segunda-feira, 21 de novembro de 2011

À MEMÓRIA DA RAQUEL

Faz hoje um ano e três meses que minha filha Raquel partiu para a Vida Eterna, no Reino de Deus. Que este poema abaixo, composto num momento de dor, seja para ela, "in memoriam", uma singela homenagem de sua filha Isabela, de seus irmãos Carlos, Júlio e Aroldo Jr., e de seus chorosos pais.


                                 "....e foi assim
                                que naquela madrugada de um agosto frio
                                a alma vibrante da Raquel
                                aprumou-se ereta
                                colocou-se no ponto de extrema tensão
                                do arco de sua vida
                                mirou com mil cuidados o seu alvo
                                e flechou verticalmente o céu
                                em busca do Infinito."


                                                        *************

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

MINHA ALEGRIA TERRESTRE, ONDE É QUE TU TE ESCONDES?

      Para que homem e mulher pudessem refletir a alegria divina no recôndito espelho de sua alma, Deus os criou à sua imagem e semelhança. E criou-lhes também, com mãos divinas, a sua alegria terrestre. É o que nos testifica o Gênesis: - "Javé tomou o homem e o colocou no jardim do Éden. E fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim... Depois Javé modelou a mulher e a entregou ao homem para que ela fosse a sua alegria."
      E o homem exclamou: - "Esta sim, é osso de meus ossos, e carne de minha carne." 
      E Deus disse em Seu coração: -"Enquanto durar a Terra, não hão de faltar-lhe semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite."
      E Deus viu que tudo era bom.
      Alegria e belezas da Terra cantadas pelos santos, por exemplo, São João da Cruz: -"Mil graças derramando, (Deus) passou por estes campos com presteza e, enquanto os ia olhando, só com Sua figura a todos revestiu de formosura."
      Belezas dos astros e dos céus, lembra-nos o Eclesiástico: -"O sol, em espetáculo, proclama no seu surgir: Quão admirável é a obra do Altíssimo!"
      Beleza do mundo, fonte eterna da alegria, cantam também os profetas profanos, nas palavras de Keats nas suas "Odes": -"Uma migalha de beleza provoca uma alegria eterna..."
       E os astros lhe fazem eco pelos lábios do profeta Baruc: -"Brilham em seus postos as estrelas palpitantes de alegria. O Criador as chama e elas respondem: Aqui estamos! - cintilando com alegria para Aquele que as fez."
      O esplendor da beleza divina esparrama-se pela criação inteira, proclama ainda o Livro Santo:
-"Quão belas e desejosas são as suas obras! Até a menor centelha que se possa contemplar!"

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      É entre dores que Eva dá à luz seu filho primogênito, Caim. Não obstante, o grito por ela lançado aos céus é um grito de triunfo, saudando uma vida que acaba de nascer: -"Eis que eu ganhei um homem com a ajuda de Javé!"
      Entre este primeiro "Magnificat" e o segundo, do Novo Testamento, entre a aurora ainda vacilante e o dia sem declinio, entre Eva e Maria, existe toda uma humanidade que se sustém entre estas duas mulheres, inclusive na sua busca da alegria. Mas a mulher exultante, que não cessa de acalentar seus filhos de todos os tempos e raças, Maria de Nazaré, em quem a Alegria fez Sua morada para que se cumprissem as promessas de salvação, não pode deixar que nos esqueçamos de Eva, a mãe primeira de todos os viventes.

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      Disse Javé a Abraão nas planícies da Mesopotâmia: -"Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz. Assim será a tua descendência."
      A fecundidade será sempre, para homens e mulheres, sinal da benevolência divina. Com efeito, já que na perspectiva bíblica Javé é o senhor do céu e da terra, diz-nos o Deuteronômio: -"O Senhor te concederá fartura de bens com o fruto de tuas entranhas, o fruto do gado, o fruto da terra... O Senhor abrirá Seu tesouro de bênçãos, abençoando todo o trabalho de tuas mãos."
      Deus fará destas alegrias terrestres Sua paternal resposta à nossa fidelidade a Ele e às Suas leis:
-"Obedecei aos meus mandamentos, para que sejais felizes para sempre, vós e vossos filhos."
      E mais: para poderem usufruir plenamente destas alegrias terrestres a eles dadas por Deus, deverão, antes de tudo, com um coração de filhos, prosternar-se diante de Deus e render-lhe graças em todo tempo e lugar: -"Javé nos introduziu neste lugar, dando-nos esta terra onde corre leite e mel. Agora, pois, trago os primeiros frutos que tu me deste, Senhor.  (...) E depois de depositar os frutos de teu trabalho diante do Senhor teu Deus, te alegrarás por todos os bens que Ele te deu."
      Em síntese, homem e mulher israelitas sempre esperaram que a sua fidelidade a Deus lhes assegurasse os bens e as alegrias terrestres. Neste sentido, o dom da terra era uma prova do amor especial que Javé cultivava pelo povo de Israel. A fertilidade da terra era, em si mesma, um sinal de predestinação. Para que essas condições favoráveis fossem mantidas, Israel tinha de viver a sua vida conforme as determinações  e os mandamentos de Javé.  Entretanto, sobrevindo o pecado pelo mau uso da liberdade, quantos deles jamais conheceram celeiros repletos, rebanhos incontáveis, adegas borbulhando de vinhos! Para quantos deles esta vida não passou de um incessante e penoso combate! Para quantos a miséria e o abandono não lhes permitiram nem um vislumbre das belezas do mundo!
      Será que as bênçãos terrestres prometidas pelos Livras Sagrados não passavam de uma cruel ironia?
      Minha alegria terrestre, onde é que tu te escondes? Estarei condenado a morrer sem jamais ter-te encontrado?

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      Este gemido que vem de longe, expresso por boca humana, parece ser uma dor primeira, que remonta às origens e à finitude e contingência do mundo. Não um gemido genérico do ser vivo e sensível, não o gemido do animal ferido que sente a terra entreabrir-se para devorá-lo, mas o gemido existencial humano, isto é, o gemido da alma erguida que clama por explicações para a sua alegria prometida, mas que vê frustrada. Vem de todos os cantos do mundo, século após século, esse longo gemido emendado, continuado, transmitido por todos os povos como uma tradição de amargura.
      O povo de Israel, objeto das promessas mais solenes de Deus, faz chegar até nós,  através dos livros Sagrados, os ecos pungentes deste clamor secular. A recordação da Aliança, a esperança da Promessa sempre renovada não parecem suficientes para explicar a nostalgia de uma alegria que,  aparentemente se foi e parece não mais retornar. Para que a fome e a sede dessa alegria permanecessem em Israel, é preciso que suas raízes tenham sido mergulhadas no mais profundo de sua miséria, jorrassem do âmago do seu pecado, na voz lancinante de seus profetas.
      Pecador, o povo do Antigo Testamento, mais do que qualquer outro povo, foi favorecido pela eleição e pelos dons divinos. Povo de dura cerviz, continuamente infiel a seu Deus pela prática da idolatria, a alegria de sentir-se eleito, entretanto, não o abandona mesmo nos mais atrozes castigos que o visitam, porque homem e mulher do Antigo Testamento têm uma intuição tão viva da majestade de Deus e do nada de Sua criatura, que um senso agudo da misericórdia divina está sempre palpitando em sua alma. Mesmo na mais profunda abjeção do pecado, encontram eles o seu Deus, como nos diz o Livo da Sabedoria: -"Ainda quando pecamos, nós somos teus."
      Imersos em obsedante miséria, seja na ocupação de suas terras pelo inimigo externo, seja nas agruras do exílio, nunca lhes falta a esperança: - "Do mais profundo abismo, eu clamo a ti, Senhor!"
      As grandes almas deste povo singular vibram, sabendo que é de Deus que lhe advém o castigo e o perdão: -"Fazei-me ouvir palavras de alegria e de júbilo, e exultem os meus ossos que Vós quebrastes."
      Mesmo quando gemem sob o peso da mão que os castiga, ainda assim celebram Aquele cuja alegria é fazer o bem. Aquele que prefere a misericórdia  à justiça. Nada poderá afastar de sua alegria este homem e esta mulher, ainda que enredados no pecado e na miséria. Essa alegria continua viva no fundo dos corações, e tanto mais intensa e profunda quanto indestrutível, pois fundada sobre o Deus eterno, que não decepciona nunca, pois é um Deus fiel. É o que nos testemunha a intensa poesia dos salmos: -"Por que estás triste, minha alma? Por que gemes dentro de mim? Espera em Deus, ainda poderei louvá-lo, a Ele que é o meu júbilo, a minha alegria"!    
      O que faz do Antigo Testamento, em todas as suas páginas, um hino à alegria, é que ele, antes de tudo, é um testemunho de amor. O amor gratuito e incondicional do seu Deus. E nada impede que a experiência deste amor dasabroche na alegria. O próprio sofrimento  quase sempre tem muito a ver com este amor, o combustível de que se nutre e de que se refrigera a alma.
      Feliz o homem e feliz a mulher que descobrirem esta divina fonte da alegria. Para além dos manjares terrestres, não dando ouvidos senão à voz que lhe fala ao coração, ultrapassando fortalezas e fronteiras, vencendo as provações dos desertos, eles conseguirão enfim saciar sua sede nas torrentes das delícias divinas. Então seu cântico de louvor se elevará mais puro, sua alegria se tornará verdadeira, a única e indefectível alegria sob o poder do Senhor, na confissão do profeta Jeremias: -   "Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir. Foste tu mais forte do que eu, e me subjugaste!"
      E a Mulher  do Apocalipse, chamada causa nostrae laetitiae - causa da nossa alegria - nos oferece esta Alegria divina, vinda por meio dela ao mundo.

                                                       ********************

      Chegou, portanto,a plenitude dos tempos de que nos fala o apóstolo Paulo, e é tempo de ouvir Jesus de Nazaré: -"Vosso pai Abraão exultou por ver o meu dia. Ele viu e se alegrou... Em verdade, eu vos digo: Antes que Abraão existisse, eu sou."
      É tempo de recordar também a profunda intuição de Pascal: -"Deus de Abraão, Deus de Jesus Cristo! Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria!
      A intensa e ansiosa expectativa dos profetas de Israel cumpre-se integralmente em Jesus de Nazaré, o Redentor, o rosto humano de Deus, que foi sempre o lugar divino de nossa alegria terrestre, e continuará a sê-lo por toda a eternidade. Figurado, pressentido, anunciado e esperado, Ele trabalha, provoca, leva consolo e esperança ao coração de homem e mulher do Antigo Testamento, para que, na plenitude dos tempos, Sua face se desvele. Sua presença se faça cada vez mais viva e atuante entre homens e mulheres de boa vontade de todos os tempos e lugares.
      Seu reinado nos corações será triunfante, Sua palavra iluminará os espíritos e nos delineará os caminhos da salvação. Sua vida, sua mensagem, sua morte e ressurreição redimirão o mundo do pecado e nos revelarão o amor incondicional do Pai. E a humanidade inteira compreenderá que a vinda do Filho do Homem, que em sua fé o resto de Israel  já pressentia e nele encontrava sua alegria, será para nós, na Esperança e no Amor que nos anima, as primícias da Vida Eterna, que é a Alegria que nunca falha.
      Minha alegria terrestre, onde é que tu te escondes?
      E responde-nos o profeta Isaías: -"Vós todos que tendes sede, vinde às fontes e bebei."
      As fontes da alegria! Elas jorram sem cessar do alto da Cruz, de um coração de carne, do coração aberto e transpassado de um Deus que quis morrer para nos dar a Sua própria e eterna Alegria!
 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A ESPERANÇA CRISTÃ, UMA UTOPIA?

      O ensaísta francês e poeta da Esperança e da Ressurreição, Charles Péguy, não foi um "Padre da Igreja", mas é um irmão nosso que nos responde toda vez que o interrogamos. Sua esperança na ressurreição é um eco do canto muitas vezes de juventude ou de dor sob o qual transcorre a vida de homem e de mulher neste mundo. É dele uma frase que encontrei em seu livro "Le Mystère des Saints Innocents", que faço questão que seja a inspiradora desta minha página:
      - "É necessário fazer uma revolução temporal para a salvação eterna da humanidade."
      Sei de alguém que disse não ser possível que deixemos homens e mulheres no inferno da miséria. Que é preciso fazê-los transpor o limiar que os separa da pobreza, que é em si mesma um purgatório. É ainda muito conveniente e salutar que os cristãos abramos de vez em quando a Bíblia, pois o nosso roteiro de ação está lá bem claro e límpido para todos que têm olhos de ver e ouvidos de ouvir:
      - "Eu era um mendigo e vós me acolhestes; eu tinha fome e vós me destes de comer; eu estava nu e vós me vestistes - proclamava o Senhor Jesus. - "Aquilo que fizestes ao mais pequenino dos meus, é a mim mesmo que o fizestes."
      - "Aquele que diz amar a Deus - escreve por sua vez o evangelista João - e não ama seu irmão, é um mentiroso, porque como pode dizer que ama a Deus, a quem não vê, se não ama seu irmão, a quem vê?"
      Estas palavras são de uma simplicidade esmagadora. Impossível pretender furtar-se ou mostrar-se indiferente a elas.
      O teólogo belga, cardeal da Igreja, perito do Concílio Vaticano II e um dos redatores da Constituição Apostólica desse mesmo Concílio, a "Gaudium et Spes", Charles Moeller, em sua monumental obra em três volumes, "Literatura do Século Vinte e Cristianismo", lembra-nos que à medida que as aspirações de homens e de mulheres se dilatam, é certo que também se revelará com mais amplidão a fecundidade social da Boa Nova pregada por Jesus de Nazaré em suas caminhadas pelas aldeias da Palestina.
      Com efeito, a Caridade, virtude teologal que em todos os tempos suscitou hospitais, leprosários, orfanatos, albergues para peregrinos, mil e uma modalidades de obras de misericórdia, pode também hoje ter a lucidez e a coragem de descer à principal raíz dos males e misérias do mundo: as injustiças generalizadas a nível planetário, as estruturas sociais viciadas, inadequadas e quase sempre corroídas internamente pela corrupção, as instituições e organismos políticos e judiciários consciente ou inconscientemente colocados a serviço de grupos e facções em detrimento de uma dedicação total, racional e planificada, ao Bem Comum dos países de todos os continentes.
      O cristão deve estar presente em todos os esforços da cidade temporal, quando ela procura edificar um mundo mais humano. Não pode jamais conformar-se com o sofrimento nem próprio, nem dos outros. Ele sabe, melhor do que ninguém, que a causa fundamental do sofrimento no universo, além da finitude e da contingência essencial do homem e da mulher, é o pecado. Não apenas o primeiro pecado que se atribui a Adão e a Eva, mas os seus próprios pecados e os pecados de seus irmãos.
      É o pecado social, muito mais perverso do que o pecado pessoal, e que consiste na organização de uma sociedade ou cultura em que um ou mais grupos de pessoas são sistematicamente excluídos, oprimidos ou violados em sua humanidade. Tal situação é má porque diminui ou destrói o ser humano em comparação com o valor intrínseco e inviolável da pessoa humana. É pecado porque sabemos que, em última análise, a organização da sociedade depende da liberdade humana e pode ser alterada positiva ou negativamente. Em outras palavras, os seres humanos são responsáveis por essa situação. Mas tal responsabilidade é precisamente social, e não individual. Daí, o pecado social.
      O cristão consciente sabe que as guerras, as revoluções, os levantes, as revoltas dos povos assim ditos crucificados, provêm dos pecados coletivos das nações: regiões onde reina uma espécie de feudalismo, comandado por tiranias oligárquicas, que dá a alguns ricos a posse de imensos territórios e benesses indevidas, são terras seguramente de injustiça e de pecado que clama aos céus.
      Neste contexto a Teologia da Libertação, em muito má hora condenada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, (hoje Papa Bento XVI), nos advertia de que a afirmação teologicamente correta de que o pecado deu a morte ao Filho de Deus, Jesus de Nazaré, é vivenciada a partir da experiência de que o pecado continua dando a morte também aos filhos adotivos de Deus, os povos oprimidos pela dor da fome e da exclusão social.
      Viver como cristão significa descobrir a plenitude da realidade do mundo a partir da realidade divina. Pela encarnação do Verbo, a realidade divina entrou na realidade humana, dando-lhe assim sua plena significação. O mundo foi reconciliado em Cristo e existe uma aliança divina entre Deus  e a humanidade. Por isso, não é possível ser autêntico discípulo de Cristo fora da realidade do mundo. É o que nos ensina o teólogo Dietrich Bonhoeffer em seu belo livro "O Discipulado".
       Por conseguinte, quando os cristãos corajosamente fizerem uma política cristã, os revolucionários,  como Fidel Castro, por exemplo, já não terão razões de serem marxistas e ateus. Aliás, entre os cristãos fala-se muito em vida futura. Sem dúvida, a vida futura é, para os cristãos, o Reino de Deus, como lhes ensina a Bíblia. Mas os cristãos devem renunciar urgentemente a um certo resquício de idealismo platônico que faz da religião uma evasão, uma fuga do mundo, um álibi para os exploradores e opressores de todos os matizes.
      Comecei estas linhas com um pensamento de Charles Péguy. E a encerro com o mesmo pensamento, afirmando que aquela revolução temporal para a salvação eterna de que ele fala, deve realizar-se simultaneamente com os esforços de santificação no plano pessoal e no plano das estruturas sociais, econômicas, políticas e judiciárias. 

sábado, 5 de novembro de 2011

CRISTÃOS, CO-CRIADORES COM DEUS

      Os cristãos, porque co-criadores com Deus, devem estar presentes na primeira fila na luta pela justiça social, política e econômica, na luta contra o racismo e a intolerância, como também na luta à idolatria que faz da Nação ou do Estado uma divindade todo poderosa, na luta contra a tirania do consumismo e dessa ambígua globalização que vai aos poucos nos sufocando pela tirania exacerbada do mercado.
      Argumenta-se, em contrário, com o Céu, mas o Céu não está em outra parte, fora da esfera humana. Ele começa misteriosamente neste mundo, por obra do Espírito Santo. Se o Reino ou Reinado de Deus não é deste mundo, como nos ensinam os Evangelhos, ele começa neste mundo, e estes começos serão recolhidos, purificados, transfigurados no novo Céu e na nova Terra, de que nos fala o livro do Apocalipse.
      É preciso que os cristãos de boa têmpera se compenetrem de sua imensa responsabilidade diante das injustiças estruturais, sociais, da nefasta corrupção nos estamentos políticos e públicos, principalmente nos países da fome e dos que buscam o desenvolvimento dentre os do Terceiro Mundo nos quais, sem nenhuma dúvida, há cruzes, não só individuais, mas coletivas. E o amor ao próximo, pregado por Jesus de Nazaré, obriga-nos a envidar todos os esforços para fazer descer da cruz os povos crucificados, essa impressionante imagem criada por Ignácio Ellecuria, sacerdote assassinado em El Salvador (1989), na sua obra Bajar de la cruz al pueblo crucificado.
      Somos confrontados pela Esperança, mas sabemos perfeitamente que a Esperança não se realiza em plenitude senão no mundo futuro e transcendente. Mas sabemos também, e este é o ponto importante, que ela manifesta desde já sua eficácia: é uma força imensa no mundo, é um fermento que o faz levedar, é um sal que dá sentido e sabor ao esforço humano de libertação, ao empenho temporal pela justiça e pela fraternidade universal. Não é alienação nem é álibi. Não existem duas esperanças: uma terrena e outra celeste; a esperança é uma só: diz respeito à realidade futura, mas através do empenho cristão ela se antecipa na realidade terrestre.
      Conscientizemo-nos então de que a História não é só negatividade. Existe uma corrente de esperança na história da humanidade que ninguém consegue silenciar. E desta mesma realidade surge um clamor que não pode ser abafado. Em linguagem paulina, a criação inteira geme e sofre as dores do parto, clamando por libertação. Daí, a exigência de uma esperança ativa, que se concretize no amor eficaz e que ajude a realidade a ser o que deseja. Amor e esperança constituem os dois aspectos dessa mesma realidade.
      É certo que homem e mulher poluíram de fato a Terra, mas não é fugindo dela que os santos obtiveram a sua glória. É preciso cultivar os campos desta Terra no tempo em que se vive, se um dia queremos reinar sobre os campos eternos.
      A Esperança cristã, vivida integralmente, longe de sugerir demissão e evasão frente às tarefas terrestres do homem e da mulher, ajuda os que creem a assumir suas responsabilidades na conquista dos objetivos que se impõem à consciência moderna. Para que isto se concretize, é necessário então que a santidade se encarne nas estruturas temporais. E aqui principia o drama: sabemos que a Igreja de Cristo é santa na sua estrutura divina, mas é também humana, porque está nas mãos de homens e de mulheres que precisam ser diariamente resgatados de seus pecados, conforme o Concílio Vaticano II. Embora transcendente no tempo pela sua essencial mensagem de salvação, a Igreja deve também esforçar-se por cristianizar as formas sucessivas que revestem as sociedades humanas, num fecundo processo de inculturação e de aggiornamento, nas palavras do saudoso Papa João XXIII, ao lado de absoluto respeito às suas tradições seculares.
       - "A Igreja de hoje deve converter-se aos pobres!"- conclamou o Patriarca de Alexandria, Máximos IV, aos bispos de todo o Oriente, em Jerusalém.
      - "A grande desgraça da Igreja no século XIX foi ter perdido a classe operária", - lamentava o Papa Pio XI.
      - "A Igreja pode vir a perder a América Latina!" -  alertou certa vez o Papa Paulo VI, diante da estranha proliferação de seitas neopentecostais e milagreiras.
      - "A Igreja precisa calejar as mãos!" -  proclamou há tempos o padre-operário francês, Henri Huidobro, numa conferência a sindicalistas em São Paulo.
      E o grande teólogo belga e perito do Concílio Vaticano II, Charles Moeller, foi ainda mais longe: "A Igreja deve sujar as mãos!" - proclamou ele corajosamente numa alusão ao filósofo francês ateu, o existencialista Jean Paul Sartre, com sua obra "Les Mains Sales" - As Mãos Sujas".
       Fazendo eco a estes pungentes clamores de aggiornamento, Dorothy Day, ex-anarquista e posteriormente líder católica norte-americana, acrescenta: - "Onde estão os santos, para tentarem modificar a ordem social, e não apenas ministrar socorro aos escravos, mas acabar com a escravidão?"  (em seu livro A Longa Solidão).
      O que os angustiados filhos de nosso século pedem aos cristãos de todas as denominações é uma presença leal nos esforços sociais e políticos. Uma colaboração efetiva com todos os esforços em busca da justiça social neste mundo, eis aí o dever concreto dos cristãos de hoje.
      O testemunho de uma Igreja dos pobres para ser a Igreja de todos, como sonhava o Papa João XXIII, constitui hoje, mais do que nunca, o critério da universalidade e da credibilidade do Cristianismo. Por isso os cristãos devem tomar consciência de que eles têm também  encontros  na Terra. Sou mesmo tantado a dizer que os seus únicos encontros são aqui, porque é no amor aos homens e mulheres daqui, que eles, os cristãos, iniciam a prática do amor de Deus.
      - "Ora et labora!" - reza e trabalha - ensinou-nos o monge São Bento. É preciso então lutar, como se tudo dependesse de nós, e ao mesmo tampo cair de joelhos, como se tudo dependesse de Deus.
      Nesta mesma linha de pensamento, podemos refletir nas sábias palavras que a tradição oral atribui a Santo Inácio de Loiola: - "Confia em Deus como se o resultado dependesse todo dEle e nada de ti; mas aplica todo o teu esforço como se devesses fazer tudo, e Deus nada."


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

AINDA OS DEMÔNIOS

      Após  a publicação neste "bloq" do texto "Antes que os demônios voltem" recebi vários emails,  principalmente de evangélicos, me contestando e me acusando de publicar "sandices". Apenas um, o pastor Josias Pereira de Assis, é que teve palavras mais condizentes com a seriedade do assunto e que me contestou, mas sincera e lealmente. Em resposta a ele publiquei o texto abaixo:

      Prezado pastor Josias:

      Muito grato pelos seus comentários sobre o meu texto relacionado a demônios. Apesar de não ser teólogo de profissão, tenho acompanhado com diligência o movimento teológico moderno, com os grandes nomes da teologia atual, tanto católicos como protestantes: Pannenberg, Schillebeeckx, Moltmann, Bonhoeffer, Rahner,  Ducquoc, Troisfontaines, Queiruga, Leonardo Boff, Libânio, Fiorenza, I.L.Segundo, Haag, Küng, Congar e muitos outros, e a tendência geral entre eles é expurgar a teologia cristã, e principalmente o estudo da Sagrada Escritura, de todo resquício de fundamentalismo, muito atuante ainda em vários setores do catolicismo e do segmento evangélico.
      Há muita coisa no Cristianismo que precisa urgentemente de uma mudança de paradigma. Um dos objetivos dessa mudança de paradigma, aliás, já iniciada pelo Concílio Vaticano II, mas não levada à frente em toda a sua amplidão, contrariando os desejos dos Padres Conciliares, seria  uma leitura mais crítica dos textos sagrados, com a finalidade de extirpar deles uma série de crenças (ou de crendices) que vêm passando de geração em geração, sem serem submetidas a uma avaliação crítica, exegética e hermenêutica mais racional, e mais de acordo com a evolução dos tempos e de mentalidade.
      Eu expus minhas razões para não aceitar a existência e a ação entre nós de satanás, diabo e demônios que, para mim e para os mais gabaritados teólogos da atualidade, não passa de uma leitura fundamentalista da Bíblia, aceitando tudo que está nela como absoluta palavra de Deus. Uma leitura atenta da Bíblia nos atesta que há nela muitíssimas coisas que não partem de Deus, mas dos próprios autores bíblicos, segundo seus parcos conhecimentos gerais, sua ignorância de muitos arcanos da natureza e do interior humano. Refletem os conhecimentos e tabus de uma determinada situação histórica e, mesmo inspirados por Deus a escrever, eles o faziam dentro de seus próprios conhecimentos e condicionamentos, ignorância de determinados assuntos, utilizando as precárias ferramentas de que dispunham. A Bíblia não caiu do céu como um meteorito, já pronta, e nem foi um DITADO de Deus aos hagiógrafos, como ainda pensam muitas pessoas desavisadas.
      Portanto, muita coisa que não conseguiam explicar, eles as atribuíam a Deus, como a ordem de exterminar povos inteiros a ferro e fogo, sem atentar para crianças, idosos, mulheres, enfermos, jovens, passando todos ao fio da espada, incendiando povoações inteiras, como se fossem ordens de Deus. Os livros de Josué, dos Juízes, de Samuel, dos Reis, das Crônicas, estão cheios de barbaridades tanto ou mais piores do que as perpetradas por Hitler e Stalin, como testemunhamos em nossos tempos.
      Só aos poucos, paulatinamente, é que a mentalidade dos escritores sagrados se foi purificando, até chegarem a vislumbrar a verdadeira face de Deus, a nós desvelada por Jesus de Nazaré: o Abbá, Deus Pai/Mãe, até o "Deus é Amor", na grandiosa intuição do apóstolo João na sua primeira Carta.
      Em um ponto de seu comentário Você fala do poder absoluto de Deus, que criou o próprio mal,e Você cita em seu abono o profeta Isaías. Vamos ser razoáveis: o poder, a onipotência de Deus não é simplesmente absoluta. Deus não pode criar coisas absurdas, que contradizem sua vontade salvífica universal, como  o mal por exemplo, que Isaías atribui a Deus;  e absurdos que contradizem também a razão e o bom senso. Me diga: Deus pode criar um círculo quadrado? Deus pode criar uma pedra tão grande e pesada que Ele mesmo não pudesse levantar?
      O paralelismo que Você propõe entre um pretenso reino de satanás e o Reino de Deus, além de blasfemo, vai contra a própria onipotência divina. É fruto de um dualismo maniqueísta que vem desde os primórdios do pensamento humano que, não sabendo explicar a existência do mal físico e moral (o pecado) no mundo, personalizou o mal em seres que seriam os verdadeiros fautores do mal, como os demônios, salvaguardando assim a transcendência e a bondade de Deus. Além de satanás, Você cita belial, lúcifer, diabo, além de uma infinidade de demônios que circulam por aí, atormentando os pobres seres humanos... O verdadeiro Cristianismo não precisa de nada disso. Basta-lhe a Providência Divina, o amor de Deus, a Sua Graça, Jesus Cristo e a Sua mensagem de salvação pela sua morte e ressurreição, a assistência do Espírito Santo, referendados por uma leitura consciente e racional dos textos sagrados, conservados e explicados pela Sua Igreja. Tudo o mais são realidades marginais que mais deturpam do que engrandecem o Cristianismo.
      Ao fim do seu comentário, Você me pergunta: se Deus não criou o diabo, quem então o criou? Eu lhe respondo que o problema só existe para quem acredita na existência do diabo e sua ação entre os humanos. Diabo para mim não existe. É um mito, criado em primitivas eras, para explicar a presença do mal no mundo, como já disse linhas acima. Uma explicação, por sinal, muito deficiente, diante da face autêntica de Deus, o anti-mal por excelência, conforme nos revelou Jesus de Nazaré. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

MEUS DOIS AMORES - (In memoriam)

            Darcy minha irmã
            Quarenta e quatro anos
            Raquel minha filha
            Quarenta e três anos
           Ambas meus dois amores
            Morte e vida
            Severina
            Ambas na minha saudade
            Darcy
            Numa mesa de cirurgia plástica
            Procurava mais vida
            Mas procurando mais vida
            Na vida encontrou a morte
            Raquel
            Num leito de dores
            No hospital a sofrer
            Lutava contra a morte
           Mas lutando contra a morte
            Na morte
            Encontrou a Vida Eterna
            Morte e vida severina
            Unidas na lembrança e na saudade
            Darcy e Raquel
            Meus dois amores
            Unidas na vida e na morte
            Unidas também na lembrança e na saudade
            Quem procurava mais vida
            Na vida encontrou a morte
            Quem lutava contra a morte
            Na morte encontrou a Vida
            Descansem na paz do Senhor
            Na casa  do Pai
            Ambas meus dois amores
            Darcy e Raquel
            Do Pai que as libertou
            Desta vida severina
            Descansem na paz do Senhor
            No Pai de todas as vidas
            Oh! que vida severina!...
              

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

OS PASTORES, OS PADRES, E O INFERNO

      Simone de Beauvoir, companheira do filósofo francês líder do existencialismo ateu, Jean Paul Sartre, escreveu nas suas "Memórias de Uma Moça Bem Comportada" que os padres não pregam sobre o inferno porque não acreditam mais nele. Se é verdadeiro o fato, não sei; o que sei é que outro famoso ensaísta e poeta francês, Charles Péguy, viu-se obrigado a abandonar a Fé católica diante das pregações aberrantes sobre o inferno, uma vez que ele, dizia, não encontrou outra possibilidade mais honesta com Deus e consigo próprio, porque não conseguia compreender o inquietante mistério do inferno. Em todo caso, como disse a Beauvoir que os padres atualmente não pregam mais sobre o inferno, eu completo que ainda bem, porque muitos estragos já se fizeram com tais pregações. A própria sabedoria popular nos ensina que "o medo é mau conselheiro". E a história religiosa também já demonstrou que a "pastoral do medo" conduz necessariamente ao fracasso. Aqui me lembro de uma frase pronunciada pelo meu professor de Teologia Sistemática, na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, nos idos de sessenta: -"Como falar ou escrever sobre a bondade e o amor gratuito e incondicional de Deus, ou da sublime intuição do evangelista João de que "Deus é amor", tendo a imagem do inferno diante dos olhos?"
      A pregação de padres e pastores sobre esta inquietante realidade coloca-nos um problema muito difícil, pois o inferno é um mistério obscuro, além de um problema sombrio para os tempos de hoje e de uma nova mentalidade teológica. Sua abordagem tradicional presta-se a todas as deformações e tende a evocar os piores monstros de nosso subconsciente. Para muitas pessoas pode converter-se em uma fonte dolorosa e turva de escrúpulos e angústias existenciais. E quanto à sociedade, muitas vezes em tempos ainda recentes seus horríveis fantasmas foram usados para fortalecer o poder e legitimar a opressão. Por si mesma, vista a partir da religião, tal pregação representa um tema secundário e colateral, um resto do que não foi alcançado, uma mera sombra da salvação fracassada. Mas o fato preocupante é que ela, na boca de padres e pastores desavisados, acaba mobilizando as molas mais profundas da vivência religiosa, e colocando em questão os próprios fundamentos da Teologia.
      A simples evocação do inferno nas pregações, parece estar em contradição com a bondade divina e a liberdade humana, o sentido amoroso da Criação e a vontade salvífica universal de Deus, e muito mais o valor absoluto da Redenção trazida a nós pela morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Lembremo-nos de que certas afirmações tradicionais sobre o inferno são tão monstruosas que, se fossem verdadeiras, deslegitimariam a Fé cristã de maneira radical.
      Nestes termos, que dizer de um pai, ou de uma mãe, na bem-aventurança do Reino de Deus, sabendo que um filho seu ou uma filha querida estão no inferno, padecendo os mais terríveis tormentos, e por toda a eternidade, muito maiores que os mais atrozes perpetrados por Hitler e sua camarilha, nos tempos do holocausto? E os ateus e os agnósticos nos questionam, e com razão: que religião é essa, que ensina em seus templos tais monstruosidades, ao mesmo tempo que tem a coragem de pregar que o apóstolo João apresenta Deus como sendo Pai, como sendo Amor?
      Neste aspecto, convém antes de tudo, e urgentemente, afirmar o "caráter não-literal mas metafórico de toda a linguagem dos últimos fins "(Queiruga, "Repensar a Salvação") e, concretamente, do inferno. Algo elementar na mais elementar exegese, mas sobre o qual é preciso insistir, pois todos nós nos recordamos com horror as descrições literais do fogo do inferno ou dos diversos e inauditos tormentos padecidos pelos condenados. Tormentos infinitos por um pecado ou pecados finitos. Algo que não somente ainda ocorre na pregação de padres e pastores, mas também e principamente, nos livros populares de devoção.
      A pregação tradicional sobre o inferno na ecumene cristã parte de uma imagem de Deus que nos faz estremecer. Sua influência obscura e subterrânea, ao longo da história da Teologia, reforçou sombras e fantasmas que nunca deveriam ter-se aproximado sequer da nossa idéia sobre a verdeira e autêntica face de Deus, a do Abbá Pai/Mãe, a nós revelada por Jesus de Nazaré, cuja essência consiste em amar (1Jo 4,8-16). A partir da intuição deste Deus que nos criou por amor, na condenação de homem e de mulher ao inferno só podemos ver, não algo que Deus deseja, quer ou impõe como castigo, mas justamente o contrário: algo que Deus padece, com que sofre, mas que não pode evitar, porque respeita a liberdade humana. Como poderia ser de outro modo, se Deus cria unicamente por nós e para nós; para comunicar Seu amor e Sua salvação, buscando somente nossa realização e nossa felicidade? Não é isto que acontece com um pai e uma mãe simplesmente honestos e normais, quando vêem um filho que entra no caminho da autodestruição, no uso de drogas, por exemplo? Darão a ele os seus melhores conselhos e o ajudarão com todas as suas forças; porém, se ele persiste, não o "castigarão", acrescentando mais desgraça à sua desgraça, ou tornando ainda mais duradouro e doloroso o processo de sua autodestruição. Sucederá o contrário, isto sim: sofrerão com ele e ainda mais que ele, porque sentirão como próprio o fracasso do filho.
      O profundo e sensível cardeal inglês, Newman (representando, neste sentido, muitíssimos cristãos sinceros), viveu largamente a dolorosa experiência, nas pregações de sua época, de uma tenebrosa concepção do inferno, que acreditava obrigatória em seu sentido literal. Escreveu ele em seu livro "Apologia por vita sua", publicado em 1997: -"Desde este tempo, (aos quinze anos) dei também pleno assentimento interior e minha fé plena à doutrina dos castigos eternos, como ensinada por Nosso Senhor mesmo, com igual sinceridade que a da felicidade eterna, se bem que ensaiava, por várias vezes, tornar aquela verdade menos espantosa para a imaginação."
      Pierre Teilhard de Chardin, padre, teólogo, paleontólogo e místico francês, que causou furor na década de cinquenta/sessenta com seu livro "O Fenômeno Humano" e mais tarde com "O Meio Divino", fez confluir nestas duas importantíssimas obras, vivas e já amadurecidas na expressão, as idéias que mais agitavam a alma ardente e de amplos horizontes do autor.
      Pois é em "O Meio Divino" que Teilhard, analisando em profundidade o problema do mal neste nosso mundo, escreveu estas palavras impressionantes pela sua sinceridade: -"Meu Deus, entre todos os mistérios que nos pregam e nos quais devemos crer, não há nenhum que choque mais o nosso olhar humano do que o mistério da condenação. E quanto mais nos fazemos homens, conscientes dos tesouros escondidos no mínimo dos seres, e do valor que representa o átomo mais humilde para a unidade final, mais nos sentimos desconcertados com essa idéia do inferno."
      Entre os ateus, agnóticos e iluministas foram muitos, desde David Hume e John Stuart Mill. até Bertrand Russel e Anthony Flew, os que buscaram na idéia de inferno os argumentos de maior contundência para atacar o Cristianismo. Com efeito, diziam eles, um deus capaz de criar e manter "esse" inferno apresenta-se a eles como o paradigma de uma crueldade sádica e implacável.
      Na verdade, certa insistência no castigo e no inferno desconhece o próprio núcleo do Deus bíblico, a quem o profeta Oséias chegou a intuir como incapaz de castigar, "porque sou Deus e não homem". (Os 11,8-9), e que o apóstolo Paulo quase "definirá" como "Aquele que consiste em perdoar" (cf. Rm 8,33; leia-se 8,31-39), texto este, com certeza, um dos mais sublimes da literatura religiosa universal. É por ter perdido de vista esse "coração de Deus", cuja ternura deveria ser mantida como pressuposto sempre erguido, anterior a qualquer outra consideração, que a doutrina sobre o inferno pôde levar a exageros que por vezes beiram o monstruosamente sádico. Recorde-se, a propósito, que o teólogo oficial da Igreja Católica até tempos atrás, Tomás de Aquino, na sua "Suma Teológica", chegou a afirmar que "para que a bem-aventurança dos santos satisfaça mais e eles possam dar mais abundantes graças a Deus por ela, lhes é concedido ver todos os detalhes das penas dos ímpios no inferno". (ST, Supl. q.194, a1). Verdadeiro e cruel absurdo!
      É o inferno uma realidade ou um mito? Note-se que até aqui eu não afirmei nem neguei a existência do inferno. Questionei, sim, e continuarei questionando essa pregação tradicional sobre ele nas assembléias e na literatura devocional cristãs. Se me sobrar tempo e condições de entrar na discussão da realidade ou da não realidade do inferno, deixo desde já resguardada a chave hermenêutica central da experiência bíblica a ser observada e que é mais consentânea com a verdadeira e autêntica face de Deus a nós revelada por Jesus de Nazaré: - TUDO O QUE DEUS FAZ OU MANIFESTA É EXCLUSIVAMENTE EM VISTA DE SUA VONTADE SALVÍFICA UNIVERSAL.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O PAPA E A "CAMISINHA"

      Este é um blog (ou melhor, "bloq", por erro de digitação de quem o programou) que tem a promessa solene de ser um blog sério, enfocando assuntos transcendentes e de consequências imprevisíveis na minha vida e na de eventuais e corajosos leitores. Mas descobri que não vivo em outro planeta, desligado dos problemas cruciais desta nossa Terra. Vai daí, resolvi pisar em solo firme, e preocupar-me também por tudo quanto acontece ao meu redor. Para isso é necessário tomar contato com os acontecimentos da província, e é o que estou querendo fazer, pesquisando "o que anda rolando por aí..."
      A primeira coisa que me chamou a atenção foi uma manchete quase escandalosa da Gazeta do Povo cá da "capital ecológica do Paraná", que me obrigou a ler a matéria:
      "Recentes declarações do Papa sobre o uso de preservativos  em relações sexuais abrem uma nova etapa de debates na Igreja Católica".
      Epa! O Papa Bento XVI falando de preservativos, que são as nossas tão faladas e usadas camisinhas?
      Fiquei realmente com a pulga atrás da orelha: o já idoso e de cabelos brancos Joseph Ratzinger, teólogo de velha cepa, escritor de tratados de alta Teologia, e agora chefe supremo da Igreja Católica, descendo ao rés do chão das realidades sexuais, falando em camisinhas? Tomado de sérias dúvidas tornei a ler a notícia, e era este mesmo o assunto: as famigeradas e vulgares camisinhas, que muitos de nós trazemos escondidas no bolso traseiro das calças, na esperança de alguma inesperada emergência.
      Aí está: o Papa, em um livro que publicou recentemente, "Luz do Mundo", em forma de entrevista com o jornalista alemão Peter Seewald, declarou com todas as letras que o uso da camisinha, com o objetivo de impedir que a aids se espalhe, pode ser justificado em certos casos.
      Esta concessão que o Papa faz, "em certos casos", eu cá com os meus botões posso explicar assim:
há muitos marmanjos por aí, como também muitas marmanjas, pois um não vive sem o outro, portadores do vírus da aids, que não conseguem viver celibatários como os nossos heróicos padres, vivem dando os seus pulinhos e infectando os irmãos de pilantragem com o perigoso vírus.
      É claro que esta incrível declaração  papal desagradou imensos setores da ecumene católica, a qual não admite qualquer afronta à secular moral sexual da Igreja, sempre contrária a qualquer tipo de método contraceptivo, como pode ser a malfadada mas benfazeja camisinha. Sei, por experiência própria, que alguns líderes católicos têm sussurado ao pé do ouvido de algum crente a perigo liberando o uso discreto da dita cuja, mas de modo muito restrito e em ocasiões muito especiais, como no caso da benemérita "mulher pública" - a prostituta - para evitar o contágio de seus fregueses...
      - "Não é para evitar filhos, mas para resguardar de uma possível doença", apressa-se a explicar o desconfiado bispo emérito de Nova Friburgo, Dom Rafael Llano Cifuentes, questionado por um repórter. E completa o bispo: -"A Igreja entende que qualquer relação sexual tem que estar aberta à vida" - deixando assim bem claro que a declaração do Papa não prevê o uso do preservativo (ô palavra feia: por quê não falar camisinha, que é coisa tão nossa?) indiscriminadamente, como forma de contracepção, por exemplo.
      As declarações de Bento XVI provocaram, como era de se esperar, várias especulações a respeito por parte dos assim ditos especialistas na momentosa questão. O chefe do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Adriano Holanda, ouvido pela Gazeta, afirmou textualmente: -"Não resta dúvida de que uma das motivações dessa declaração é que precisamos reconhecer que a aids e as doenças sexualmente transmissíveis são uma realidade factível, inalienável e que têm de ser enfrentadas."
      Do mesmo modo o diretor-adjunto do Departamento de DST, Aids e Hepatites do Ministério da Saúde, Eduardo Araújo, concorda que a posição do Papa é importante, porque aponta o preservativo (outra vez a palavra maléfica!) como um mecanismo usado para prevenir a aids, e acrescenta:
      -"Esta é uma declaração bastante promissora, pelas ações que o Ministério já desenvolve com a CNBB. O que aconteceu torna possível que, entre os fiéis, a Igreja reconheça que eles tenham uma barreira de proteção à sua saúde. É a Igreja reconhecendo a limitação do próprio homem (e da própria mulher, digo eu) tendo o preservativo como aliado", enfatiza Eduardo Araújo.
      No meu entender, a Igreja Católica, no longo caminhar de sua história, tem a característica de responder a determinadas realidades dentro de um tempo que nos parece muito lento, mas por fim, depois de demoradas análises de possíveis consequências positivas ou negativas, descobre que elas são óbvias para a sociedade, e acaba por acatá-las.
      Está lançada a polêmica, prezado leitor. Não sei se Você tem interesse pessoal no assunto, mas deixo a Você decidir sobre sua facticidade ou não.

sábado, 15 de outubro de 2011

SONHOS DE UMA TARDE DE VERÃO


      Ele a encontrou à sombra de florido flamboyant no jardim da cidade. Não sei se esse encontro lhe trouxe alguma transformação para o futuro. O que posso afirmar com certeza é que, nos rápidos momentos passados juntos, ele proporcionou-lhe instantes de indizível felicidade.

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      Jovem camponês, filho de pequeno proprietário rural que teve suas terras leiloadas para cobrir dívidas de financiamento bancário, ao rapaz não sobrou outra alternativa a não ser deixar a enxada e o arado, e vir tentar a sorte na cidade grande. Chegou há duas semanas, com algum dinheiro, pouco, no bolso de brim barato e um incêndio de boas intenções na cabeça.
      As avenidas rumorosas, a agitação poliforme, o trânsito desenfreado, o imprevisto e o inesperado assaltando-o a cada esquina, os odores diferentes, a moda descontraída e insinuante das mulheres, o maravilhoso das coisas e dos aspectos urbanos, a cidade inteira alucina-o numa alegria deslumbrada.
      Na sua ingenuidade de roceiro recém-chegado, julga fáceis todas as coisas, abertos à sua frente os mais diversos caminhos. Nesta ilusão perigosa, procura emprego com as mais fagueiras esperanças.
      Vê, porém, frustrados, todos os seus anseios. Ou porque sua aparência não fosse lá bastante convidativa, ou porque a vida está mesmo apertada, o certo é que não conseguiu nenhuma colocação.
      Assim correm as semanas, as refeições vão-se encolhendo até se transformarem em sanduíches, a cara da dona da pensão vai-se fechando a cada dia que passa. Coisa trágica!
      O moço resolve dar o milésimo giro pela zona comercial a ver se tem mais sorte desta vez. Aventura-se por um supermercado. Fala com o gerente. Oferece os seus serviços. O gerente não o conhece. O candidato não tem currículo nem referências. Ademais, o salário mínimo subiu, os consumidores retraíram-se, os problemas econômicos da Europa fazem-se já sentir no Brasil, a inflação e a recessão preocupam as autoridades, e com isso meia dúzia de funcionários foi para a rua. Voltasse outro dia. Talvez até lá surgisse alguma vaga.
      Desengano maldito!
      O pobre se atira a todas as casas comerciais. Todas elas têm gente de sobra. Todas dizem que o plano econômico do Ministério da Fazenda fracassou, que estão operando no vermelho, por isso estão sendo obrigadas a comprimir as despesas, não precisam de mais funcionários. Oficinas, bares, farmácias, lojas de confecções, postos de gasolina, até um motel nas periferias, tudo a mesmo coisa. E pelas calçadas escaldantes, frustrado, arrependido de ter vindo para a cidade, caminha o infeliz na sua lentidão desiludida, coração opresso, até que cansado da busca infrutífera, se atira aos braços acolhedores de um banco de jardim.
      E foi então que ela chegou.
      E chegou faceira, cativante, ostentando suas graças e donaires na sedução irresistível das formas bem feitas. Como era linda! Encantadora mesmo! Se o rapaz estivesse sob a influência da linguagem das novelas da TV, diria que ela estava tentadora. Não conhecia essa linguagem, por isso se limitou a contemplá-la, embevecido, em muda admiração, pois nunca na sua vida ele vira beleza igual.
      E a borboleta (pois era uma linda borboleta, dessas grandes e doiradas), atraída pelo perfume de rubicunda rosa, voava e tornava a voar, descomprometida, fazendo brilhar ao sol as asas de setim.
      O divorciado da sorte deixou-se estar a admirá-la, na plácida modorra de um faquir. E foi então, aos seus olhos incrédulos que, dentre as translúcidas asas da borboleta a volitar, pareceu-lhe surgir tênue fumaça, que pouco a pouco se foi adensando até formar um rosto... e esse rosto era o seu!
      Nessa fantástica miragem viu-se o rapaz transformado em grande ricaço, a exibir o fausto e a ostentação de uma situação privilegiada. A cada volteio da despretensiosa borboleta, mais e mais o jovem se aprofundava em seu êxtase. É agora dono de belo e majestoso palacete em bairro nobre, centro de reunião e de festas da fina flor da sociedade local.
      Suas emoções crepitam. Passam-se minutos, que parecem séculos, neste deslumbramento de riquezas nunca jamais possuídas. Diante de seus olhos espelham-se todos os seus ardentes desejos, agora realizados, e ele se vê em companhia de outros jovens de sua idade, de muitas e maravilhosas moças, e ele simpático, atraente, com aquele ar desdenhoso e distante da abastança regalada.
      As translúcidas asas da borboleta doirada transformam-se, para o rapaz que sonha, num painel gigantesco, onde as imagens alegres do mundo se sucedem sem parar. O mundo está delirante, as mulheres cada vaz mais belas e encantadoras, a cidade mais cheia de magia. e ele entre tudo isto... Que delícia! Como é bom viver!
      O rapaz sonha. Está no auge de sua felicidade, com todos os seus desejos realizados, apaixonado de todas as mulheres, possuidor de todas as comodidades da vida, fruindo todos os prazeres e luxos que o dinheiro proporciona, quando um estudante, que enforcara as aulas, também avista as fulgurações da borboleta doirada!...
      Na ânsia de colher novo espécime para sua coleção amadora, corre para ela, persegue-a, alcança-a, dá-lhe com o caderno, derruba-a na grama verde do jardim. E, com a borboleta, derruba também as falazes quimeras do sonhador!
                                                       *******************
      Coisas da vida!
      O pobre moço vê destruída, de um só golpe, toda a sua felicidade. Já agora o tortura o aguilhão da fome. Procura alguns centavos nos bolsos. Nada. Vazios, E melancólico, frustrado mais uma vez, roendo dolorosamente as unhas maltratadas, ergue os olhos para o horizonte longínquo, procurando nele, quem sabe, uma nova borboleta doirada, que venha trazer-lhe, por alguns instantes maravilhosos, mais alguns retalhos de mentira à sua vida inútil e miserável!...


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

" DE MULIERIBUS NUMQUAM SATIS"


      O título desta página é um provérbio latino (aliás, muito justo) que poderá ser traduzido livremente por "das mulheres nunca se fala o suficiente." A este respeito, falando de mulheres, a Gazeta do Povo, de Curitiba, trouxe tempos atrás reportagem enfocando o caso de um juiz que foi afastado temporariamente de suas funções por machismo explícito.
      Trata-se do juiz de Sete Lagoas, Minas Gerais, cujo nome me abstenho de divulgar. Pois este juiz, num despacho referente à Lei Maria da Penha, lei que condena abusos e violências contra a mulher, afirmou com todas as letras que a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, Eva, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem...
      Além da besteira de uma leitura fundamentalista da Bíblia, isto é, tomando ao pé da letra o que nela foi escrito milhares de anos atrás, ou seja, tomando como se fosse verdade irrenunciável o que não passa de um mito, o egrégio e machista juiz continua sua arenga afirmando que "mundo" é palavra do gênero masculino! Que a idéia que temos de Deus é a de um ser masculino! E que Jesus foi homem...
      Diante de tão irrespondíveis argumentos, o juiz foi colocado em disponibilidade pelo Conselho Nacional de Justiça. Com esta decisão, ficará afastado do trabalho judicial por pelo menos dois anos, recebendo salários proporcionais ao seu tempo de serviço.
      E não é só: a ilustre Corregedora Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, emitiu opinião particular sua de que o juiz faria bem em submeter-se a um exame de sanidade mental... visto que suas estapafúrdias declarações à imprensa configuram uma certeira incitação ao preconceito contra a mulher.
      Com efeito, o juiz machista de Sete Lagoas declarou em entrevista à imprensa que a Lei Maria da Penha contém um conjunto de regras diabólicas, e que não passa de um monstrengo tinhoso...
      Descanse em paz, juiz machista, e faça jus (sem trocadilho!) ao merecido, e no meu entender, pequeno descanso a que foi condenado!
      Tomando carona neste mesmo tema, o do machismo explícito e declarado, protegido eu ainda pelo fato de que o Brasil é governado por uma mulher, Dilma Roussef, que tem na Casa Civil outra mulher jovem e bonita, Gleisi Hoffmann, além de outras mulheres de peso nos ministérios, como Maria do Rosário e Ideli Salvati, me atrevo a falar também da situação da mulher dentro da Igreja Católica  porque nela, unicamente em razão de seu sexo, as mulheres são rigorosamente excluídas de qualquer instância oficial que lhes permita exercer as funções sacramentais, governamentais e magisteriais; isto é um fato, se bem que após o Concílio Vaticano II elas conseguiram já um pequenino passo, o de servir no altar como ministras da Eucaristia.
      Permanece inflexível, entretanto, nas vozes dos três últimos Papas, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, o princípio segundo o qual nenhuma mulher pode ser admitida às funções eclesiais cujo exercício exige, como condição prévia, a ordenação sacerdotal. A disciplina da Igreja Católica consiste apenas na formulação jurídica segundo a qual o sexo feminino é um "impedimentum" à ordenação da mulher. Desta forma, a priori e categoricamente, todo acesso ao ofício público maior da Igreja, o sacerdócio, é interdito às mulheres, como já foi dito, unicamente em razão do seu sexo.
      Lembro que o diálogo entre a Igreja Católica e a Igreja Anglicana, já em fase bastante satisfatória, foi bruscamente congelado quando a Anglicana, num gesto ousado, admitiu as mulheres ao sacerdócio. O Vaticano reagiu imediatamente, declarando que essa atitude prejudicava enormemente o diálogo entre as duas Igrejas.
      O Código de Direito Canônico, que rege a disciplina em todos os setores da Igreja Católica, no seu Caput II, De ordinandis, cânon 1024, legisla que "Sacram ordinationem valide recipit solus vir baptizatus" (Só um varão batizado pode receber validamente a ordenação segrada). Se o Código de Direito Canônico faz uma distinção de funções, reservando exclusivamente aos homens aquelas que exigem, previamente, a pertença à hierarquia, nem por isso se pode dizer que as tarefas atualmente abertas às mulheres sejam desprezíveis ou negligenciáveis. São, no entanto, simplesmente secundárias, em razão da escala hierárquica.
      Pode-se então concluir que as mulheres são menores na comunidade eclesial? Sua exclusão dos setores maiores da Igreja constitui um verdadeiro estatuto de inferioridade? Um real atentado à sua dignidade essencial de pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus? É uma forma anti-evangélica de discriminação?
      Os Papas citados linhas acima afirmam que a Igreja nada mais faz do que seguir o exemplo de Jesus de Nazaré que não escolheu nenhuma mulher para seu seguimento apostólico, sequer Sua própria mãe. E eu pergunto:  nas condições sociais de Seu tempo, poderia Jesus agir de outra forma? Hoje os tempos são outros, e creio que não há razão plausível para que a Igreja não revise sua posição.
      Atualmente, em face destas interrogações, um número crescente de católicos reconhece que a fidelidade da Igreja ao espírito do Evangelho exige uma transformação urgente da situação atual das mulheres com relação à ordenação sacerdotal.
      Perguntam eles: Por que a Igreja permanece agarrada à imagem tradicional da mulher nos tempos de Cristo, quando as novas relações que se instauraram hoje entre os homens e as mulheres, em todos os outros domínios, permitem elaborar uma linguagem diferente sobre o ser feminino?
      Será que a autoridade eclesiástica está persuadida de que a concepção clássica de dependência da mulher faz parte integrante da Revelação Cristã? Ou mantém ela esta concepção por medo de que uma nova concepção venha a provocar modificações essenciais na liturgia, no exercício do poder e do magistério?
      O que me parece como leigo no assunto, mas questionador explícito desta situação, é que não está em jogo simplesmente a relação entre mulheres e homens na comunidade eclesial, mas a negação da própria e autêntica concepção de Igreja, segundo o Evangelho e a atitude positiva de Jesus para com as mulheres. O que, no meu entender, tal negação é profundamente lamentável.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O PODERIO DE DEUS NA FRAQUEZA DE DEUS

      Confesso que sou leitor fanático do escritor inglês Graham Greene, de quem possuo todas as obras já publicadas no Brasil. Suas histórias são aparentemente profanas, nunca o novelista lhes dá aquela demão que orienta o tema num sentido edificante: vários de seus romances se lêem como histórias policiais. A técnica cinematográfica empresta aos sucessivos quadros incomparável poder de sugestão. Uma atmosfera opressiva paira sobre cada livro: o  calor úmido do México, em "O Poder e a Glória"; a luxúria melancólica de Brighton, Inglaterra, em "O condenado"; o Expresso do Oriente, lançado através da Europa, em "O trem de Istambul", com o seu carregamento de destinos cômicos ou trágicos; a frialdade matemática de Estocolmo em "O agente confidencial; a nudez quente e putrefacta de Serra Leoa em "O fundo do problema".
      Acabo de reler (ou treler) "O Poder e a Glória", em que Greene desenvolve o tema de que Deus atua no seio da decadência espiritual: segundo ele, quanto mais se faz sentir a ausência ou o silêncio de Deus entre nós, mais se descobre, na Fé, Sua presença e Sua ação, ainda que ocultas à nossa percepção.
      Neste romance, que eu considero o melhor dos livros de Greene, do ponto de vista da religião e da Fé, o autor coloca magistralmente o tema em plena luz.
      O padre, personagem central da história, é um padre pecador que, tendo ficado por orgulho no Estado de Tabasco, México, durante a perseguição do governo à prática do catolicismo no país, não consegue suportar a solidão e entrega-se ao alcoolismo.  Certa noite, embriagado, envolve-se sexualmente com uma camponesa, vindo a ter dela uma filha, que Greene nos mostra já precocemente transviada, e numa cena dantesca, tentando fazer sexo com o próprio pai. (Lembra-me cena parecidíssima presente no livro de Georges Bernanos, "Diário de um pároco de aldeia").
      O padre é atormentado pelos seus pecados, mas é também incapaz de um ato de contrição perfeita que, segundo a doutrina católica, poderia trazer-lhe o perdão de Deus; sonha então atravessar a fronteira, dirigir-se ao Estado vizinho, onde com certeza encontraria um outro sacerdote e se confessaria.
      Dessa maneira, sozinho e pecador, o padre compreende melhor as pessoas que ouve em confissão e às quais ministra a Eucaristia, nos acasos de sua fuga. Embora constrangido e paralisado pela vergonha que sente ao intuir que os habitantes desse Estado perseguidor da religião talvez não venham a conhecer outro sacerdote, além do farrapo humano em que ele se tornou, ainda assim, perambulando de aldeia em aldeia, se torna um verdadeiro anjo de piedade para todos aqueles de quem se aproxima ou que precisam dele.
      Ao mesmo tempo é um desses homens acossados que Greene não se cansa de descrever. Mas o tema alcança neste romance uma grandeza inigualável: o grande segredo da história é que o padre não é apenas acossado pela polícia, mas muito mais que isso, pela sua própria consciência machucada, ou melhor, pela própria presença de Deus que, átravés da perseguição contra o homem, continua a chamá-lo: deste modo seu destino se torna uma vocação, como nos mostra Paul Rostenne em profunda análise do romance.
      O padre é fiel ao apêlo de Deus, respondendo-lhe com a realização de atos que a moral cristã chama de Caridade perfeita. No primeiro deles, o padre deixa de tomar o navio que o levaria à salvação, para atender a um menino, que lhe pedia para ir socorrer a mãe. No segundo, o padre dá a  mula, que lhe permitiria fugir mais rapidamente, a um mestiço ferido para que ele fosse à vila mais próxima curar-se. No terceiro, que considero o mais belo de todos, ele atravessa de volta a fronteira com o mestiço, que o convence a ir atender um gangster moribundo que deseja receber os sacramentos da Igreja. Nesse atravessar a fronteira, de volta, o padre é capturado pela traição do mestiço.
      Ele realiza estes atos de Caridade perfeita sem suspeitar que eles lhe serão salvadores. Sua morte por fuzilamento será aceita como um martírio verdadeiro. Embora sua atitude na manhã da execução seja humanamente lamentável - ele estava bêbado - é uma morte por Cristo; nessa mesma noite, um adolescente, que nutria profunda admiração pelo tenente que ordenou o fuzilamento, beija devotamente a mão ao novo sacerdote que chega à aldeia.
      Uma vida perdida moralmente e cristãmente, conforme o julgamento de homens e de mulheres, revela-se desse modo habitada secretamente pela presença de Deus. Não só a desgraça está misteriosamente penetrada pela misericordiosa presença de Deus, mas também o homem pecador.
      Aqui se abre o abismo que sempre separará os humanistas revolucionários ateus, da Cruz de Cristo. Alguns dias antes de sua execução, o padre em conversa com o tenente que o prendeu lhe explica por que é necessário nas revoluções atéias que os revolucionários sejam bons: se no começo da revolução os seus adeptos são idealistas e sinceros, logo eles serão subtituídos por outros mais radicais e maus; e então tudo recomeça como antes: voltam as injustiças, as fortunas ilegais, as crueldades, as prisões arbitrárias, a desconfiança geral, as delações. Pelo contrário, continua o padre, "ainda que todos os sacerdotes fossem como eu, covardes, bêbados, pecadores sexuais, isso nada alteraria, porque eles sempre poderão dar Deus aos homens e às mulheres".
      É possível Deus aceitar assim o risco de ser dado a homens e mulheres pelas mãos de um pecador? É possível que Ele consinta em fazer depender a Sua presença eucarística, da garrafa de vinho que um soldado imundo e covarde esvazia em meio a risos de deboche? E eu respondo: é possível sim, pois sei que Deus, em Jesus de Nazaré, se entregou de tal modo aos Seus carrascos, que consentiu em ver assim humilhado o Seu poder. Quando o padre pecador vê esvaziar-se a única garrafa de vinho que ainda lhe permitiria celebrar a Missa naquela terra prometida à morte de Deus, seu coração, e também os nossos corações, se amarguram, pois comprendemos que nesse minuto Deus, em Cristo, morre uma vez mais pelos pecadores. Um sacerdote pecador é perseguido pelas estradas do México como se fosse um salteador. Pensamos na frase bíblica: -" Ele foi colocado entre os ímpios." Não nos iludamos: este sacerdote, ainda que pecador, é uma imagem de Cristo entre nós.
      Quão grande é a humildade de Deus! E quão grande é também o Seu poder, em meio à fraqueza, pois que uma só palavra saída  da boca de um padre pecador, faz desatar a imensa torrente do perdão divino!
      O "Poder e a Glória", de Graham Greene, manifesta a força sobrenatural desse paradoxo. A única resposta às orgulhosas doutrinas atéias é o mistério de Deus crucificado, escondido num pouco de pão e num pouco de vinho.
      Este livro de Greene nada mais é que um comentário das palavras divinas: NÃO JULGUEIS. Não julgueis o mundo que vos parece abandonado por Deus; ele está habitado por Deus. Não julgueis a humanidade que, aparentemente, matou a Deus; ela foi salva por Deus. Não julgueis a derrota de Deus, espezinhado em instituições oficiais ou públicas, que se entregam à cultura do mal; o poder e a glória de Deus estão ali presentes.
      Ouçamos a verdade bíblica: - "Deus serve-se das coisas que não são, para salvar as coisas que são."  Uma coisa que não era: a cruz. Sem ela, nós que seríamos nada. Assim é o mistério da Páscoa.
      Por que perder a coragem diante do mal? Deus morreu? Mas depois RESSUSCITOU.

     
 

sábado, 1 de outubro de 2011

ALVORADA DE ESPERANÇA

 
Há certa constatação de um fato que as estatísticas e a observação isenta confirmam: se quase não há mais cristandade (e essa palavra me provoca arrepios), em compensação há cristãos, e dos bons. Cristãos conscientes, escolhidos, que preparam o futuro sem estardalhaço, em segredo. Que os haja principalmente entre nossa juventude - estão aí as jornadas da juventude inauguradas pelo Papa João Paulo II para provarem o que digo - em cada um de nossos colégios, nos auditórios universitários, nas fábricas e no seio das famílias, levando uma vida de Fé infinitamente mais rigorosa do que a vivida no passado, é já uma alvorada de esperança e uma alegria. Reportagem recente na Gazeta do Povo, de Curitiba, sobre os encontros e pastorais de jovens em todas as instâncias religiosas, reflete também uma esperança e uma alegria.

Quanto mais no plano dos estamentos sociais, a apostasia das massas parece-nos planetária, tanto mais, no plano mais geral da vivência religiosa, a Fé se mantém vigorosa e firme. Graças lhe sejam dadas, porque verdadeiramente é um milagre, o milagre da Fé.

Em sequência à sensacional abertura de horizontes provocada pelo Concílio Vaticano II, explodiu na Igreja (e nas igrejas) um intenso movimento, um aggiornamento como nunca se viu antes: liturgia renovada, estudos bíblicos, Pais da Igreja, pastorais, arte sacra - tudo isso palpita, vive, se busca em todos os setores. Já se pôde ver nitidamente as linhas de força que comanda tal movimento de renovação eclesial. Uma vez lançado pelo Concílio, que foi a verdadeira e autêntica Reforma da Igreja, a velocidade cresceu e se tornou insopitável. Mau grado as aparências e a casmurrice dos céticos, a Fé progride em profundidade e vivência comunitária, confirmando a presença do Senhor Jesus e a inspiração constante de seu Espírito Santo.

Os livros, a televisão, o cinema, o rádio e até o teatro (e agora o fenômeno avassalador da informática), cada vez mais vão se interessando pelos problemas da Fé e da espiritualidade. Nos primórdios do cristianismo o Pentecostes não atingiu mais do que cento e vinte discípulos, revelam-nos os Atos dos Apóstolos, e contudo incendiou o mundo. É certo que pouco a pouco. Mas em profundidade e constância através do longo caminhar do tempo.

Tenho absoluta convicção de que um novo Pentecostes, derivado do primeiro, está sem dúvida nenhuma em ação no mundo. É com paciência, com perseverança e sólida determinação que as comunidades cristãs hão de ver um dia, não o triunfo visível da Igreja (e das igrejas), mas o seu crescimento em profundidade e autenticidade.

O desenrolar apocalíptico dos séculos ensinou-nos que - continuem ou cessem as guerras e o terrorismo fanático - é preciso que façamos tudo para que eles cessem - mas a Fé cristã continuará viva, porque, na visão de Georges Bernanos, "Tudo é Graça".

Sabemos perfeitamente que os caminhos do Senhor não são os nossos; mas estamos compreendendo melhor, pela mediação de Jesus de Nazaré, a verdadeira face de Deus, melhor que as nossas maiores felicidades humanas. Sua Graça nos revela um mundo de tal esplendor, que necessitamos de uma sacudidela em nossos hábitos confortáveis para conhecê-la como ela é; para saber que ela é Jesus Cristo!

Neste ponto, lembro-me dos que são pobres, materialmente, os indigentes de bens materiais; espiritualmente, os que são, como eu, pecadores. Sempre haverá pobres entre nós, já o prognosticou Jesus de Nazaré. Mas deveríamos não esquecer que esses pobres, eu como também os que me lêem, reclamam todos os nossos desvelos temporais e espirituais, porque a sua multidão inumerável constitui, entre nós, a presença de Jesus Cristo.

Lembro-me também daqueles jovens, com os quais partilhei trinta anos de magistério na pequena cidade de Barbosa Ferraz, interior do Paraná, quando tive a oportunidade de conhecer a intensa vida cristã da maioria deles. Hoje, são todos adultos, se bem que muito mais jovens do que eu, que já contornei o Cabo da Boa Esperança e vou, como o Vasco da Gama, dos "Lusíadas", enfrentar os rochedos e tempestades do Cabo das Tormentas...

Que esses cristãos que eu conheci e com os quais convivi, como também os que não conheço e que me dão a alegria de conviver comigo neste blog, saibam eles que a frase do escritor francês que admiro, Charles Péguy, permanece verdadeira: - "Nada se fará senão por intermédio das crianças", parafraseando outra frase ainda mais verdadeira: a pronunciada por Jesus de Nazaré.

De fato, e esta é também a minha convicção, a infância, a juventude é Deus, mais jovem, mais forte e atual do que o mais recente telejornal da televisão. Além disso, o que importa é a luz da Fé, porque não é nem homem nem mulher que salvam homem e mulher, e sim o próprio Deus, em Jesus Cristo!


Professor Aroldo - roldalmeida@hotmail.com

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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

"O SILÊNCIO" DE DEUS SERÁ MESMO REAL?

    Ocasiões há em que Deus parece que nos fala sem cessar; noutras, porém, Ele parece esconder-se nas profundezas do Céu, e nós então nos sentimos sozinhos, quando precisaríamos da presença aconchegante do Criador junto de nós.
    Embora conheçamos, dentro de nossas limitações de criaturas os desígnios gerais de Sua Providência, ignoramos completamente a realidade de Seus propósitos particulares a respeito de cada um de nós.
    Há períodos no longo caminhar da História em que homem e mulher, de maneira dolorosa, tomam consciência da aparente ausência de Deus neste nosso mundo. Pois este período histórico em que vivemos atualmente parece-nos testemunhar esta ausência ou este afastamento de Deus de nosso meio. Temos a impressão de vivermos num daqueles tempos de apocalipse, preditos pelos profetas. Há guerras em várias partes do mundo; o terrorismo e o fanatismo sem freios têm atacado alvos em toda parte, espalhando o medo e fazendo milhares de vítimas; fenômenos naturais catastróficos assustam populações inteiras, destruindo cidades, habitações, e colocando seus habitantes, justamente apavorados, quase sem capacidade de reações.
    Enquanto isso, dizem-nos as estatísticas, milhões de vítimas da fome morrem à míngua em bolsões de miséria da África e da Ásia, com maior impacto principalmente entre as crianças que, pela desnutrição endêmica, jazem quase sem esperança de sobrevivência. A justiça torna-se uma caricatura em vários países dominados por oligarquias tirânicas e sanguinárias, que defendem a ferro e fogo sua permanência no poder, esquecidas das mais elementares normas de respeito às populações em busca de seus direitos calcados aos pés pelos tiranetes do dia. O custo de vida aumenta sem parar, países inteiros sofrem com sérios problemas econômicos, que atingem mesmo uma escala global. Um escritor da Europa central, Gheorghiu, chegou a publicar um livro a que deu o sugestivo título de "A Vigésima Quinta Hora", no qual fotografa literariamente as tragédias que nos atingem, profetizando que nem mesmo um Messias conseguiria salvar-nos.
    A impressão que temos seria de que nada mudou no mundo, desde o surgimento do Cristianismo. Os próprios cristãos, apesar de sua Fé na Providência Divina, parecem sofrer mais que os outros: não são poupados pelos flagelos universais, e ao mesmo tempo acabrunha-os o sentimento de pecados que avassalam o mundo, e perdem o ânimo diante da apostasia planetária. Todos os dias lhes pedem para ser novos cruzados empenhados na salvação do que resta ainda de bom em nossa época, mas eles não se sentem com forças ou preparados para essa magna tarefa.
    "Silêncio de Deus", outro nome para traduzir a tragédia do universo? Seriam o homem e a mulher uma "paixão inútil", como proclamava tempos atrás o racionalista e ateu francês, Jean Paul Sartre, na sua literatura e no seu teatro do absurdo, em Paris?
    Diante deste silêncio enigmático de Deus, que parece ter-se esquecido de Sua criação, muitos cristãos desejariam uma manifestação sensacional do Criador, uma espécie de trovoada celeste que limpasse de uma vez por todas a atmosfera, e reconduzisse à Fé a humanidade inteira.
    Enganam-se, porém, os cristãos que desejam milagres espetaculares da parte de Deus. O romance de Bruce Marshall que acabo de reler, "O  milagre de Dom Malaquias", prova esta minha afirmação, de maneira bastante humorística. Um frade faz uma aposta com certo pastor "evangélico", nestes termos: com uma prece fervorosa, pediria a Deus que atirasse para cima de uma alta montanha um cabaré que se instalara cinicamente bem defronte ao seu mosteiro, com grandes danos para a vida religiosa sua e de seus irmãos frades. Foi ouvido por Deus. O cabaré, seus móveis, copos e garrafas, orquestra, mulheres de escassa virtude, mundanas em disponibilidade, bons cidadãos extraviados, tudo voou para o pico mais alto da montanha. O milagre é proclamado no mosteiro e em todas as igrejas da diocese; agradece-se a Deus pela prece atendida. Entretanto, o bispo diocesano mantém-se na defensiva: -"A Igreja não gosta muito de milagres", - confia ele ao superior do mosteiro.
    O pastor "evangélico" afirma que o fenômeno milagroso se explica perfeitamente por um ardil dos papistas; os ateus e racionalistas falam de auto-sugestão. Mas a verdade estava mesmo é com o bispo. Após uma corrida fantástica para a igreja paroquial, as pessoas começam pouco a pouco a afastar-se das missas e das novenas. Depois de algum tempo a igreja fica quase deserta. Muito mais do que isso: o malsinado cabaré, transferido para um local sensacional, atrai quase toda a população da cidade para os seus espetáculos não muito decentes, e os seus negócios  duplicam em poucos dias.
    O frade apostador cai em si e se convence de ter sido impaciente; reconhece que homem e mulher são feitos de tal material que, não estando moralmente preparados para ir ao encontro com Deus, nem o milagre mais extraordinário os convencerá. É preciso ser paciente. Esperar o dia e a hora de Deus. Não querer antecipar-se aos desígnios do Senhor. Ter Fé e Esperança. Uma outra breve e contrita oração do frade, e o cabaré volta ao seu lugar anterior, e tudo recomeça como antes!
    Ora, o cristão parece não ter um minuto de trégua neste mundo. Os problemas surgem-lhe ao mesmo tempo e de todos os lados. A historieta de Dom Malaquias é bonita mas, o que dizer desta outra? Certa família muito religiosa gasta uma pequena fortuna para levar o filho doente numa peregrinação longínqua a um santuário famoso, com a esperança de obter a cura de sua doença. Irmãos, irmãs, avós, amigos, todos rezam, as comunidades religiosas reforçam o pedido de cura com suas preces e penitências. Entretanto, o menino não se cura e vem a falecer.
    Mistério terrível! Pode-se, deve-se mesmo dizer que a Fé daqueles que tudo sacrificaram para obter a cura de um filho, sem ser atendidos, é especialmente colocada à prova por Deus. Mas por que se cura um, e não se cura aquele outro?
    Mal ouso escrever estas linhas; elas são verdadeiras, mas para quem experimentou em si mesmo semelhante desilusão, como eu senti com a morte precoce de minha filha Raquel, vítima de um câncer insidioso, as frases de consolo e de explicação assemelham-se às tagarelices banais de certas consolações de amigos. É certo que Deus sabe o que faz. Mas eu, na minha fraqueza de ser humano finito e conteingente, acredito não pedir demais, suplicando por vezes a Ele, que conceda à minha esposa e a mim  ao menos uma dessas consolações visíveis, uma dessas parêneses com que minha alma, que afinal de contas está encarnada numa natureza débil, possa saciar-se um pouco para recuperar as forças. Mesmo que eu saiba, pela leitura e meditação dos textos sagrados da Bíblia, que Deus recusa essa consolação aos seus melhores amigos.
    É uma verdade profunda, mas difícil. A Sagrada Escritura inteira a testemunha, e principalmente o Filho de Deus, Jesus de Nazaré, que à véspera de Sua morte pede que Deus Pai lhe afaste esse cálice, não é atendido, mas apesar de tudo o bebe, livremente, por amor!


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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A PENUMBRA DA FÉ

    Há na Bíblia sagrada um tema que considero essencial para a intelcção de nossa Fé. É aquele tema que o teólogo francês Charles Moeller, no seu livro "A Fé em Jesus Cristo", chama de "penumbra". Com efeito, lendo os textos sagrados com atenção, descobrimos logo de início a coluna de nuvens  que mostra o caminho aos israelitas no deserto, a "glória de Javé" que encobre a presença de Deus no Santo dos Santos, no templo; a "tenda luminosa" que envolve Jesus de Nazaré no relato da transfiguração, e muitas outras presenças dessa nuvem misteriosa que constituem, para o israelita, a única possiblidade de ver a Deus sem morrer.
    Há outra "nuvem luminosa" na vida de Jesus de Nazaré,  a sua humanidade, que encobre a presença do Verbo de Deus, que plantou sua tenda entre nós, conforme o testemunho do evangelista João, no Prólogo de seu Evangelho. É por essa humanidade, a penumbra que vela e revela a realidade mesma do divino em Jesus, que João repete muitíssimas vezes que ela é "gloriosa".
    O Evangelho de João nos lembra sempre que a "hora de Jesus" é a do Calvário, e é justamente no momento em que a nuvem luminosa se torna aparentemente trevas e escuridão total, o instante em que o Crucificado entra na glória.
    Lendo e meditando o Evangelho de João,  intuímos claramente que os temas da noite e da glória estão sempre juntos: Na véspera de sua paixão disse Jesus: É a hora do poder das trevas, mas acrescenta também que Agora o Filho de Deus é glorificado, isto porque a hora das trevas é a passagem para a glória da Ressurreição.
    Se Jesus de Nazaré, na sua humanidade, é a nuvem luminosa que oculta o Verbo de Deus e O revela, a Igreja, que revela Cristo presente em nosso meio pelo seu Espírito Santo, é por sua vez também uma penumbra luminosa: o sinal que ela apresenta no meio das nações, sua perenidade no longo decorrer dos tempos, sua santidade, sua doutrina imutável, e tudo isto pode  ser contradito. Como seu Mestre, Jesus, também a Igreja  é um sinal  de contradição no seio do mundo: está cheia da humanidade e da santidade de seu Senhor e Mestre, e é aparentemente uma sociedade como as outras.
    Constituída por homens e mulheres pecadores que devem constantemente ser resgatados de seus pecados, ela pode e pôde, no decorrer da História, no plano de sua vida, prestar seus flancos às críticas e aleivosias de seus detratores e adversários, como também pode e pôde errar nos seus seguidores.
    Os escândalos presentes na história da Igreja, na sua cúpula e em seus membros, não se podem negar. A explicação para esses escândalos é a consequência simplesmente de o fato da divindade estar contido em vasos frágeis, finitos e contingentes. Ainda, porém, que a Igreja terrestre fosse inteiramente santa, visivelmente como Jesus o era, nem por isso deixaria de ser um sinal de contradição; Jesus também não o foi?
    Quando a inteligência, assim esclarecida sobre as condições inevitáveis da revelação cristã, aborda honestamente o exame das provas, deixará de ser rebelde às obscuridades inerentes ao testemunho do mundo evangélico. O mesmo problema que lhe propunha a dor no mundo, reaparece nas obscuridades do texto inspirado e nas trevas aparentes da história da Igreja. Se ela se recusasse a tomar em consideração essas obscuridades do testemunho religioso, cometeria o mesmo erro que pretendesse edificar uma concepção do mundo passando em silêncio o paradoxo do sofrimento e da morte.
    O espírito moderno, ao mesmo tempo "científico e místico", acha-se bem preparado para abordar a Fé deste ângulo. O que se pede à inteligência humana , diante da Fé, é que integre esses fatos , esse claro-escuro, numa visão conjunta do universo. Não seria razoável recusar-se a fazê-lo.
    A inteligência há-de inclinar-se sobre a dor humana, como também sobre o fato da santidade no mundo. Ela se perguntará se a hipótese de uma intervenção do alto, de Deus, não explicaria melhor o conjunto  do destino humano, do que qualquer outra hipótese que eliminasse essa possibilidade. Não poderá deixar de ver que num dos casos elimina toda uma parte da experiência, enquanto no outro restitui homem e mulher à sua unidade.
    Em consequência deste fato, a inteligência moderna tem de admitir que certas verdades da Fé a ultrapassam; deve reconhecer que o essencial da verdade não é uma evidência matemática da qual ela seria o único juiz. Deve concordar em confiar a Deus o cuidado de a guiar. Aqulo a ela deve render-se é à presença de Deus no mundo, na palavra, no coração dos que amam, na alma dos que sofrem, na vida dos que abraçaram a santidade.  Os mistérios da Fé em si mesmos continuarão sendo-lhe inacessíveis; a inteligência moderna, porém, acredita neles, porque se abandona conscientemente Àquele que lhe revela tais mistérios.
    Esta surrender da razão  só alcança as verdades que a superam; nada lhe rouba da sua legítima autonomia no domínio que de direito lhe pertence. É só depois de ter visto que é plenamente racional tomar a sério a hipótese cristã, mais racional mesmo do que negá-la, é que a razão pode deixar à "boa vontade" o cuidado de abrir as profundezas do ser à presença divina. Quando esta aceitação da Fé se realiza, a inteligência ilumina-se interiormente com uma luz nova; apreende realmente a verdade do testemunho de Deus. Poderá até entrar na compreensaõ dos mistérios, poderá penetrar naquilo que os teólogos chamam de intellectus fidei,  o mistério da Fé.
    A Fé, portanto, não é superstição, fraqueza do espírito, racionalismo, nem adesão cega a uma verdade fictícia. Há suficientes claridades no fato cristão para justificar a adesão do espírito, e não as há bastantes  (no sentido de verdades evidentes) para fazer da Fé a conclusão de um raciocínio puramente matemático, humano.
    A Fé é racional, plenamente digna do nosso espírito  e da nossa vontade.