sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A PENUMBRA DA FÉ

    Há na Bíblia sagrada um tema que considero essencial para a intelcção de nossa Fé. É aquele tema que o teólogo francês Charles Moeller, no seu livro "A Fé em Jesus Cristo", chama de "penumbra". Com efeito, lendo os textos sagrados com atenção, descobrimos logo de início a coluna de nuvens  que mostra o caminho aos israelitas no deserto, a "glória de Javé" que encobre a presença de Deus no Santo dos Santos, no templo; a "tenda luminosa" que envolve Jesus de Nazaré no relato da transfiguração, e muitas outras presenças dessa nuvem misteriosa que constituem, para o israelita, a única possiblidade de ver a Deus sem morrer.
    Há outra "nuvem luminosa" na vida de Jesus de Nazaré,  a sua humanidade, que encobre a presença do Verbo de Deus, que plantou sua tenda entre nós, conforme o testemunho do evangelista João, no Prólogo de seu Evangelho. É por essa humanidade, a penumbra que vela e revela a realidade mesma do divino em Jesus, que João repete muitíssimas vezes que ela é "gloriosa".
    O Evangelho de João nos lembra sempre que a "hora de Jesus" é a do Calvário, e é justamente no momento em que a nuvem luminosa se torna aparentemente trevas e escuridão total, o instante em que o Crucificado entra na glória.
    Lendo e meditando o Evangelho de João,  intuímos claramente que os temas da noite e da glória estão sempre juntos: Na véspera de sua paixão disse Jesus: É a hora do poder das trevas, mas acrescenta também que Agora o Filho de Deus é glorificado, isto porque a hora das trevas é a passagem para a glória da Ressurreição.
    Se Jesus de Nazaré, na sua humanidade, é a nuvem luminosa que oculta o Verbo de Deus e O revela, a Igreja, que revela Cristo presente em nosso meio pelo seu Espírito Santo, é por sua vez também uma penumbra luminosa: o sinal que ela apresenta no meio das nações, sua perenidade no longo decorrer dos tempos, sua santidade, sua doutrina imutável, e tudo isto pode  ser contradito. Como seu Mestre, Jesus, também a Igreja  é um sinal  de contradição no seio do mundo: está cheia da humanidade e da santidade de seu Senhor e Mestre, e é aparentemente uma sociedade como as outras.
    Constituída por homens e mulheres pecadores que devem constantemente ser resgatados de seus pecados, ela pode e pôde, no decorrer da História, no plano de sua vida, prestar seus flancos às críticas e aleivosias de seus detratores e adversários, como também pode e pôde errar nos seus seguidores.
    Os escândalos presentes na história da Igreja, na sua cúpula e em seus membros, não se podem negar. A explicação para esses escândalos é a consequência simplesmente de o fato da divindade estar contido em vasos frágeis, finitos e contingentes. Ainda, porém, que a Igreja terrestre fosse inteiramente santa, visivelmente como Jesus o era, nem por isso deixaria de ser um sinal de contradição; Jesus também não o foi?
    Quando a inteligência, assim esclarecida sobre as condições inevitáveis da revelação cristã, aborda honestamente o exame das provas, deixará de ser rebelde às obscuridades inerentes ao testemunho do mundo evangélico. O mesmo problema que lhe propunha a dor no mundo, reaparece nas obscuridades do texto inspirado e nas trevas aparentes da história da Igreja. Se ela se recusasse a tomar em consideração essas obscuridades do testemunho religioso, cometeria o mesmo erro que pretendesse edificar uma concepção do mundo passando em silêncio o paradoxo do sofrimento e da morte.
    O espírito moderno, ao mesmo tempo "científico e místico", acha-se bem preparado para abordar a Fé deste ângulo. O que se pede à inteligência humana , diante da Fé, é que integre esses fatos , esse claro-escuro, numa visão conjunta do universo. Não seria razoável recusar-se a fazê-lo.
    A inteligência há-de inclinar-se sobre a dor humana, como também sobre o fato da santidade no mundo. Ela se perguntará se a hipótese de uma intervenção do alto, de Deus, não explicaria melhor o conjunto  do destino humano, do que qualquer outra hipótese que eliminasse essa possibilidade. Não poderá deixar de ver que num dos casos elimina toda uma parte da experiência, enquanto no outro restitui homem e mulher à sua unidade.
    Em consequência deste fato, a inteligência moderna tem de admitir que certas verdades da Fé a ultrapassam; deve reconhecer que o essencial da verdade não é uma evidência matemática da qual ela seria o único juiz. Deve concordar em confiar a Deus o cuidado de a guiar. Aqulo a ela deve render-se é à presença de Deus no mundo, na palavra, no coração dos que amam, na alma dos que sofrem, na vida dos que abraçaram a santidade.  Os mistérios da Fé em si mesmos continuarão sendo-lhe inacessíveis; a inteligência moderna, porém, acredita neles, porque se abandona conscientemente Àquele que lhe revela tais mistérios.
    Esta surrender da razão  só alcança as verdades que a superam; nada lhe rouba da sua legítima autonomia no domínio que de direito lhe pertence. É só depois de ter visto que é plenamente racional tomar a sério a hipótese cristã, mais racional mesmo do que negá-la, é que a razão pode deixar à "boa vontade" o cuidado de abrir as profundezas do ser à presença divina. Quando esta aceitação da Fé se realiza, a inteligência ilumina-se interiormente com uma luz nova; apreende realmente a verdade do testemunho de Deus. Poderá até entrar na compreensaõ dos mistérios, poderá penetrar naquilo que os teólogos chamam de intellectus fidei,  o mistério da Fé.
    A Fé, portanto, não é superstição, fraqueza do espírito, racionalismo, nem adesão cega a uma verdade fictícia. Há suficientes claridades no fato cristão para justificar a adesão do espírito, e não as há bastantes  (no sentido de verdades evidentes) para fazer da Fé a conclusão de um raciocínio puramente matemático, humano.
    A Fé é racional, plenamente digna do nosso espírito  e da nossa vontade.



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