malaquias é bonita mas, o que dizer desta outra? Certa família muito religiosa gasta uma pequena fortuna para levar o filho doente numa peregrinação longínqua a um santuário famoso, com a esperança de obter a cura de sua doença. Irmãos, irmãs, avós, amigos, todos rezam, as comunidades religiosas reforçam o pedido de cura com suas preces e penitências. Entretanto, o menino não se cura e vem a falecer.
    Mistério terrível! Pode-se, deve-se mesmo dizer que a Fé daqueles que tudo sacrificaram para obter a cura de um filho, sem ser atendidos, é especialmente colocada à prova por Deus. Mas por que se cura um, e não se cura aquele outro?
    Mal ouso escrever estas linhas; elas são verdadeiras, mas para quem experimentou em si mesmo semelhante desilusão, como eu senti com a morte precoce de minha filha Raquel, vítima de um câncer insidioso, as frases de consolo e de explicação assemelham-se às tagarelices banais de certas consolações de amigos. É certo que Deus sabe o que faz. Mas eu, na minha fraqueza de ser humano finito e conteingente, acredito não pedir demais, suplicando por vezes a Ele, que conceda à minha esposa e a mim  ao menos uma dessas consolações visíveis, uma dessas parêneses com que minha alma, que afinal de contas está encarnada numa natureza débil, possa saciar-se um pouco para recuperar as forças. Mesmo que eu saiba, pela leitura e meditação dos textos sagrados da Bíblia, que Deus recusa essa consolação aos seus melhores amigos.
    É uma verdade profunda, mas difícil. A Sagrada Escritura inteira a testemunha, e principalmente o Filho de Deus, Jesus de Nazaré, que à véspera de Sua morte pede que Deus Pai lhe afaste esse cálice, não é atendido, mas apesar de tudo o bebe, livremente, por amor!


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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A PENUMBRA DA FÉ

    Há na Bíblia sagrada um tema que considero essencial para a intelcção de nossa Fé. É aquele tema que o teólogo francês Charles Moeller, no seu livro "A Fé em Jesus Cristo", chama de "penumbra". Com efeito, lendo os textos sagrados com atenção, descobrimos logo de início a coluna de nuvens  que mostra o caminho aos israelitas no deserto, a "glória de Javé" que encobre a presença de Deus no Santo dos Santos, no templo; a "tenda luminosa" que envolve Jesus de Nazaré no relato da transfiguração, e muitas outras presenças dessa nuvem misteriosa que constituem, para o israelita, a única possiblidade de ver a Deus sem morrer.
    Há outra "nuvem luminosa" na vida de Jesus de Nazaré,  a sua humanidade, que encobre a presença do Verbo de Deus, que plantou sua tenda entre nós, conforme o testemunho do evangelista João, no Prólogo de seu Evangelho. É por essa humanidade, a penumbra que vela e revela a realidade mesma do divino em Jesus, que João repete muitíssimas vezes que ela é "gloriosa".
    O Evangelho de João nos lembra sempre que a "hora de Jesus" é a do Calvário, e é justamente no momento em que a nuvem luminosa se torna aparentemente trevas e escuridão total, o instante em que o Crucificado entra na glória.
    Lendo e meditando o Evangelho de João,  intuímos claramente que os temas da noite e da glória estão sempre juntos: Na véspera de sua paixão disse Jesus: É a hora do poder das trevas, mas acrescenta também que Agora o Filho de Deus é glorificado, isto porque a hora das trevas é a passagem para a glória da Ressurreição.
    Se Jesus de Nazaré, na sua humanidade, é a nuvem luminosa que oculta o Verbo de Deus e O revela, a Igreja, que revela Cristo presente em nosso meio pelo seu Espírito Santo, é por sua vez também uma penumbra luminosa: o sinal que ela apresenta no meio das nações, sua perenidade no longo decorrer dos tempos, sua santidade, sua doutrina imutável, e tudo isto pode  ser contradito. Como seu Mestre, Jesus, também a Igreja  é um sinal  de contradição no seio do mundo: está cheia da humanidade e da santidade de seu Senhor e Mestre, e é aparentemente uma sociedade como as outras.
    Constituída por homens e mulheres pecadores que devem constantemente ser resgatados de seus pecados, ela pode e pôde, no decorrer da História, no plano de sua vida, prestar seus flancos às críticas e aleivosias de seus detratores e adversários, como também pode e pôde errar nos seus seguidores.
    Os escândalos presentes na história da Igreja, na sua cúpula e em seus membros, não se podem negar. A explicação para esses escândalos é a consequência simplesmente de o fato da divindade estar contido em vasos frágeis, finitos e contingentes. Ainda, porém, que a Igreja terrestre fosse inteiramente santa, visivelmente como Jesus o era, nem por isso deixaria de ser um sinal de contradição; Jesus também não o foi?
    Quando a inteligência, assim esclarecida sobre as condições inevitáveis da revelação cristã, aborda honestamente o exame das provas, deixará de ser rebelde às obscuridades inerentes ao testemunho do mundo evangélico. O mesmo problema que lhe propunha a dor no mundo, reaparece nas obscuridades do texto inspirado e nas trevas aparentes da história da Igreja. Se ela se recusasse a tomar em consideração essas obscuridades do testemunho religioso, cometeria o mesmo erro que pretendesse edificar uma concepção do mundo passando em silêncio o paradoxo do sofrimento e da morte.
    O espírito moderno, ao mesmo tempo "científico e místico", acha-se bem preparado para abordar a Fé deste ângulo. O que se pede à inteligência humana , diante da Fé, é que integre esses fatos , esse claro-escuro, numa visão conjunta do universo. Não seria razoável recusar-se a fazê-lo.
    A inteligência há-de inclinar-se sobre a dor humana, como também sobre o fato da santidade no mundo. Ela se perguntará se a hipótese de uma intervenção do alto, de Deus, não explicaria melhor o conjunto  do destino humano, do que qualquer outra hipótese que eliminasse essa possibilidade. Não poderá deixar de ver que num dos casos elimina toda uma parte da experiência, enquanto no outro restitui homem e mulher à sua unidade.
    Em consequência deste fato, a inteligência moderna tem de admitir que certas verdades da Fé a ultrapassam; deve reconhecer que o essencial da verdade não é uma evidência matemática da qual ela seria o único juiz. Deve concordar em confiar a Deus o cuidado de a guiar. Aqulo a ela deve render-se é à presença de Deus no mundo, na palavra, no coração dos que amam, na alma dos que sofrem, na vida dos que abraçaram a santidade.  Os mistérios da Fé em si mesmos continuarão sendo-lhe inacessíveis; a inteligência moderna, porém, acredita neles, porque se abandona conscientemente Àquele que lhe revela tais mistérios.
    Esta surrender da razão  só alcança as verdades que a superam; nada lhe rouba da sua legítima autonomia no domínio que de direito lhe pertence. É só depois de ter visto que é plenamente racional tomar a sério a hipótese cristã, mais racional mesmo do que negá-la, é que a razão pode deixar à "boa vontade" o cuidado de abrir as profundezas do ser à presença divina. Quando esta aceitação da Fé se realiza, a inteligência ilumina-se interiormente com uma luz nova; apreende realmente a verdade do testemunho de Deus. Poderá até entrar na compreensaõ dos mistérios, poderá penetrar naquilo que os teólogos chamam de intellectus fidei,  o mistério da Fé.
    A Fé, portanto, não é superstição, fraqueza do espírito, racionalismo, nem adesão cega a uma verdade fictícia. Há suficientes claridades no fato cristão para justificar a adesão do espírito, e não as há bastantes  (no sentido de verdades evidentes) para fazer da Fé a conclusão de um raciocínio puramente matemático, humano.
    A Fé é racional, plenamente digna do nosso espírito  e da nossa vontade.



quarta-feira, 21 de setembro de 2011

VIAGEM AO REDOR DA BÍBLIA

    A Sagrada Escritura, e eu o creio, é um tesouro inesgotável de experiências profundas e de sublimes intuições religiosas. Esse tesouro, porém, chega até nós vinda de uma cultura há vários séculos de deistância, nascida de uma sensibilidade milenarmente distinta e responde a perguntas ou necessidades concretas que já não são, de foma alguma, as nossas.
    A Bíblia é de fato, para o crente, palavra de Deus, pois nela se expressa tudo aquilo que Ele quis nos manifestar, mas sempre e necessariamente, nas e com palavras humanas, por meio das quais consegue expressar-se. E estas palavras humanas, apesar de serem autêntica manifestação de Deus, trazem a marca de seu tempo e lugar. Traduzem a manifestação de Deus que chega até nós, é verdade, mas nos modos limitados de uma subjetividade, de uma sociedade, de um tempo e de uma cultura bem determinada. Assim, os moldes conceituais da Bíblia Sagrada, os marcos de referência de seus significados simbólicos dos quais lança mão, ou desapareceram ou, em muitos casos, perderam sua transparência para a cultura atual.
    A verdade é que os textos da Escritura se apresentam marcados pela época de sua elaboraação, a tal ponto que dificilmente podemos entender como esses documentos tão longínquos ainda podem falar-nos hoje. O que se disse naquela época tão distante, com as palavras, as imagens e os símbolos que os hagiógrafos tinham então ao seu alcance, cumpre-nos expressá-los hoje com nossos meios atuais e a partir de nossa nova situação. Mas temos de fazê-lo de maneira que através das palavras antigas e de uma sadia inculturação, a mesma realidade possa ser falada também na linguagem atual.
    Não podemos permanecer enclausurados na repetição por assim dizer mecânica de um passado morto, mas devemos abrir-nos para a recriação autêntica de uma experiência que há de ser tão atual como a refletida nos textos tradicionais e que exige de nós seja traduzida em palavras vivas que falem à nossa compreensão, e alimentem as possibilidades de nossa vida e de nossa história, nos tempos em que vivemos. Gostemos ou não, temos que pagar nosso tributo à pós-modernidade e aos sinais dos tempos, como gostava de dizer o Papa João XXIII.
    Atualmente nenhum estudioso sério da Bíblia admite que ela seja resultado de um ditado  divino ao hagiógrafo, ou que ela tenha caído do céu como um meteorito, como ainda se pensa em alguns setores da ecumene religiosa. A crítica bíblica tem mostrado cada vez com maior clareza que a Bíblia foi gestada aos poucos, no longo acontecer da História, através de intenso trabalho de reflexão religiosa a qual, por meio da experiência de sempre novas situações, vai descobrindo novos aspectos da presença de Deus no mundo. Ou seja, através dessas experiências, o hagiógrafo descobre o que Deus está tentando nos manifestar, não através de ditados ou de intervencionismos físicos, mas da capacidade significativa que adquirem certas situações específicas pessoais ou históricas. Por exemplo:na beleza e esplendor do céu, o salmista intui a glória do Criador; no sentimento de rebelião contra a opressão egípcia, Moisés desvenda que Deus se compadece dos oprimidos e quer a sua libertação. No seu amor e no sentimento profundo que o leva a perdoar sua esposa adúltera, o profeta Oséias descobre o perdão e o amor incondicional de Deus, apesar de toda a infidelidade humana.
    É preciso também que tenhamos sempre em conta que os autores bíblicos, a seu tempo e a seu modo, por não terem chegado ainda a uma concepção mais exata da face de Deus, podiam declarar a Seu respeito palavras e ações que muitas vezes não eram na verdade nem palavras nem ações de Deus. Eles simplesmente supunham que Deus nesse momento falava ou agia ssim, mas muito diferente era o modo com Deus falava ou agia na realidade. Exemplificando: em vários trechos do Êxodo, dos Números, de Josué ou dos Juízes, o autor ou autores desses livros colocam na boca de Deus a ordem terrível para exterminar a ferro e fogo povoações e povos inimigos inteiros, sem reparar em anciãos, enfermos, mulheres e crianças.
    Um exemplo entre muitos outros: o segundo Livro dos Reis nos apresenta a revolução de Jeú e a matança que levou a efeito como algo querido e mandado por Javé (2Rs 9-10). Entretanto, um século mais tarde o profeta Oséias condenou energicamente em nome do próprio Javé aquele derramamento de sangue que aconteceu na terra de Jezrael (Os 1-4). Ou pense-se ainda nos castigos coletivos "até a terceira ou quarta gerações", ou arbitrárias, como o do filho do sumo sacerdote que queria salvar de uma queda a Arca da Aliança, mas foi fulminado porque a tocou. "Davi teve medo do Senhor naquele dia",  diz-nos o 2Sm 6,9.
    Qualquer pessoa de bom senso perceberá claramente que tais fatos relacionados pela Bíblia correspondem não à vontade divina, mas à mentalidade do tempo: naquela época, interpretavam  que isso era o que Deus queria, e por essa razão atribuiram-no a Ele. Mais tarde, após longo e penoso processo de reflexão e de aprofundamento na intelecção da real natureza de Deus, a própria Bíblia deixa de pensar assim, e naturalmente ninguém hoje nega que isso é inconcebível, e que com toda certeza Jesus de Nazaré jamais diria uma coisa dessas.
    Conclusão: conforme o contexto, não nos é lícito interpretar como palavra de Deus  o que é palavra dos homens. Os desejos de vingança de Jeremias ou do salmo 137 (136), por exemplo. A verdade é que uma palavra de Deus pura, não contaminada por distorções humanas em diferentes medidas, não existe. Pelo contrário, a recepção, a compreensão e a interpretação devem ser intrínsecas à própria palavra revelada, como nos ensina uma sadia exegese.
    Em consequência, não aceito uma leitura literalista ou fundamentalista da Bíblia, isto é, tomar ao pé da letra  o que nela está contido, sem uma segura exegese histórico-crítica de seu conteúdo. Muitas denominações "evangélicas" fazem isto, e acabam resvalando para os maiores absurdos. Vários setores do catolicismo também o fazem, inclusive boa parte do Catecismo da Igreja Católica e a comunidade Canção Nova,  sem esquecer, é claro, a maioria das pregações nos púlpitos de nossas igrejas. Por causa dessa leitura fundamentalista da Bíblia, há muitas verdades que os cristãos, católicos e protestantes, afirmam, mas no íntimo chegam a não crer nelas. São demasiadas as palavras da Bíblia que dizem aceitar, mas suspeitando que alguma coisa não deve ser bem assim como está lá.
    Atualmente, diante dos progressos da pesquisa e da hermenêutica bíblica, nem o mais conservador dos teólogos pode - embora o pretendesse - levar ao pé da letra a estrela de Belém, ou a fuga para o Egito, ou a ascensão física de Jesus atravessando as nuvens para chegar ao Céu. Como dificilmente poderá crer na milagrosa entrada de uma legião de demônios numa vara de porcos, nem da moeda na boca do peixe para pagar o imposto devido aos romanos.
    Mais alguns exemplos pinçados aqui e ali, durante minhas leituras dos textos sagrados, ou lidos   em publições religiosas:
    - Quem é capaz de pensar que Deus castigou durante miênios a milhões e milhões de seres humanos por um pecado pretensamente atribuído a nossos primeiros pais, quando nenhuma pessoa decente é capaz de maltratar uma criança, por maior que seja o crime que seu pai ou mãe tenha praticado?
    - "Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina de acordo com Santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer, a herdar um pecado de um ancestral remoto?" (Dawkins, "Deus, um delírio").
    - Qual a mãe que poderia crer de verdade que sua pequenina criatura recém-nascida, diante da qual seu coração se desfaz em ternura, está em pecado,  possuída pelo demônio e condenada a nunca fruir da visão beatífica se morrer antes de ser batizada?  Esta postura fundamentalista é devida em grande parte a santo Agostinho, que foi o sistematizador da dotrina do pecado original. Aliás, além da ênfase no pecado original, nenhum teólogo importante até Lutero enfatizou mais o pecado do que Agostinho. A própria Reforma  Luterana, tão libertadora em outros aspectos, agravou a situação nesse ponto, insistindo na corrupção essencial da natureza humana e carregando as consciências com o enorme peso de responsabilidade por todo o mal que há no mundo. Felizmente, a nova Liturgia do Batismo, após o Concílio Vaticano II, abandonou aquela exdrúxula fórmula usada até tempos atrás, quando o sacerdote, depois de soprar três vezes sobre o rosto da criança a ser batizada, bradava com voz enfática: - "Sai dela, ó espírito imundo, e dá lugar ao Espírito Santo Paráclito..."
    - Em que cabeça cabe que Deus pudesse exigir  a morte violenta de seu filho feito homem, Jesus de Nazaré, para resgatar os pecados da humanidade, como lemos em muitos manuais de devoção em uso por aí? Creio que esta maneira de falar "pode levar a imagens grotescas de Deus como um tirano sanguinário, que exige a morte de um filho inocente para apaziguar Sua ira, imagens da morte de Jesus como um caso supremo de crueldade divina contra o filho."  (Loewe, Introdução à Cristologia).
    - É aceitável a monstruosidade de um Deus que, chamado Pai pelos cristãos, tenha exigido a outro pai, Abraão, que Lhe sacrificasse seu filho único e querido, Isaac, como prova de obediência? Comentando estes casos, o teólogo Joseph Ratzinger, (hoje Papa Bento XVI), em "Introdução ao Cristianismo", pg. 208, escreve: - "Diante  da atitude expressa em certas práticas religiosas impõe-se,
praticamente, a convivção de que a Fé cristã na cruz se baseia na imagem de um Deus que, em Sua justiça intransigente, exige o sacrifício de um ser humano, o sacrifício do próprio filho. Aterrorizados, muitos viram as costas a uma justiça que, com sua ira sinistra, torna implausível a mensagem do amor."
    - Quem pensaria hoje em louvar a Deus dizendo que Ele é um guerreiro que "se cobriu de glória afundando no mar cavalo e cavaleiro",  como se reza diariamente na Liturgia das Horas?
    - Quem veria hoje como um gesto de fidelidade e religiosidade profunda no cunmprimento de um voto que, no caso de Jefté, no Livro dos Juízes, implicava em sacrificar a Javé sua filha inocente?
    A respeito do pecado de Adão ser transmitido a toda a sua descendência, o teólogo luterano, Pannenberg, em sua Teologia Sistemática II, tem colocações muito oportunas que faço questão de citar: -"Foi rejeitada para a sensibilidade ética a afirmação de que Deus teria imputado o pecado de Adão a seus descendentes como culpa, ainda antes que eles tivessem cometido, de sua parte, qualquer ato mau. Este princípio, ao imputar aos filhos de Adão o pecado de seu ancestral, parece inconciliável com a fé na justiça de Deus e em seu amor que perdoa."
    - Pode conceber-se que um Deus que é amor, na ousada afirmação do evangelista João, se dedique a castigar  com tormentos inauditos e por toda a eternidade, no assim dito inferno, a um ser humano que muitas vezes, em momentos de fraqueza, tenha cometido uma ação que os moralistas chamam de pecado mortal?  E sem falar que o teólogo oficial da Igreja até tempos atrás, Tomás de Aquino, tenha afirmado na sua Suma Teológica (questão XCIV, art. III), que a contemplação dos tormentos padecidos pelos condenados, "aumenta o gozo dos bem-aventurados" no Céu? 
    - E por falar em céu, repito, é ainda possível tomar ao pé da letra a narrativa da ascensão física de Jeus ao céu, dizendo que Ele subiu,  já que Jesus não podia subir ao céu, pela simples razão de que não existe um lugar  lá no alto aonde subir?
    - Se Deus é tão bom e misericordioso e quer salvar a todos os seres humanos, por que aguardar tanto,  até a chegada de Jesus de Nazaré, deixando abandonados por séculos e séculos a todos os antepassados? É a pergunta que o filósofo pagão, Celso, fez aos apologetas cristãos de seu tempo.
    Estes são apenas alguns exemplos do modo de falar dos cristãos, mas que não tem mais lugar hoje em dia, diante de uma leitura crítica e consciente da Bíblia. Nesta leitura é de fundamental importância, como já foi lembrado, que se faça uma distinção urgentíssima entre aquilo que os autores bíblicos  pensavam em seu tempo,  e aquilo que nós, aprendendo com eles, devemos  pensar nos dias de hoje.
      E termino este estudo com duas frases para nossa reflexão no dia a dia:
    - Diga-me como é o seu Deus, e eu lhe direi como é sua visão do mundo e da vida; diga-me sua visão do mundo e da vida, e eu lhe direi como é o seu Deus.
    - É Deus um juiz que incute medo, legislador que dita e impõe deveres..., ou Pai que inspira confiança e promove a vida? Em suma: vive-se a religião como um peso, ou uma libertação?  

sábado, 17 de setembro de 2011

UM DEPOIMENTO PESSOAL


]    A morte recente de minha filha Raquel provocou-me uma perigosa depressão, e eu só consegui em parte livrar-me dela pela oração, pelo estudo e pelas constantes leituras, mas considerei que isto não seria ainda suficiente  para a volta à normalidade. Veio-me então a idéia de que escrever, libertar-me de minhas angústias através do diálogo com eventuais e compreensivos leitores me faria muito bem, e é o que tento realizar agora.
    Comecei a escrever semanalmente num blog de um competente ex-aluno meu em Barbosa Ferraz, cidade em que residi e lecionei por trinta anos ininterruptos. Esse blog, porém, era mais de cunho político, e eu me senti desambientado nele com meus textos em temática bíblica e teológica. Então decidi procurar outro.
    Antes de começar a colaborar com o Blog da Vida Eterna, editado por meu filho Carlos, pesquisei quase uma centena de blogs tanto evangélicos quanto católicos, e foi difícil encontrar um que satisfizesse minhas convicções religiosas ( = "cristão anônimo", como diria o renomado teólogo Karl Rahner). A maioria deles, os evangélicos, trazia mensagens de um sectarismo rançoso e ultrapassado, centrado no ataque ao espiritismo e ao sexismo; nas querelas estéreis entre arminianos e calvinistas, ou entre pentecostais e neopentecostais; nas refutações apologéticas às doutrinas contrárias à Bíblia; numa leitura bíblica fundamentalista e ao pé da letra, o que não condiz mais com a exegese moderna e sua constante investigação e abertura para novas perspectivas interpretativas.
    De sua parte, os blogs católicos não me animaram, quase sempre por defenderem posições tradicionalistas e completamente superadas pelas grandes reformas e transformações profundas realizadas no catolicismo pelo Concílio Vaticano II, que incorporou em suas decisões, de maneira muito positiva e revolucionária, várias exigências feitas por Lutero, por ocasião da Reforma Protestante.
    A bem da verdade, sou forçado a dizer que as decisões do Vaticano II foram muito além da reforma protestante que, no meu entender, não atingiu plenamente seus objetivos, e hoje, em vários aspectos, na confissão de muitos de seus líderes, parece pior que a Igreja Católica daquela época. Entre outras coisas, pela carência de um magistério central e, por professar a doutrina do livre exame na leitura da Bíblia, com uma pretensa e duvidosa assistência do Espírito Santo, propiciou a proliferação exacerbada de seitas de todos os matizes doutrinários.
    Tais seitas, algumas calcadas na busca de prosélitos através de uma pregação com ênfase em milagres, curas, sessões de exorcismo, ou procurando primordialmente vantagens financeiras, chegaram a transformar seus templos em verdadeiros supermercados da fé. Outras, deixando de lado a preocupação com uma autêntica evangelização fundada em sadia exegese das Sagradas Escrituras, partiram, nas suas pregações públicas no rádio e na televisão madrugadas a dentro, para um biblicismo e uma bibliolatria que mais confunde do que orienta os fiéis.
    Em meus textos no Blog da Vida Eterna, e agora neste, procuro mostrar um ecumenismo positivo, que me parece constituir o grande anseio de uma parte ponderável da ecumene cristã nos dias de hoje.
Com efeito, nestes nossos tempos de globalização, de abertura de fronteiras e de intercâmbios internacionais em vários setores da atividade humana, há também um clamor em várias confissões religiosas, englobando a Igreja Católicas, a Luterana, a Anglicana, a Ortodoxa, a Copta e outras, para o fim do sectarismo, das disputas apologéticas, dos confrontos doutrinários e de preconceitos de parte a parte.
    Neste contexto, a Igreja Católica, a Ortodoxa e as igrejas tradicionais da Reforma já vêm dialogando há tempos em vista de um Credo comum (respeitada a identidade específica de cada confissão), e a uma atuação  evangelizadora conjunta calcada apenas na difusão da Palavra de Deus.
    É sobejamente sabido que as confissões minoritárias evangélicas (como as centenas existentes no Brasil)  não vêem com bons olhos o ecumenismo, por muitos e variados motivos. Mas se todas as confissões religiosas cristãs têm o Senhor Jesus como meta de suas pregações, como único mediador da salvação querida por Deus, como aquele que revelou o verdadeiro rosto de Deus misericordioso e Pai, não seria mais do que justo que se termine com as querelas e dissensões sectárias, e se caminhe para uma atmosfera de paz, de colaboração mútua e de compartilhamento em todos os setores em que interagem as mais diversas confissões?
    Este é o meu ponto de vista, certamente contestável por muitos e sujeito a sérias críticas, mas fundamentado em muito estudo e constante reflexão sob a guia dos mais renomados teólogos e exegetas  da atualidade. Neste sentido é que tenho colaborado com o Blog da Vida Eterna e agora criado o meu próprio, o "bloqdomestre.blogspost.com/",
    Uma verdade faço qustão de salientar: sinto-me bem melhor psiquicamente, quase livre totalmente da depressão, tomei gosto por escrever e dialogar com eventuais leitores, o que para mim tem sido uma libertação de meus demônios e uma eficiente catarse.
    Fica aqui este meu depoimento pessoal, à espera da crítica sincera e construtiva, que me propiciará uma eventual correção de rumos e um melhor e mais duradouro compromisso com a verdade, que é o que realmente me importa.


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

PELOS LABIRINTOS DA VIDA

    Sacerdote recém-ordenado e ainda inexperiente, mas cheio das mais sinceras intenções, fui à favela na tentativa de levar a mensagem de Jesus de Nazaré àqueles irmãos meus, que eu julgava pecadores irremediavelmente despojados da salvação divina, se não lhes fosse anunciada a boa nova dos Evangelhos. Eu me esquecia de que eles, crucificados como o Cristo, já viviam o inferno verdadeiro, muito mais candente e terrível do que o inferno aprendido no catecismo.
    A favela, porém, desde o primeiro instante, transformou em pó os meus projetos de evangelizador, atracou-se comigo, atirou-me ao chão e violentou-me inexoravelmente, e eu me sujeitei a ela. Mostrou-me cruamente que o Cristo que eu pretendia levar-lhe era um cristo quimérico, estudado nas assépticas aulas de Teologia, um cristo-fantoche criado pela minha mente idealista, um cristo fabricado artificialmente na atmosfera irreal e alienada do seminário.
    Despojado repentinamente de todas aquelas certezas inabaláveis que até então balizavam minha vida de sacerdote recém-ordenado, eu me vi nu e indefeso diante da realidade desumana da favela que me mostrou, como o clarão de um relâmpago, a face verdadeira do Cristo, encarnado em cada um daqueles deserdados da sorte que eu, do alto da minha suficiência filosófica e teológica, pretendia salvar. Ali estava o Cristo oculto atrás das mãos ágeis do pivete; ali estava o Cristo embaixo da maquiagem vulgar e escandalosa da menina-moça que vendia o corpo quase ainda impúbere a fim de comprar remédio para o irmãozinho doente que definhava no barraco; ali estava o Cristo disfarçado no traficante de drogas, que foi levado ao comércio infame pelo desemprego crônico e pela fome da mulher e de cinco filhos anêmicos, que pediam ao menos algumas migalhas de vida.
    O choque foi tremendo para mim. O Cristo que encontrei na favela nada tinha daquele meigo e doce nazareno que os padres lustrosos e bem nutridos do seminário tentaram me mostrar nas páginas mal lidas dos Evangelhos.
    Eu compreendi num relance que se é verdade que o Cristo se identifica, segundo São Mateus, com cada ser humano que sofre, que padece fome e sede, que se definha numa prisão, que se decompõe num leito de hospital, que está despido ou com frio - então a favela me mostrou, sem sombra de dúvidas, o que doze anos de seminário não conseguiram fazer: ali na favela é que estava o verdadeiro Cristo com quem eu deveria me identificar, transformar no meu próprio sangue os seus sofrimentos, os seus cravos, a sua coroa de espinhos, a sua cruz, enfim, se eu quisesse realmente ser seu discípulo. O cristo-pivete, o cristo-prostituta, o cristo-traficante-de-drogas, o cristo-bicheiro, o cristo-encurralado nos pátios mal cheirosos dos educandários de recuperação, o cristo-torturado e cheio de estigmas pelo corpo, frutos da truculência e dos cassetetes da polícia militar.
    Sim, eu vi a favela. Mil barracos dependurados nos barrancos do Rio Belém, enrodilhados sobre si mesmos, abraçados todos num amplexo violento de intrigas e concorrência na luta pela vida. Lá pelas bandas do aeroporto, na tumultuosa e celebrada capital ecológica do Paraná.

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    Trinta anos depois, não mais sacerdote novel e ingênuo, porém calejado e endurecido nos embates da vida, eu estava de novo na favela. Fora chamado para celebrar a mais estranha das missas de todo o meu sacerdócio, na qual  a Hóstia oferecida em oblação não seria nem o pão nem o vinho. No altar do sacrifício eu ergueria aos céus o corpo, o sangue, as lágrimas, as amarguras, as frustrações, os sofrimentos e humilhações sem conta; eu ofertaria a Deus-Pai, definitivamente, a vida, a paixão e a morte do Cristo-favelado!

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    Amanhecia na favela.
    O rapazola respirou fundo, espreguiçou-se, saiu do barraco e entrou pela viela cheia de detritos. Deixou para trás a mãe e quatro irmãos menores. Será que não se esquecera de que ele também era menor, apesar de dar ares de ser homem?
    O rapazola entrou pela estrada. E a estrada o fez de novo criança. Uma criança franzina, desconfiada, olhada com reservas pelos adultos ressabiados, que se crispavam nervosos quando cruzavam com ele na confusão dos barracos.
    Os becos escuros da favela iniciaram-no na vida com o brinquedo predileto de polícia e bandido, e este brinquedo se tornara dura realidade no dia em que seu pai, denunciado por tráfico de entorpecentes, fora levado por dois brutamontes do COPE curitibano. Jurara inocência, mas o telefonema anônimo, pelo 180, falara mais alto, e levaram-no algemado. Levaram, mas se esqueceram de devolvê-lo vivo. Disseram aos jornais que numa tentativa de fuga ele agredira um dos agentes penitenciários, fugiu e foi atropelado por um ligeirinho, na avenida movimentada. A mãe, coitada! tornara-se mãe e pai. Dera à luz, por amor, a cinco filhos. Agora viúva, para sustentá-los, fizera-se trapo: vendera a beleza, que ainda lhe restava, à dura faina de catadora de papéis nas ruas da capital; perdera a energia no trabalho pesado e ininterrupto; vencera o orgulho natural da pessoa em troca de um mísero e sofrido salário de fome.
                                                       
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    - Que belo garoto! Olha só os olhos dele...
    Somente nesta ocasião é que as madames do Batel vinham à favela, em reluzente carrão de primeiro mundo. Mas não para ajudar. Não para levar o bálsamo da bondade desinteressada aos deserdados da sorte. Era um curandeiro famoso da favela o alvo das peregrinações grãfinas.
    - Que belo garoto! Olha só os olhos dele...
    Ele ria a bom rir para si mesmo, pensando se seus olhos eram mesmo o que as madames diziam, pois no barraco não havia espelho em que olhar-se. Só via, perfeitamente, seu corpo franzino, seus braços magros, suas roupas surradas e sujas da faina de catar papéis nas ruas ajudando a mãe; os pés encardidos nas havaianas encontradas ou furtadas num campinho de peladas nas imediações.
    - Que belo garoto! Olha só os olhos dele... não são um convite para o amor?
    Ele então, assustado com o repentino entusiasmo erótico das madames, voltaria correndo, entraria no barraco, olharia meio ressabiado para a mãe. Ela certamente, como todas as mães do mundo, adoçando a tristeza do semblante cansado, o fitaria com ternura:
    - O que você tem, menino? Vamos, desembucha!
    - Mãe, que é amor?
    Talvez, sem esperar resposta, ele mesmo se atirasse confiante nos braços maternos, como que respondendo a si mesmo. Entrega. Doação. Seria apertado contra o regaço da mulher. Como uma sacerdotisa, ela o levantaria em seus braços, olhos fitos no céu:
    - ...Deus!
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    Os problemas de sua vida passaram a incluir o amor. Sentia, mas não compreendia. O amor. Tudo o que o rodeava era pura luxúria.
    - Como é, cara. Você já está na idade de transar. Não tem uma mina por aí, prá se divertir? Arranja logo uma, cara, se vira!
    Tímido, desconfiado, certo domingo aproximou-se de uma garota que o coração apontava como devendo ser sua. Desajeitado, com medo de um fora, coração aos pulos, sussurrou: - Olá! - para a menina-moça.
    - Vê se te manca, ô otário! Vai logo dizendo o que quer. Não ganhei nada ainda hoje, e não tenho tempo prá perder com garoto. Quanta grana tem aí?
    Era dessas moçoilas que transpiram maldade por todos os poros, cujos olhos mostram abismos de lama. Sua primeira experiência foi desilusão. Ele procurava amor. Aquilo que a garota lhe oferecia não era amor.
    Outro dia foi num biarticulado da URBS. Azar dos feios. Bolsos vazios. Tentou engambelar o cobrador, viajar de graça para o centro, dando uma de que alguém lhe furtara os trocados, mas o homem da catraca já manjava de longe malandragem de pivete e não foi na conversa. Esbravejou, ameaçou prender, entregar no Distrito. Foi aí que uma caridosa mão se apresentou e pagou-lhe a passagem. O rapazote viu o gesto e tentou agradecer. Mas faltava-lhe a prática da gratidão. Olhou apenas, fundo, a mão benfeitora. Sentiu um tapinha nas costas e algumas palavras que não entendeu. O barulho do ônibus e o trânsito difícil as encobriu.
    O benfeitor anônimo desceu na próxima parada. Ele desceu também um pouco atrás. Viu o homem entrar por uma porta que ele sabia que era de uma igreja. Curioso, furtivo, o rapaz o seguiu. Havia visto muitas construções daquele tipo, mas nunca por dentro. Ressabiado, entrou pela porta entreaberta.
    Lá na frente, enorme, dominando tudo, sob a luz viva dos vitrais, o Crucificado.
Olhos tristes em direção à terra; boca contraída, como a pedir água; braços e mãos estendidos num gesto de quem recita um poema de dor. Um verdadeiro crucificado, coroado de espinhos, lado aberto, corpo sangrando. Sofrimento. Dor.
    Rápido, seu pensamento voou para a favela. Aquilo ali, pendurado na cruz, bem poderia ser um homem da favela, um retrato da desumanidade por que passavam seus irmãos de desdita. Teve pena dele. Quem seria? Com dificuldade soletrou: INRI.
    Avançou um pouco mais, admirando tudo, em descobertas nunca esperadas. Uma grande mesa no centro, com dois castiçais. Ao lado uma lampadazinha vermelha tremelicando acesa num copo de azeite. O desconhecido que lhe pagara o ônibus passou defronte à mesa. Uma genuflexão simples, piedosa.
    - Por que isso?
    - É que ali está o Pão Sagrado, o corpo de Cristo, a Hóstia Santa...
    - Onde? Posso ver?
    - De noite. Na hora da novena.
    Não voltou para a favela, não foi ao parque de diversões. De noitinha, retornou àquela casa desconcertante, que lhe prometia grandes revelações. Lá estava, junto à mesa, bem debaixo do enorme Crucificado, o homem misterioso, só que agora com estranhas vestes:
    - Pão?
    - É alimento.
    - Corpo?
    - É vida.
    - Hóstia?
    - Hóstia? Hóstia... Não, não sei.
    Mais tarde, altar com velas acesas. Alguma coisa brilhante parecendo um sol feito de ouro. No centro, a Hóstia, branca, branca, pequenina. Fumaça perfumada, que mais tarde ele soube que se chamava incenso. Muita gente de joelhos, cantando.
    Dentro de seu peito, no fundo de seu coração, sentiu que alguma coisa o roía, parecia que alguém muito próximo queria falar-lhe, e teve a impressão de que sua vida estaria para sempre, de algum modo misterioso e ainda obscuro, ligada àquela Hóstia que tanto o fascinava.

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    Ele estava literalmente duro. Recomendaram-lhe certo doutor, um deputado do partido do governo, homem rico e com fama de quebra-galhos dos pobres. Na sala de espera, a recepcionista, distante e fria:  
    - Tem muitas pessoas na frente. Sente-se e espere sua vez.
    Depois, horas mais tarde, a timidez, o nó na garganta, o pedido balbuciante e difícil de sair. - Volte amanhã. Tentarei dar um jeito. Está difícil prá todo mundo. O governo está fazendo o que pode. Tenha um pouco de paciência.
    Um episódio a mais na vida de todos os dias: um homem anulando outro homem. Lá naquela casa estranha, a Hóstia, cercada de gente, não parecia ser assim. Nada de respostas secas. Nada de evasivas. Estava sempre aberta a todos. Negros, brancos, moços, velhos, crianças, homens, mulheres. Todos confiantes. Todos cheios de fé, na espera do dom que nunca falha.
    - Pai nosso...
    - Pai nosso?!
    O pão em casa acabou de vez. Tinha ouvido não sabia onde: Comerás teu pão com o suor de teu rosto!   Isto não lhe dizia respeito, não era com ele. Não trabalhava, não suava: não merecia o pão.
    - O que será feito do Pão Sagrado?
    - Comido.
    - Eu tenho também água viva...
    - Eu tenho sede. Dá-me dessa água.
    - Quem comer da minha carne...
    - Eu tenho fome.
    - Se conhecesses o dom de Deus...

                                                          *********************

    - Entra logo, cara. Venha ver que dom estas minas podem te oferecer. Entra logo, é barato, as meninas são novinhas e não têm nenhuma doença. O que está esperando, cara? Entra logo. Uma vez só. Não vai se arrepender...
    O ambiente era aquele de que muitas vezes ouvira falar, quando moleque, entre cochichos e risos disfarçados. Luzes semi-acesas, muita fumaça de cigarro, muita bebida, muitos ritmos sensuais, mulheres bonitas, quase nuas, maquiagem exagerada, se oferecendo, se doando, se vendendo. Nunca tivera coragem de visitá-las. Agora o amigo, desempregado que conseguira um bico de segurança ali, o estava convidando, com insistência.
    O corpo. A adoração do corpo. Perder a consciência, esquecer a miséria, o desemprego, embriagar-se com a carne palpitante daquelas mulheres, deixar-se dominar pelas emoções incontroláveis.
    Mas, e o corpo do Cristo crucificado? O corpo de Cristo! Este sim, era um corpo diferente, adorado, respeitado, venerado. Nada de profanações baratas. Sim, a dignidade do corpo! E a Hóstia, toda branca, toda pura!
    - Aqui só tem barulho, algazarra...
    - Não seja trouxa, cara. Isto é alegria, é festa, é prazer!
    - Tudo muito escuro...
    - Eh, meu, no escuro é muito melhor.
    - Pois se minha vida até hoje é pura escuridão, eu quero é luz, muita luz para mim e meus filhos!

                                                                   ********************

      O volver contínuo de desejos e frustrações, de esperanças e desenganos, a vida inteira infeliz e sem futuro sofreu interrupção violenta um dia. A desnutrição, os traumas do desemprego crônico, a fome, o frio, a broncopneumonia, a absoluta falta de recursos no barraco.
    Nada mais havia a fazer. Chegara a hora e a vez de Deus: a celebração da Missa, a oblação do seu corpo e do seu sangue.
    O ritmo da favela aparentemente não mudou; mas, para quem tinha olhos de ver, a Providência Divina a tornara uma patena, sem ouro, é verdade, pois aí reinava a pobreza extrema. Mas uma patena sublime sobre a qual descansaria a hóstia do sacrifício.
    Morria, repetindo sem cessar:
    - A Hóstia! A Hóstia!
    Num gesto de pai, o homem misterioso do ônibus, o sacerdote endurecido nos embates da vida, chamado à favela, estreitou ao seu coração um novo Cristo moribundo, o Cristo favelado.
    - A Hóstia! A Hóstia!
    - Você sabe o que é Hóstia, meu filho? Hóstia é ser vítima como você sempre foi. Hóstia é deixar-se imolar... É sofrer por amor de Alguém... do homem da favela... do Crucificado... de Deus.
    - Estou todo sujo... fiz muita maldade... a Hóstia é branca...
    - Você agora é a Hóstia. Deus o limpa e purifica com as lágrimas que você está derramando... Você é o filho que volta.
    - ...a Hóstia!
    Já nada mais falta. Tudo está consumado. E prossegue a Missa:
    - Recebei, Pai Santo...

                                                            ******************** 









    

   
   
   
 





quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O SOFRIMENTO DOS INOCENTES

    
   padeceu injustamente, mas até se ofereceu a esse padecimento para nos trazer a salvação. Estamos aqui na presença de uma realidade primordial de nossa Fé, a mais misteriosa, porém a mais essencial, ou seja, a misteriosa solidariedade dos inocentes com o sofrimento alheio. Esta solidariedade outra coisa não é que sua união misteriosa aos padecimentos de Jesus. Os inocentes que sofrem são os principais testemunhos de Deus, aqueles que recebem as maiores graças divinas porque, melhor que os outros, salvam os seus irmãos humanos, por estarem mais unidos a Jesus moribundo e ressuscitado.
    Sei perfeitamente que é preciso lutar sem tréguas contra o sofrimento dos inocentes, mas sei também que o sofrimento e a morte deles não é uma catástrofe definitiva: é o reverso de um mistério de união com a Cruz. Neste mês estamos chorando o primeiro ano de falecimento de minha filha Raquel. Todos nós gostaríamos de sua presença esfuziante aqui com a gente, mas como isso não é mais possível, que as minhas palavras a seguir sejam um memorial de homenagem e de saudade, já que ela partiu de maneira tão precoce para o Reino de Deus, na eternidade.
Sempre que leio, falo ou reflito sobre o mal físico e moral presente neste mundo, vem-me logo à mente o problema do sofrimento dos inocentes. Este sofrimento, e principalmente o das crianças, seres indefesos, continua sendo no meu entender a ponta mais aguda do problema do mal, e sou muito sensível a ele.
Embora não especialista no assunto, tenho apenas uma resposta a dar. Esta resposta se resume no seguinte: ou se admite ou se rejeita a Fé cristã. Se se admite, é necessário assumi-la em sua totalidade e considerar que na Revelação de Deus são os justos, os santos, os inocentes, que pagam pelos outros.
É o mistério das bem-aventuranças, no ensinamento de Jesus de Nazaré.
Lembremo-nos que o maior torturado de toda a história foi justamente Jesus de Nazaré. Ele não só
    A solidariedade dos inocentes  no sofrimento alheio é um fato. Nenhuma religião, com exceção da cristã, lhe oferece uma explicação. É uma explicação, eu concordo, centrada em um mistério, mas se o rejeitarmos, nos encontraremos diante de uma escuridão ainda mais densa e impenetrável. Só uma visão completa do pecado e da redenção, em que a alma e o corpo, o espírito e a matéria desempenham o seu papel, tanto no bem como no mal, é que nos permitiria explicar, de algum modo, o problema real e candente do sofrimento,
    Estou consciente de que, nesta tarefa, deveremos contar permanentemente com o socorro e a inspiração de Deus, por ser Ele o antimal por excelência. Com efeito, a Bíblia Sagrada, que nos testemunha a palavra de Deus, também nos assegura com plena certeza que após o calvário e a cruz, Deus nos coroa com a glória da ressurreição.
    É com esta certeza no coração que nós, ao mesmo tempo que choramos a morte da Raquel, glorificamos também a Deus, porque sabemos que o calvário e a cruz por que ela passou no seu seguimento de Jesus, mereceu para ela a glória da ressurreição no seu sofrimento e na sua morte dolorosa.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A PARÁBOLA DA ESPERANÇA

 
    - "Amsterdam, sexta-feira, 26 de maio de 1944 - Mais de uma vez tenho-me perguntado se não teria sido preferível para todos nós não nos escondermos, e estarmos todos juntos a esta hora, do que passar toda esta miserável situação, sobretudo por causa dos nossos protetores que, pelo menos, não estariam em perigo. Mesmo que esta idéia nos faça recuar, amamos ainda a vida, não esquecemos a voz da natureza, e esperamos, apesar de tudo e contra tudo."
    - "Terça-feira, 6 de junho de 1944 - A mais bela coisa do desembarque dos aliados é a idéia de me tornar a reunir a meus amigos. Tenho sentido a faca na garganta e, oprimidos há tanto tempo por esses horríveis nazistas, não podemos impedir-nos de estar impregnados de confiança, pensando na salvação de nossos amigos... Margot diz que talvez eu possa enfim ir à escola em setembro ou outubro..."
                                                           **************
    Até aqui, o diário de Anne Frank. Ela era judia e teve de se esconder durante meses, nos fundos da loja de uma pequena casa holandesa. Foi num livro de imagens consagrado a Israel que encontrei o texto acabado de citar. Na frente, em página inteira, a fotografia de uma jovem, levando na mão estendida um pinheirinho, um dos seis milhões que a juventude plantou nos arredores de Jerusalém, floresta de mártires, floresta dos seis milhões de judeus mortos pelos nazistas e que o deserto fez reviver. Essa jovem parece pensar em Anne Frank, da qual um texto que li mais tarde me informou que ela não foi à escola, porque morreu num campo de concentração nazista, em Bergen-Belsen. A cabeça da jovem está ligeiramente voltada para quem olha; à sua direita vê-se o braço de um rapaz, levando também uma muda de pinheiro... Ali está a esperança que nasce, inscrita num gesto, e cantada pelo profeta Ezequiel, quando disse: - "Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. Eis que eles dizem: Os nossos ossos secaram e desapareceu a nossa esperança... Assim diz o Senhor: Eis que eu abrirei as vossas sepulturas, e vos farei sair dos vossos túmulos, ó meu povo, e vos trarei à terra de Israel!"
    Que terra de Israel Anne Frank encontrou neste mundo? Eis a pergunta que nos faz esta jovem judia, porque o povo de Israel é a imagem mais nua, mais miserável e mais verdadeira, da condição de homens e mulheres deste nosso mundo. É a pergunta que nos fazem os milhões de pessoas que morreram e ainda morrem hoje, cativos e aflitos, em seus corpos ou em suas alms:
    - "Que fizestes das nossas esperanças? Que fizestes do Senhor, esperança do mundo?"
                                                            *****************
    - "Vivemos num tempo em que numerosas pessoas estão sem esperança!" - afirmava tempos atrás o Conselho Ecumênico das Igrejas. Muitos cristãos, por seu lado, fizeram da sua esperança uma caricatura, uma espécie de álibi disfarçando a sua deserção perante os encargos da vida. Sabemos que a esperança é árdua, que reclama esforços, mas "a esperança faz viver", dizia-se, porque um dia ou outro se alcança o porto.
    Milhares de homens e mulheres, neste nosso mundo, aguardam um mínimo de felicidade; e têm razão, devemos ter a coragem de dizer. Que pensariam eles da capa de uma revista de circulação internacional, mostrando em primeiro plano soldados com fuzis e metralhadoras, e em segundo plano a fumaça de incêndios devorando cidades? E no entanto seres humanos ousaram chamar essa operação militar de "ofensiva esperança"...
    Disse um escritor francês que o sofrimento e a derrota são a intervenção de Deus para que homem e mulher não se instalem numa condição que não é a beatitude, sua vocação. Na longa história de Israel, como na história da Igreja, os inimigos e os adversários têm uma função providencial. Cada vez que a Igreja deixa perder ou negligencia uma partícula da verdade de que é depositária e que tem a obrigação de fazer frutificar, um adversário se levanta - ironia da história! -  Justamente em nome dessa partícula da verdade que a Igreja abandonou,  esse inimigo ou adversário ataca os cristãos em nome dessa verdade parcial. Pense-se na utilidade da Renascença, que salvou a Igreja da tentação do poder temporal e da tirania intelectual. Pense-se em Nietzche, que nos ajudou a não fazer do Cristianismo uma ética mórbida; pense-se em Freud, em Marx. Cada adversário se tornou indispensável por uma fraqueza dos cristãos.
    Se os cristãos nada mais anunciam aos pobres, outros anunciarão aos pobres a justiça; mas em troca investirão contra a cristandade para a despedaçar, como outrora o assírio e o egípcio atacaram Israel e o devastaram, quando ele se mostrara infiel ao Deus da Aliança.
    Mais do que qualquer outra coisa, os cristãos devem tomar a seu cargo a esperança de homens e de mulheres. É necessário dar à esperança todas as suas dimensões, porque sei também de um cristão, e dos bons, que lançou na Semana de Intelectuais Católicos, da França, uma frase verdadeiramente aterradora: - "Nós raptamos o Senhor Jesus, e o resto do mundo não sabe onde nós O pusemos... Talvez a grandeza do século a que pertencemos esteja em tornar Cristo acessível, se assim me posso exprimir, ao resto do mundo." (François Mauriac).
    Para quantos milhões de seres humanos o Cristianismo não passa de uma religião exclusivamente ocupada com a salvação da alma, quando não é identificado com uma evasão mórbida diante do mundo, uma obsessão da carne, um medo de tudo que é verdeiramente humano?
    Nós vivemos numa época espiritualmente incomparável e grandiosa, porque rica em possibilidades e em perigos. Mas se ninguém for capaz de se colocar à altura das suas exigências, ela poderá converter-se na era mais miserável da história, marcando o retrocesso da humanidade.
    Entretanto, a criação inteira NOS espera.
    E estaremos nós prontos para apostar tudo pela salvação dos homens e das mulheres do mundo inteiro?

Relembrando os Pecadilhos da Juventude

I - Oração a meu santo padroeiro:-

                            São Luís de Camões, grão padroeiro
                            De meu ousado vôo em busca da Arte:
                            Eis-me aqui a teus pés, a suplicar-te
                            Que sejas o meu guia e conselheiro.

                                                   Eu te louvo, Camões e, com louvar-te,
                                                   Dou-te provas de afeto verdadeiro
                                                   Este Poema, de todos o primeiro,
                                                   Levando-o comigo a toda parte.

                            Diante do teu estro que me assombra
                            Rebenta em borbotões, à flor dos lábios,
                            Este soneto que exaltar-te vem.

                                                  Arbusto humilde que nasceu-te à sombra,
                                                  Aceita-o, ó sábio entre os mais sábios,
                                                  Nos séculos dos séculos. Amém.

II -  Viver:-

                          Cai a procela num rugir tristonho,
                          Sibila o vento num furor infrene;
                          Nessa tormenta em que a natura treme
                          Rutila o raio com fragor medonho.

                                                Enchendo o nauta de pavor mortal
                                                As ondas bramam no oceano irado;
                                                Com as velas rotas o batel ousado
                                                Do mar enfrenta o vagalhão fatal.

                          A nossa vida é um batel perdido,
                          Que em meio ao negro turbilhão do mundo,
                          Com as velas rotas navegando vai...

                                               A nossa vida é um batel perdido;
                                               Frágil batel, que sobre  o mar profundo,
                                               A pouco e pouco num gemer se esvai!

III - Noturno:-

                         Seguindo a minha estrela triste e escura
                         Fui por remoto mar em lenho lenho,
                         Buscando para a vida sem ventura
                         Bonanças da ventura que eu não tenho.

                                              No entanto só me coube a sorte dura
                                              Que em todo tempo maldizendo venho:
                                              O anseio de buscar na sepultura
                                              O prêmio desta vida que desdenho.

                         É grande o desconcerto do meu fado,
                         Pois nenhum breve gozo ele consente
                         Ao pobre trovador desventurado.

                                              Assim, eu vou chorando a triste sorte
                                              Que me tornou um mísero descrente,
                                              E fez-me odiar a vida e amar a morte.

IV - Se:-

                        Se o fogo que em meu peito jaz sepulto
                        Recalcado por todas convenções;
                        Se as chamas de desejos que eu oculto
                        Não tivessem o freio das sanções:

                                              Se os homens renegassem o seu culto
                                              Imoderado às leis e restrições,
                                              De modo que eu pudesse, livre e inulto,
                                              Satisfazer meus sonhos e ambições:
                          
                        Se todos fossem existencialistas,
                        Vivendo sua vida integralmente,
                        Sem temerem jurados nem juristas:

                                               Enfim, se nesta terra miserável
                                               Existissem prazeres tão somente,
                                               Tu serias, ó mundo, formidável!

V - Misantropia:- ("Odi profanum vulgus et arceo" - Horácio, Ode I)

                        Eu odeio e detesto a plebe vil e abjeta
                        Que ao me ver a cismar nas curvas do caminho,
                        Com ironia diz a quem lhe está vizinho:
                        - Ou é um pobre louco, ou mísero poeta!

                                                Buscando a misteriosa e suspirada meta
                                                Onde a Poesia verdadeira tem seu ninho,
                                                Sem nunca adormecer à sombra de um carinho,
                                                Eu vou vivendo, assim, qual solitário asceta.

                        Se for moléstia odiar um homem  a outro homem,
                        Desejo se prolongue a minha, muito embora
                        Sofra eu dores cruéis que aos poucos me consomem.

                                               Odeio a todos. Amo apenas a Poesia
                                               Que em seus braços me abriga, em me tirando fora
                                               Da sociedade vil, hipócrita, sombria!

VI - Lacrimae rerum:-

                        Sempre que morre o sol invade-me a tristeza!
                        Em minh¹alma  então sinto o fel da desventura,
                        E horas fico a cismar se esta cruel tortura
                        Nasce de mim ou da impassível natureza.

                                             Ao ver sumir o sol no abismo que o devora
                                             - Em meus olhos brotando as lágrimas do pranto -
                                             Já não sei, confundido entre a surpresa e o espanto,
                                             Se choro a sua dor, ou se ele é que me chora!

                        A pouco e pouco sobre os vales anoitece;
                        Tudo se vai sumindo, enfim, desaparece;
                        Uma folha sequer se vê da espessa alfombra.

                                            No meio deste caos imenso, desta calma,
                                            Eu já não sei se a sombra é que me invade a alma,
                                            Ou se é de minh¹alma, enfim, que nasce a sombra!

VII - Mariazinha:-

                        Mariazinha, a mais faceira
                        Das irmãs minha onde está?
                        - Ao velho bosque foi, ligeira,
                        Procurar lenha e volta já.

                                          Ó meu amigo, vamos fala,
                                          Por que ela ainda não voltou?
                                          - Já foram muitos procurá-la,
                                          Ninguém no entanto a encontrou...

                        O que será que aconteceu?
                        Por que esses prantos, esses gritos?
                        Algo terrível sucedeu?

                                         Mariazinha regressou?
                                         - Trouxeram só seus sapatitos:
                                         Dizem que um lobo a devorou!

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A mulher de Nazaré

Através deste blog venho prestar uma homenagem a todas as mulheres que, de um modo ou de outro, seja lendo, seja comentando ou criticando os meus textos aqui publicados, participam desta página, que é dedicada a todas as pessoas de boa vontade: Danny, Rosana, Lidiane, Leonor, Malu, Márcia, Zulmira, Renata, Dilma, Ana Cláudia, Geórgia, Kaoma, Maria Mariah, Jaque, Kátia, Daiane, Mônica, Amanda, Susy, Juliana, Bernadete, e os blogs Borboletas e Blogmania. Se esqueci alguém, que me perdoe. Para esta homenagem a essas ilustres mulheres, tomo como ponto de partida a singela história também de uma mulher, cuja vida vem narrada em poucas linhas nas páginas sagradas da Bíblia.
Esta mulher foi predestinada por Deus a receber o maior de todos os dons possível a um ser humano receber neste mundo. Ela foi a única a recebê-lo, e antes dela, nem depois, nenhum outro ser humano creio que poderá ser favorecido com tal dom: o de colaborar com a sua própria carne para que o Verbo Eterno de Deus se fizesse homem, na pessoa de Jesus de Nazaré,  a fim de que a salvação chegasse a todos os homens e mulheres deste nosso mundo corrompido pelo pecado.
À voz do mensageiro de Deus que lhe informava ser ela a favorecida por esse dom inefável de Deus, na sua simplicidade e abertura a tamanha graça ela respondeu que era a serva do Senhor, e que se fizesse nela a vontade de Deus. E o Verbo se encarnou, e a mulher exclamou, extasiada: -"O Todo Poderoso fez grandes coisas em meu favor, e doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada!"
Minha homenagem às mulheres amigas deste blog está fundada na vida desta jovem mulher na Palestina dominada pelos romanos, que se tornou o receptáculo do Verbo Eterno de Deus, e com Ele agora tornado homem, na pessoa de Jesus de Nazaré, a salvação chegou até nós e nos tornou herdeiros do Reino de Deus.
Observando a vida desta mulher, com seu marido José, e com seu filho Jesus, imaginamos que sua vida simples na aldeia de Nazaré transcorria como num conto de fadas. Tudo ali seria fácil como num idílio. A voz divina de Jesus ressoando pela casa, e o Menino dando abraços que seriam, ao mesmo tempo, de uma criança e de um Deus. E era bem assim, não, porém, como um conto de fadas. Isto porque nos esquecemos de que a vida terrestre dessa mulher se desenrolava à sombra da fé que nada enxerga, que não compreende, mas confia nos desígnios impenetráveis de Deus. Esquecemos do enorme peso, esquecemos da renúncia exigida por essa vida de fé que fizeram dessa mulher um exemplo singular para as mulheres de todos os tempos e lugares. Nós lhe atribuímos uma espécie de visão intuitiva de Deus em miniatura, da qual nem a Bíblia fala, e que se opõe mesmo aos dados históricos fornecidos pelo Evangelho de Lucas. Desconhecemos assim a verdadeira grandeza dessa mulher, que reside principalmente na sua vida de fé.
A vida inteira da mulher de Nazaré está marcada pelas duras exigências de uma fé que não compreende, mas confia. De uma fé que desabrocha através de meditações sempre mais profundas ao contato com o divino garoto que cresce. O evangelista Lucas é muito claro a esse respeito. Quando, aos doze anos, Jesus se perde por ocasião de uma peregrinação a Jerusalém, a mulher e seu marido conhecem três angustiantes e terríveis dias. À reprimenda da mãe:  "Por que nos fizeste isto?”, o Menino-Deus responde: - "Não devo tomar conta das coisas que são de meu Pai?" E Lucas acrescenta que José e a mulher não compreenderam o que Jesus lhes dissera.
Creio que este texto bíblico, inspirado, é de profundo interesse. A piedade medieval, e hoje a popular, atribuem à mulher, no momento da anunciação feita pelo anjo, um conhecimento antecipado de todas as fases da vida de Jesus. Não posso compartilhar deste ponto de vista. Ele retira da mulher o que faz sua grandeza e o que constitui, ao mesmo tempo, seu terrível sofrimento: a obscuridade da fé que se abandona, sem receios, a um mistério intangível e a um futuro desconhecido. Por isso, entendo que a vida dessa mulher está assim bem mais próxima da nossa, já que ela conheceu as mesmas dificuldades que nós; mas num espírito de fé muito confiante abandonou-se aos incompreensíveis mistérios de sua vida - uma vida dirigida por Deus.
A mensagem do anjo certamente permitiu à mulher compreender que seu filho Jesus seria o Redentor, o Messias esperado que salvaria o povo. Mas será que ela também poderia saber que seu filho será verdadeiramente o Filho de Deus, o Deus encarnado? O espírito humano, e, sobretudo a mentalidade judaica, só lentamente podia-se encaminhar para uma verdade de tal envergadura. Será que isso valeu também para a mulher de Nazaré?  Só uma análise sincera e profunda dos Evangelhos é que nos poderá dar uma resposta, mas eu, na minha fé e na meditação orante dos textos bíblicos, creio sinceramente que ela, no decorrer de toda a vida de seu Filho, e de maneira plena e definitiva na Sua ressurreição, tornou-se para nós o motivo por que um dos maiores teólogos de nossa época, E. Schillebeeckx permitiu-se coroá-la com o título de "Mãe da Redenção".

domingo, 11 de setembro de 2011

CAPITU

Por que será que o Machado de Assis foi tão ruim com a Capitu? Sempre ouvi dizer que ele, apesar de ser considerado o maior escritor brasileiro, era um sujeito meio casmurro, um cínico, perverso mesmo, mas nunca imaginei que fosse Capitu quem deveria sofrer as malvadezas dele.

Pobre Capitu! Não me chamo Bentinho, não morei nunca no casarão da Matacavalos, mas não perdoarei ao Machado o que fez com você, nem a esquecerei jamais! Quantas vezes ainda hoje, nas balbúrdias da vida, no silêncio do estudo, na concentração da prece, ou nos gestos do amor, eu me vejo de repente ensimesmado, distraído, pensando em você, conversando com você, nós dois sentados à beira do poço na chácara do velho Pádua!

Parece-me vê-la novamente, aquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita meio desbotado, os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, o riso claro, espontâneo e alegre. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças negras, com as pontas atadas uma à outra, a descer-lhe pelas costas, à moda do tempo...

Ainda me lembro daquele dia em que, ao entrar na sala de visitas, ouvi proferir meu nome e escondi-me atrás da porta. E ali, trêmulo, com medo de um espirro, ouvi o José Dias contar a minha mãe muita coisa de nós dois, que andávamos pelos cantos, aos segredinhos, e que, se pegássemos de namoro, então é que seria a dificuldade para me botarem no seminário, promessa de minha mãe.

Fugi da varanda. Ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca a fora. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:

-"Sempre juntos..." " Aos segredinhos..." "Se eles pegam de namoro..."

Ah! Capitu, naquele tempo tudo isso eram apenas travessuras de crianças, ainda não sabíamos analisar o que nos ia pelo coração. Você se lembra do dia em que eu a surpreendi no quintal escrevendo no muro com a ponta de um prego? Eu quis ver de perto e dei um passo. Você agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e tapou o escrito com o corpo. Foi o mesmo que atiçar em mim o desejo de ler o que era. Dei um pulo, e antes que você raspasse o muro, li dois nomes abertos ao prego, e esses nomes eram os nossos!

Voltei-me para você: você tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, diria o velho Machado. Na verdade, eu e você não falamos nada, o muro falou por nós. Daí então, Capitu, poderíamos ter sido muito felizes. Mas mamãe tinha feito promessa de botar-me para padre. E não havia jeito de tirar-lhe isso da cabeça, pois até o vigário da paróquia estava a seu favor.

Você preferia tudo ao seminário. Até fugir você me propôs, ou então ligar uma canoa a outra, fazer uma ponte de canoas até Roma, e lá pedir ao Papa dispensa da promessa. Nada lhe parecia difícil, pois você era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, muito mais mulher do que eu era homem.

E o tempo correu. Alguns dias antes de partir para o seminário, fui visitá-la em sua casa. Encontrei-a na varanda, penteando os cabelos. Tomei o pente de suas mãos, desmanchei-lhe os cabelos, e eu mesmo quis penteá-los. E o fiz muito devagar, demoradamente, com carinho, desmanchando e penteando de novo, indefinidamente, como se quisesse segurar o tempo!

Você refletia. A reflexão não era coisa rara em você, mas nesse dia era uma reflexão toda especial. Você pensava em algum último e desesperado recurso para me livrar do seminário. Fiquei tão comovido com a sua dedicação que corri à janela e comprei duas cocadas de um moleque que passava. Tive de comê-las sozinho; você recusou. Percebi que em meio à crise, eu ainda achava tempo para cocadas, ao passo que você não quis saber delas, e quanto você gostava de doces! E o moleque foi cantando rua a fora o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância: -"Chora, menina, chora; chora porque não tem vintém."

Creio que a letra, destinada a ferir a vaidade das crianças, foi que aborreceu minha amiga, pois logo me disse: - "Se eu fosse rica, você fugia, metia-se num navio e ia para a Europa..."

Como se vê, Capitu, você aos quatorze anos tinha já idéias atrevidas. Mas apesar delas, apesar do juramento que fizemos certa tarde à beira do poço de que um dia nos casaríamos, apesar dos mil pai-nossos e das mil ave-marias que prometi aos céus, minha mãe me botou no seminário!

E a nossa despedida, Capitu, você se lembra? Foi de tardezinha, debaixo do caramanchão, e ali ficamos não sei quanto tempo, somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades. Vieram depois as lutas. Eu não queria saber do seminário. Os padres lustrosos e enfatuados me enfaravam. Enjoava-me o cheiro do incenso. Enfastiavam-me as longas rezas. A carolice dos companheiros dava-me nos nervos. E inventava planos para sair. E monsenhor Cabral não deixava. O José Dias, cúmplice, não descobria logo a maneira mais honrosa de safar-me. Mamãe continuava esperançosa de ainda me ver um dia dizendo missa. E você lá na sua janela, pensando... sofrendo... E como sofremos nesse tempo, Capitu!

Depois... depois... Ah, Machado de Assis, o que é que você foi fazer da minha Capitu de olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada?

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Fecho o livro no ponto em que um dia o deixei, para chorar a traição de Capitu. E, chorando sua traição, sinto vontade de chorar também a morte da minha juventude!

Professor Aroldo