segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

NÓS NOS ACOSTUMAMOS...



          Dizem-me, os que sabem mais do que eu, que o tempo cura todas as feridas, e com o tempo a gente se acostuma até com aquelas feridas que mais dóem em nossa alma.
          A sós comigo mesmo, comecei a refletir sobre essa  opinião que ouvi de uma senhora, minha vizinha, e cheguei também à conclusão de que nos acostumamos a tudo com relativa facilidade.
          Sei que a gente se acostuma a andar na rua e ver caras conhecidas ou mostruários de lojas, como já me acostumei a revirar bancas de revistas e folhear jornais, buscando notícias ou anúncios que talvez me interessem.
           A gente também se acostuma com esse clima brincalhão de Curitiba, que está sempre fazendo das suas, dando-nos sol quando precisamos de chuva, ou dando-nos até medonhos temporais quando nosso desejo era um tempo tranquilo e ensolarado, para o veraneio nas praias.
           Há também a poluição e a violência de Curitiba, com a qual se acaba acostumando, as janelas de casa sempre fechadas, os portões sempre trancados a cadeado, pelo também costumado receio de eventuais larápios. Com as janelas sempre fechadas, logo nos acostumamos a nem mais abrir as cortinas.
           E porque não abrimos as cortinas, logo nos acostumamos a acender mais cedo as luzes, beneficiando a insaciável COPEL. À medida que se acostuma a isso, esquecemos o ar puro, esquecemos a amplidão do olhar por sobre a exuberância da Natureza.
           Acostumamo-nos a acordar de manhã cedo, tomar café às pressas, porque temos de levar os filhos ao colégio. Na rua, a gente se acostuma a não sorrir para as pessoas, até sabendo que não vamos receber um sorriso de volta.
           No meu caso pessoal, até já me acostumei a não cumprimentar o motoqueiro que me traz o jornal diário, aliás, também sem receber um "bom dia" seu, imerso que ele está em seu trabalho diurno.
            Muita gente se acostuma a não ouvir os passarinhos nas árvores ao redor de casa, a não ouvir os arrulhos dos pombos no telhado; a ter medo da hidrofobia no cão doméstico, ou até a não possuir uma planta ou uma flor dentro de casa.
            A gente se acostuma quase sempre para preservar a pele, para evitar feridas e sangramentos emocionais, para poupar os dissabores do dia a dia. Aos poucos, de tanto acostumar, nos acostumamos conosco mesmos, com os nossos egoísmos e rancores, a ponto de não mais sabermos desfrutar das alegrias da vida com nossos vizinhos e amigos.
            A gente se acostuma com muitas coisas para não sofrer. Em doses pequenas fingindo não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
            Mas, será também verdade que o tempo nos fará acostumarmo-nos com a ausência de uma pessoa muito querida, como sempre foi e como sempre será minha querida e falecida filha Raquel?

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Aos seis heroicos leitores deste meu blog os meus sinceros votos de venturoso ano entrante...

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

CAPITU - A MENINA DE OLHOS DE RESSACA

         
       Capitu, a menina de olhos de ressaca, criação imortal de Machado de Assis, no "Dom Casmurro", livro meu de cabeceira, que leio por inteiro pelo menos uma vez por ano.
        A lembrança foi motivada, hoje, por estas palavras do José Carlos Fernandes, cronista da "Gazeta do Povo", às sextas-feiras:
            - "Fiz o test drive - discutimos com a mulherada a traição de Capitu. Upa-lelê."
             E eu não me contenho e apostrofo o JCF com estas palavras:
        - Prezado José, Você acredita mesmo que a menina dos olhos de ressaca traiu o velho Machado? Deveras? Aguardo, ansioso, resposta pela sua coluna na Gazeta.
            É verdade que Machado de Assis acusa Capitu do crime de traição. Isto não seria fruto de sua mente doentia e perversa? E eu fico me perguntando: por que será que o Machado foi assim tão cruel com a Capitu, uma das suas mais belas criaturas? Sempre ouvi dizer que ele, apesar de ser considerado o maior escritor brasileiro de sua época, era um sujeito meio casmurro, cínico, perverso mesmo, mas nunca pude imaginar que fosse Capitu quem deveria sofrer as malvadezas dele.
            Pobre Capitu! Não me chamo Bentinho, não morei nunca no casarão da "Matacavalos", mas não perdoarei ao Machado o que ele fez com Você, nem a esquecerei jamais! Quantas vezes ainda hoje, nas balbúrdias da vida curitibana, no silêncio do estudo, na concentração da prece, ou nos gestos do amor, eu me vejo de repente ensimesmado, distraído, pensando em Você, conversando com Você, nós dois sentados à beira do poço, na chácara do velho Pádua!
           Parece-me vê-la novamente, aquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita meio desbotado, os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, o riso claro, espontâneo e alegre. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças negras, com as pontas atadas uma à outra, a descer-lhe pelas costas, à moda do tempo...
           Ainda me lembro daquele dia em que, ao entrar na sala de visitas, ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. E ali, trêmulo, com medo de um espirro, ouvi o José Dias contar a minha mãe muita coisa de nós dois, que andávamos pelos cantos, aos segredinhos, e que, se pegássemos de namoro, então é que seria a dificuldade para me botarem no seminário, promessa de minha mãe.
               (PS: a bem da verdade, devo dizer que mais tarde, por outras circunstâncias, fui parar mesmo no seminário, aliás, em três deles, o de Ribeirão Preto, o de Campinas, e o Central do Ipiranga, em São Paulo e, não sei se por vingança ou por conveniência dos deuses, o fato é que, apesar de passar onze anos em três seminários diferentes, nunca consegui chegar a ser padre... apesar de que, na época, eu o desejasse...).
             Fugi da varanda. Ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca a fora. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:
           - "Sempre juntos... aos segredinhos... se eles pegam de namoro..."
           Ah! Capitu, naquele tempo tudo isso eram apenas travessuras de crianças, ainda não sabíamos analisar o que nos ia pelo coração. Você se lembra do dia em que eu a surpreendi no quintal escrevendo no muro com a ponta de um prego?
           Eu quis ver de perto e dei um passo. Você agarrou-me, mas, ou por temor que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e tapou o escrito com o corpo. Foi o mesmo que atiçar em mim o desejo de ler o que era. Dei um pulo, e antes que Você raspasse o muro, li dois nomes abertos ao prego, e esses nomes eram os nossos!
           Voltei-me para Você: Você tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, diria o velho Machado. Na verdade, eu e Você não falamos nada, o muro falou por nós. Daí então, Capitu, poderíamos ter sido muito felizes. Mas mamãe tinha feito promessa de botar-me para padre. E não havia jeito de tirar-lhe isso da cabeça, pois até o vigário da paróquia estava a seu favor.
            Você preferia tudo ao seminário. Até fugir Você me propôs, ou então ligar uma canoa a outra, fazer uma ponte de canoas até Roma, e lá pedir ao Papa dispensa da promessa. Nada lhe parecia difícil, pois Você era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, muito mais mulher do que eu era homem.
            E o tempo correu. Alguns meses antes de partir para o seminário, fui visita-la em sua casa. Encontrei-a na varanda, penteando os cabelos. Tomei o pente de suas mãos, desmanchei-lhe os cabelos, e eu mesmo quis penteá-los. E o fiz muito devagar, demoradamente, com carinho, desmanchando e penteando de novo, indefinidamente, como se quisesse segurar o tempo!
            Você refletia. A reflexão não era coisa rara em Você, mas nesse dia era uma reflexão toda especial. Você pensava em algum último e desesperado recurso para me livrar do seminário. Fiquei tão comovido com a sua dedicação, que corri à janela e comprei duas cocadas de um moleque que passava. Tive de comê-las sozinho, Você recusou. Percebi que em meio à crise, eu ainda achava tempo para cocadas, ao passo que Você não quis saber delas, e quanto Você gostava de doces!
            E o moleque foi cantando rua a fora o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância:
            - "Chora, menina, chora; chora porque não tem vintém!"
            Como se vê, Capitu, Você aos quatorze anos tinha já idéias atrevidas. Mas apesar delas. apesar do juramento que fizemos certa tarde à beira do poço de que um dia nos casaríamos, apesar dos mil Pai-nossos e das mil Ave-Marias que prometi aos céus, minha mãe me botou no seminário!
            E a nossa despedida, Capitu, Você se lembra? Foi de tardezinha, debaixo do caramanchão, e ali ficamos não sei quanto tempo, somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades!
            Vieram depois as lutas. Eu não queria saber do seminário. Os padres lustrosos e enfatuados me enfaravam. Enjoava-me o cheiro do incenso. Enfastiavam-me as longas rezas. A carolice dos companheiros dava-me nos nervos. E inventava planos para sair. E Monsenhor Cabral não deixava. O José Dias, cúmplice, não descobria logo a maneira mais honrosa de safar-me. Mamãe continuava esperançosa de ainda me ver um dia dizendo Missa. E Você lá na sua janela, pensando... pensando... E como sofremos nesse tempo, Capitu!
            Depois... depois... Ah, Machado de Assis, o que é que Você foi fazer da minha Capitu de olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada?

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            ... e fecho o livro no ponto em que um dia o deixei, para chorar a traição de Capitu. E, chorando sua traição, sinto vontade de chorar também a morte da minha juventude, que jamais há de voltar!...
                                                       
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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A PRECE NOSSA DE TODO DIA

           Quando fizermos nossa prece de todo dia, que nossos olhos se abram e comecemos com urgência a superar o próprio egoísmo, sair de nós mesmos e nos dedicarmos a atenuar, ao preço de qualquer sacrifício, a pobreza, a indigência, o abandono de todos quantos nos rodeiam, seja na família, seja na vida social.
            Que não deixemos para amanhã: comecemos, hoje, agora, sem arrebatamentos passageiros; com firmeza, decisão e pertinácia. Quando fizermos nossa prece de todo dia, que nossos olhos se abram e comecemos pela urgência de superar o próprio egoísmo, sair de nós mesmos e nos dedicarmos, ao preço de qualquer sacrifício, à busca por uma vida sem violência, sem malquerenças, sem desavenças, sem arrebatamentos passageiros, mas com decisão, firmeza e pertinácia.
            Que olhemos em volta para descobrir irmãos e irmãs, marcados pela mesma vocação de dizer adeus ao comodismo e de marcar encontro com todos os que têm fome de verdade e juraram dedicar a vida tentando abrir, através da Justiça e do Amor, caminhos seguros para a Paz!
             Que não percamos tempo em discutir lideranças e privilégios: o importante para nós seja unir-nos e caminhar, firmes, para o nosso objetivo, lembrados de que o tempo corre contra nós!
             Que demos o melhor de nós mesmos à imperiosa missão, através da qual, eu o espero com sinceridade, missão de procurar a Paz, o Amor e a Convivência Fraterna, sem jamais cair na conivência com o mal.
              E por que não começar nossa jornada diária com Fé e Esperança, rezando a prece de Francisco de Assis, fazendo que ela seja o ideal de nossa vida, e concretizando-a em cada um dos atos de nosso dia?
                              Senhor, fazei de mim um instrumento de Vossa Paz
                              Para onde houver ódio, que eu leve o Amor
                              Para onde há ofensas, que eu leve o Perdão
                              Para onde há discórdia que eu leve a União
                              Para onde há erro, que eu leve a Verdade
                              Para onde há dúvida que eu leve a Fé
                                                    
                                                           Para onde há desespero que eu leve a Esperança
                                                           Para onde há trevas que eu leve a Luz
                                                           Para onde há tristeza que eu leve a Alegria
                                                          
                              Ó Mestre
                              Que eu prefira consolar do que ser consolado
                              Compreender do que ser compreendido
                              Amar do que ser amado

                                                         Porque
                                                         É dando que se recebe
                                                         É no auto-esquecimento que se pode ser encontrado
                                                         É perdoando que se é perdoado
                                                         É morrendo que se ressuscita
                                                         Para a Vida Eterna
                                                         Amém!

                              

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Qual sua preferência: CÉU OU INFERNO?


          "Sempre gostei muito de piadas e estórias sobre Céu e Inferno" - diz o colunista da "Folha", Paulo Briguet. E eu, com licença dele, participo da mesma preferência.
          Uma amiga muito querida certo dia me contou uma anedota - não sei se de sua autoria ou do já citado Briguet - que transcrevo aqui pelo preço que me custou.
           Certo brasileiro foi condenado ao Inferno e, com muita má vontade, lá chegou e foi recebido pelo anfitrião, Satanás. E contra toda a sua expectativa, e para sua grande surpresa, o Inferno nada tinha daquilo que o pastor de sua igreja costumava falar em seus sermões. O fato é que o Inferno se lhe revelou como um lugar agradabilíssimo.
           Belas mulheres o abraçaram à sua chegada, encontrou velhos amigos, pôde servir-se de uísque e cerveja à vontade, música dançante e outras diversões de primeira qualidade.
           Após 24 horas de deliciosa farra no Inferno, o destino o levou para o Céu. Belas paisagens; corais angélicos regidos por João Sebastião Bach, um clima de paz e serenidade, para surpresa sua. Mas, azar seu, era brasileiro e, como de costume, estava de ressaca.
           Ao fim do dia, envergonhado do vexame, o brasileiro confessou a São Pedro que gostou mesmo é do Inferno, e lhe pediu que o despachasse para lá. E assim foi feito.
           Na sua chegada ao Inferno, foi recebido com alegria pelo Diabo em pessoa, que o levou cordialmente para as chamas, onde elas estavam mais ardentes. As belas mulheres e os muitos amigos tinham desaparecido. Não havia mais mulheres, nem amigos, nem uísque escocês. Só havia trevas e ranger de dentes, como tinha lido na sua Bíblia, quando ainda vivo.
           -"Mas ontem estava tudo muito diferente!" - queixou-se ele, já meio tostado pelas  chamas, ao Diabo.
           - "Só que ontem nós estávamos em campanha política no Brasil. E agora já  estamos em pleno mandato! - respondeu-lhe Satanás.
           Aí, então, o infeliz brasileiro condenado lembrou-se que era eleitor do PT...
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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

"...chegou o tempo de dar presentes"


            Pois é, saio pelas praças e vejo intensa movimentação de pessoas, alto-falantes me azucrinando os ouvidos com suas propagandas em alto som, como se o estardalhaço atraísse compradores, muita gente já carregando sacolas, as lojas multicoloridas e tentadoras, abertas para aqueles que têm a compulsão de comprar.
           É que a folhinha, enfim, começa a marcar o tempo de dar presentes. Presentes para a esposa ou para o esposo, para os filhos, para os parentes, para os amigos e, em certos meios, para todos aqueles que podem abrir-nos uma porta para o êxito social ou profissional.
           Eu, confesso, ainda não entrei nessa ciranda, e até agora não senti nenhuma tentação de entrar. Mas o vizinho do condomínio ao lado me disse que já comprou. A vizinha da direita diz à minha mulher que também já comprou. É praxe. É costume. É de bom tom fazer tudo o que a tv e a mídia escrita e falada mandam e impõem. É tempo de a gente mostrar que está inserido na moda, além de que é sempre bom mostrar que se é pessoa fina e bem educada.
           Gosto de ver como se trocam cumprimentos efusivos, que se dão tapinhas amigáveis nas costas, que se permutam gentilezas e presentes, que se ouvem risos de satisfação e incontidos gritinhos de prazer, em meio a todo um misto de sofisticação e artificialismo, numa sociedade sofisticada, artificial e egoísta.
           Sociedade egoísta, sim. Pois não é Natal? E Natal não é a festa dEle? - "Ele veio para o que era seu, e os seus não O receberam." Foi o que já testemunhou o evangelista João.
           Não há lugar para ele na hospedaria. Negam-Lhe um lugar à mesa, entre a alegria dos filhos dos homens e das mulheres.
           Com que eloquência fácil seria possível ampliar esta frase desoladora! Não há lugar para Ele. Nem na família, nem na escola, nem na fábrica, na política, no judiciário, nas instituições públicas, no mercado financeiro, nem no fundo das almas pecadoras.
           No entanto, Ele não faz acepções de pessoas e vem para todos. Chegada a plenitude dos tempos, ele toma carne de homem, nasce de mulher, veste-se de pobre e bate a cada porta, pedindo um lugar à mesa. Escorraçam-nO, lançam-no para fora, pois a festa precisa continuar. Aí está a orquestra a todo volume já esquentando o salão; as champanhas e champanhotas espoucando em todas as mesas; o uísque importado ou falsificado amenizando o gelo dos corações e desfazendo naturais inibições.
          Que Ele apareça outro dia. Será que Ele não percebe que Sua presença nesta hora festiva não vem facilitar as coisas? Será que Ele não vê que está nos constrangendo, nos inibindo, nos tirando a espontaneidade tão necessária para este evento social?
           Não; é melhor mesmo que Ele se vá. Talvez O recebamos numa ocasião mais oportuna.
           E Ele continua Sua solitária jornada noite a dentro. Ele sabe que o mundo, apesar de sua aparência festiva e multicolorida, cheio de luzes e lantejoulas, é um mundo muito, muito doente. Doente do coração, doente da alma, doente de inafetividade, doente de desamor.
           Ele sabe que os mesmos homens e mulheres que agora O  escorraçam, amanhã pronunciarão Seu santo nome, por derrisão, na tentativa de justificar uma ordem social, política e econômica, que dizem ser uma ordem cristã.
           Outros, colocarão o símbolo de Sua vitória, a Cruz, nos lugares onde o pobre é escarnecido pela filantropia mecânica e legalizada, ou onde a Justiça e o Direito são vilipendiados pela força do dinheiro, da corrupção, ou dos interesses inconfessáveis.
           Mas Ele não desanima nem desiste. Prossegue imperturbável a Sua peregrinação, pois sabe que outros, muitíssimos outros, aqui e em todo o mundo, não hesitam em jejuar, passar uma noite em oração, privar-se até do necessário para repartir seu pão com o irmão faminto, na esperança talvez utópica de abrir um espaço para Ele, entre os homens e mulheres que agora O rejeitam.
           Ele sabe que entre as pessoas com que cruza pelas praças e ruas - nos seus rostos convencionais e tristes, nos seus gestos automatizados, nos seus sorrisos amordaçados, no olhar que se desvia, na palavra que se engole - Ele sabe que aí poderá haver ainda fé e boas ações. A seara hoje parece resumir-se num cipoal de espinhos, mas Ele, ceifeiro celeste, um dia percorrerá de novo os campos, e recolherá o punhado de trigo bom que puder conseguir entre as urtigas.
           É que Ele conta e julga de modo diferente de nós.
           E é nesta jubilosa esperança que todos nós, homens e mulheres deste mundo carente de Fé, Esperança e Caridade, colocamos e aguardamos nossa salvação.