domingo, 11 de setembro de 2011

CAPITU

Por que será que o Machado de Assis foi tão ruim com a Capitu? Sempre ouvi dizer que ele, apesar de ser considerado o maior escritor brasileiro, era um sujeito meio casmurro, um cínico, perverso mesmo, mas nunca imaginei que fosse Capitu quem deveria sofrer as malvadezas dele.

Pobre Capitu! Não me chamo Bentinho, não morei nunca no casarão da Matacavalos, mas não perdoarei ao Machado o que fez com você, nem a esquecerei jamais! Quantas vezes ainda hoje, nas balbúrdias da vida, no silêncio do estudo, na concentração da prece, ou nos gestos do amor, eu me vejo de repente ensimesmado, distraído, pensando em você, conversando com você, nós dois sentados à beira do poço na chácara do velho Pádua!

Parece-me vê-la novamente, aquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita meio desbotado, os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, o riso claro, espontâneo e alegre. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças negras, com as pontas atadas uma à outra, a descer-lhe pelas costas, à moda do tempo...

Ainda me lembro daquele dia em que, ao entrar na sala de visitas, ouvi proferir meu nome e escondi-me atrás da porta. E ali, trêmulo, com medo de um espirro, ouvi o José Dias contar a minha mãe muita coisa de nós dois, que andávamos pelos cantos, aos segredinhos, e que, se pegássemos de namoro, então é que seria a dificuldade para me botarem no seminário, promessa de minha mãe.

Fugi da varanda. Ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca a fora. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:

-"Sempre juntos..." " Aos segredinhos..." "Se eles pegam de namoro..."

Ah! Capitu, naquele tempo tudo isso eram apenas travessuras de crianças, ainda não sabíamos analisar o que nos ia pelo coração. Você se lembra do dia em que eu a surpreendi no quintal escrevendo no muro com a ponta de um prego? Eu quis ver de perto e dei um passo. Você agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e tapou o escrito com o corpo. Foi o mesmo que atiçar em mim o desejo de ler o que era. Dei um pulo, e antes que você raspasse o muro, li dois nomes abertos ao prego, e esses nomes eram os nossos!

Voltei-me para você: você tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, diria o velho Machado. Na verdade, eu e você não falamos nada, o muro falou por nós. Daí então, Capitu, poderíamos ter sido muito felizes. Mas mamãe tinha feito promessa de botar-me para padre. E não havia jeito de tirar-lhe isso da cabeça, pois até o vigário da paróquia estava a seu favor.

Você preferia tudo ao seminário. Até fugir você me propôs, ou então ligar uma canoa a outra, fazer uma ponte de canoas até Roma, e lá pedir ao Papa dispensa da promessa. Nada lhe parecia difícil, pois você era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, muito mais mulher do que eu era homem.

E o tempo correu. Alguns dias antes de partir para o seminário, fui visitá-la em sua casa. Encontrei-a na varanda, penteando os cabelos. Tomei o pente de suas mãos, desmanchei-lhe os cabelos, e eu mesmo quis penteá-los. E o fiz muito devagar, demoradamente, com carinho, desmanchando e penteando de novo, indefinidamente, como se quisesse segurar o tempo!

Você refletia. A reflexão não era coisa rara em você, mas nesse dia era uma reflexão toda especial. Você pensava em algum último e desesperado recurso para me livrar do seminário. Fiquei tão comovido com a sua dedicação que corri à janela e comprei duas cocadas de um moleque que passava. Tive de comê-las sozinho; você recusou. Percebi que em meio à crise, eu ainda achava tempo para cocadas, ao passo que você não quis saber delas, e quanto você gostava de doces! E o moleque foi cantando rua a fora o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância: -"Chora, menina, chora; chora porque não tem vintém."

Creio que a letra, destinada a ferir a vaidade das crianças, foi que aborreceu minha amiga, pois logo me disse: - "Se eu fosse rica, você fugia, metia-se num navio e ia para a Europa..."

Como se vê, Capitu, você aos quatorze anos tinha já idéias atrevidas. Mas apesar delas, apesar do juramento que fizemos certa tarde à beira do poço de que um dia nos casaríamos, apesar dos mil pai-nossos e das mil ave-marias que prometi aos céus, minha mãe me botou no seminário!

E a nossa despedida, Capitu, você se lembra? Foi de tardezinha, debaixo do caramanchão, e ali ficamos não sei quanto tempo, somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades. Vieram depois as lutas. Eu não queria saber do seminário. Os padres lustrosos e enfatuados me enfaravam. Enjoava-me o cheiro do incenso. Enfastiavam-me as longas rezas. A carolice dos companheiros dava-me nos nervos. E inventava planos para sair. E monsenhor Cabral não deixava. O José Dias, cúmplice, não descobria logo a maneira mais honrosa de safar-me. Mamãe continuava esperançosa de ainda me ver um dia dizendo missa. E você lá na sua janela, pensando... sofrendo... E como sofremos nesse tempo, Capitu!

Depois... depois... Ah, Machado de Assis, o que é que você foi fazer da minha Capitu de olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada?

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Fecho o livro no ponto em que um dia o deixei, para chorar a traição de Capitu. E, chorando sua traição, sinto vontade de chorar também a morte da minha juventude!

Professor Aroldo




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