quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A ESPERANÇA CRISTÃ, UMA UTOPIA?

      O ensaísta francês e poeta da Esperança e da Ressurreição, Charles Péguy, não foi um "Padre da Igreja", mas é um irmão nosso que nos responde toda vez que o interrogamos. Sua esperança na ressurreição é um eco do canto muitas vezes de juventude ou de dor sob o qual transcorre a vida de homem e de mulher neste mundo. É dele uma frase que encontrei em seu livro "Le Mystère des Saints Innocents", que faço questão que seja a inspiradora desta minha página:
      - "É necessário fazer uma revolução temporal para a salvação eterna da humanidade."
      Sei de alguém que disse não ser possível que deixemos homens e mulheres no inferno da miséria. Que é preciso fazê-los transpor o limiar que os separa da pobreza, que é em si mesma um purgatório. É ainda muito conveniente e salutar que os cristãos abramos de vez em quando a Bíblia, pois o nosso roteiro de ação está lá bem claro e límpido para todos que têm olhos de ver e ouvidos de ouvir:
      - "Eu era um mendigo e vós me acolhestes; eu tinha fome e vós me destes de comer; eu estava nu e vós me vestistes - proclamava o Senhor Jesus. - "Aquilo que fizestes ao mais pequenino dos meus, é a mim mesmo que o fizestes."
      - "Aquele que diz amar a Deus - escreve por sua vez o evangelista João - e não ama seu irmão, é um mentiroso, porque como pode dizer que ama a Deus, a quem não vê, se não ama seu irmão, a quem vê?"
      Estas palavras são de uma simplicidade esmagadora. Impossível pretender furtar-se ou mostrar-se indiferente a elas.
      O teólogo belga, cardeal da Igreja, perito do Concílio Vaticano II e um dos redatores da Constituição Apostólica desse mesmo Concílio, a "Gaudium et Spes", Charles Moeller, em sua monumental obra em três volumes, "Literatura do Século Vinte e Cristianismo", lembra-nos que à medida que as aspirações de homens e de mulheres se dilatam, é certo que também se revelará com mais amplidão a fecundidade social da Boa Nova pregada por Jesus de Nazaré em suas caminhadas pelas aldeias da Palestina.
      Com efeito, a Caridade, virtude teologal que em todos os tempos suscitou hospitais, leprosários, orfanatos, albergues para peregrinos, mil e uma modalidades de obras de misericórdia, pode também hoje ter a lucidez e a coragem de descer à principal raíz dos males e misérias do mundo: as injustiças generalizadas a nível planetário, as estruturas sociais viciadas, inadequadas e quase sempre corroídas internamente pela corrupção, as instituições e organismos políticos e judiciários consciente ou inconscientemente colocados a serviço de grupos e facções em detrimento de uma dedicação total, racional e planificada, ao Bem Comum dos países de todos os continentes.
      O cristão deve estar presente em todos os esforços da cidade temporal, quando ela procura edificar um mundo mais humano. Não pode jamais conformar-se com o sofrimento nem próprio, nem dos outros. Ele sabe, melhor do que ninguém, que a causa fundamental do sofrimento no universo, além da finitude e da contingência essencial do homem e da mulher, é o pecado. Não apenas o primeiro pecado que se atribui a Adão e a Eva, mas os seus próprios pecados e os pecados de seus irmãos.
      É o pecado social, muito mais perverso do que o pecado pessoal, e que consiste na organização de uma sociedade ou cultura em que um ou mais grupos de pessoas são sistematicamente excluídos, oprimidos ou violados em sua humanidade. Tal situação é má porque diminui ou destrói o ser humano em comparação com o valor intrínseco e inviolável da pessoa humana. É pecado porque sabemos que, em última análise, a organização da sociedade depende da liberdade humana e pode ser alterada positiva ou negativamente. Em outras palavras, os seres humanos são responsáveis por essa situação. Mas tal responsabilidade é precisamente social, e não individual. Daí, o pecado social.
      O cristão consciente sabe que as guerras, as revoluções, os levantes, as revoltas dos povos assim ditos crucificados, provêm dos pecados coletivos das nações: regiões onde reina uma espécie de feudalismo, comandado por tiranias oligárquicas, que dá a alguns ricos a posse de imensos territórios e benesses indevidas, são terras seguramente de injustiça e de pecado que clama aos céus.
      Neste contexto a Teologia da Libertação, em muito má hora condenada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, (hoje Papa Bento XVI), nos advertia de que a afirmação teologicamente correta de que o pecado deu a morte ao Filho de Deus, Jesus de Nazaré, é vivenciada a partir da experiência de que o pecado continua dando a morte também aos filhos adotivos de Deus, os povos oprimidos pela dor da fome e da exclusão social.
      Viver como cristão significa descobrir a plenitude da realidade do mundo a partir da realidade divina. Pela encarnação do Verbo, a realidade divina entrou na realidade humana, dando-lhe assim sua plena significação. O mundo foi reconciliado em Cristo e existe uma aliança divina entre Deus  e a humanidade. Por isso, não é possível ser autêntico discípulo de Cristo fora da realidade do mundo. É o que nos ensina o teólogo Dietrich Bonhoeffer em seu belo livro "O Discipulado".
       Por conseguinte, quando os cristãos corajosamente fizerem uma política cristã, os revolucionários,  como Fidel Castro, por exemplo, já não terão razões de serem marxistas e ateus. Aliás, entre os cristãos fala-se muito em vida futura. Sem dúvida, a vida futura é, para os cristãos, o Reino de Deus, como lhes ensina a Bíblia. Mas os cristãos devem renunciar urgentemente a um certo resquício de idealismo platônico que faz da religião uma evasão, uma fuga do mundo, um álibi para os exploradores e opressores de todos os matizes.
      Comecei estas linhas com um pensamento de Charles Péguy. E a encerro com o mesmo pensamento, afirmando que aquela revolução temporal para a salvação eterna de que ele fala, deve realizar-se simultaneamente com os esforços de santificação no plano pessoal e no plano das estruturas sociais, econômicas, políticas e judiciárias. 

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