quinta-feira, 31 de maio de 2012

UMA BELA INTUIÇÃO PROTESTANTE


      - "Todos os que têm de lutar contra a incredulidade deveriam ser aconselhados a não levar a sério sua própria incredulidade. Somente a Fé deve ser levada a sério. E se nossa Fé é do tamanho de um grão de mostarda, isso basta, pois o Diabo perdeu o jogo."

      Esta frase do teólogo protestante  Karl Bath (1886-1968), que encontrei num de seus sermões é, no meu modesto entender, uma das grandes intuições do protestantismo, apesar de que, do meu ponto de vista criticamente católico, possa encontrar nela uma provável falha. Em que sentido?  Dizer que "somente a Fé deve ser levada a sério"  pode ser compreendido à luz daquela humildade cristã - e católica - que põe toda a sua confiança em Deus. Entretanto, como católico que sou, estou consciente  de que nossas boas obras, contrariando o pensamento de Barth, também  são necessárias, apesar de não deverem ser levadas muito a sério.
      Na verdade, a doutrina católica da justificação, que professo, nunca disse a ninguém que suas boas obras devessem ser levadas a sério, no sentido de confiar inteiramente em sua própria justiça porque, pela leitura dos Evangelhos, intuímos que confiar inteiramente em suas próprias obras faz do cristão um fariseu.
      Voltamos então à epígrafe que abre este texto: Só a Fé deve ser levada a sério porque somente a misericórdia de Deus é algo de realmente sério. E, se colocamos demasiada ênfase na seriedade daquilo que fazemos, não apenas tornamos o juízo de Deus a mais séria realidade em nossa vida, mas estamos, de fato, já previamente julgados.
     Seremos homens e mulheres já julgados, porque assumimos com seriedade  algo que não é a infinita misericórdia de Deus. Quem leva a sério a misericórdia divina com toda certeza quase nunca pecará seriamente. Quem, entretanto, leva muito a sério suas próprias obras, não será preservado, por esta sua própria seriedade, do pecado. Sua seriedade seria uma pseudo-seriedade. E isto não basta.
      Que dizer então da incredulidade, nos termos de Karl Barth?
      Se a Fé deve ser levada a sério, segue-se que a incredulidade é também algo de sério? Não é bem assim, explicaria Barth, porque levar a sério a Fé, é a Deus que levamos a sério, não nós, não a nossa Fé. Não levamos a Fé a sério como algo que possuímos definitivamente, mas levamos a sério Deus, que nos dá o dom da Fé e renova continuamente esse dom, por sua infinita misericórdia, apesar da nossa tão frequente incredulidade.
       Esta é a bela intuição do cristianismo protestante que assinalei no título destas reflexões. E é algo que todos nós, indistintamente, devemos aprender e apreender, lembrando ainda que muitos protestantes se esqueceram deste cuidado. Tornaram-se obcecados com a Fé tal qual existe neles. Vigiam constantemente para ver se esta Fé ainda está ali. 
      Isto significa transformar a Fé numa boa obra, o que significa também, consequentemente, ser justificado pelas obras. E isto contraria, praticamente, o que pregam em seus púlpitos.
      Como diria ainda Barth: - "Crer é ser livre para confiar nEle somente, e só nEle", e é ser livre em relação a toda outra forma de dependência e apoio.
      Esta é, tenho convicção, a verdadeira liberdade, e dela brota a capacidade para toda boa obra, pois remove de nossos corações todos os obstáculos ao Amor.  

quarta-feira, 30 de maio de 2012

"AINDA FALANDO DE MARIA..."


      Meu texto anterior aqui publicado "Por que não falar de Maria?" provocou a reação (esperada) de um pastor "evangélico". Eu só não esperava a sua expressão esdrúxula e grosseira: "quarta pessoa da Trindade." Mantenho, porém, e reafirmo o que disse naquele texto,  por ser minha vivência de católico.
      A defesa que faço de um verdadeiro culto a Maria, como condição normal de uma vida cristã perfeita e desabrochada, me obriga a uma observação sobre certos excessos provenientes de exageros populares, ou de certas organizações marianas na Igreja. Jesus de Nazaré é quem nos faz compreender Maria, e não Maria quem nos faz compreender Jesus.
      A vida cristã perfeita exige um duplo culto explícito: o de Cristo e o de sua Mãe. Uma vida mariana que apenas cultue implicitamente a Cristo será, portanto, um Cristianismo imperfeito. Em todo caso, tal Cristianismo seria menos desenvolvido do que o de uma vida cristã em que a devoção mariana fosse apenas implícita.
      Por "mariolatria" entendo exatamente o atribuir em surdina à Virgem o culto devido a Cristo. Se Maria não permanecer o ostensório, onde tudo brilha para o Cristo, estaremos depreciando a verdadeira glória de Maria. Ora, a glória de Maria reside no insondável mistério de sua concepção corporal e espiritual de Cristo, na aspiração de todo o seu ser pelo único mediador, Cristo Jesus.
      A expressão "Maria, caminho que leva a Cristo" por vezes é interpretada como se a humanidade de Jesus ficasse muito distante de nós, e como se Maria fosse a ponte que nos unisse. Essa maneira de ver reduz o sentido profundo da Encarnação  -  o Verbo feito semelhante a nós  -  e o sentido da visão cristã do mundo voltado para a santa humanidade de Cristo como órgão divino de nossa salvação.
      Jesus de Nazaré é um dos nossos justamente porque, nascendo de Maria, por ela chega até nós. Entre Jesus e nós a relação é imediata. Ele é o único mediador entre Deus e a humanidade porque teve de Maria sua origem de Homem-Deus. Tudo vem de Cristo, mas Ele nos oferece a redenção como já sublimemente realizada em Maria que sublimemente a aceitou. O fiat  de Maria tem prioridade sobre o nosso e o engloba.
      Com Maria, e sob a influência maternal dela, nós vamos ao encontro da humanidade santa de Jesus, que nos introduz na casa do Pai. Não é, portanto, Maria que nos dá Jesus, mas é Jesus que nos dá Maria por Mãe: "Eis aí tua Mãe." Ele escolhe para si e para nós uma mesma mãe: "Deus a escolheu e a predestinou".
      Entretanto, no plano da recepção ativa e distributiva da graça, é ela que nos dá Cristo, na expressão "Por Maria a Jesus", por ela , "a que encontrou graça junto de Deus". Foi o anjo da Anunciação quem lhe deu este nome. Unidos a ela, também nós encontraremos graça junto de Deus.
      Maria não é um elo que une homem e mulher a Deus, mas o seio que gera todos os irmãos de Cristo. E este encontro com Cristo se faz nela e com ela.
      Neste sentido, a devoção mariana em nada afasta de Cristo. Nem substitui nossas obrigações diante dEle. Pobres servos que somos, às vezes dizemos: "Vamos deixar Maria rezar e trabalhar em nosso lugar, e tudo se arranjará".  Sim, se por isso entendemos unir-nos à onipotência suplicante de Maria para nos aprofundar na fé e na intensificação de nosso amor. Não, se por isso entendemos uma substituição.
      Não coloquemos Maria para tapar nossas faltas, ficando nós sem fazer nada para remediá-las. Fique claro que Maria nunca preencherá nossa falta. Nem suprirá em caso de ausência de verdadeira vivência religiosa.
      A misericórdia de Maria tem sua fonte na misericórdia do Homem-Deus, Jesus de Nazaré, onde ela mesma bebeu superabundantemente as primícias da redenção. Ela mostra para nós a divina misericórdia pelo aspecto maternal de sua pessoa. Mas lembremo-nos que sua intervenção materna, ainda que efetiva, jamais poderá fazer contrapeso à justiça divina de Cristo.
      Não ignoramos, aliás, que uma expressão muito humana e antropomórfica, sobretudo no que diz respeito a Deus, às vezes enfoca melhor a realidade, do que todas as afirmações teológicas.
     

"

segunda-feira, 28 de maio de 2012

POR QUE NÃO FALAR DE MARIA?




      Nem tanto  no protestantismo histórico, mas nessa enxurrada de seitas "evangélicas" (?) que pululam por aí, no seu biblicismo, e na consequente bibliolatria, se fala sempre, e com ênfase, no "Senhor Jesus", mas se esquece que Ele teve uma mãe neste mundo, a quem certamente amou e lhe dedicou um  afeto de filho, que também era Deus.
      Qual o filho que  não se entristece ao ver que sua mãe é desprezada ou colocada de lado, como fazem os "evangélicos" (?) com relação a Maria, a mãe de Jesus de Nazaré?
      É verdade, no meu entender e no entender de todos os católicos de bom senso, que uma verdadeira mariologia só é possível em conexão com o mistério de Cristo, isto é, sempre em função da cristologia. Essa perspectiva é tão fundamental, que qualquer consideração em torno da mãe de Cristo, que não leve em conta o Filho, falseia nossa visão da redenção e traz prejuízos aos fundamentos do dogma católico essencial, a saber: que Deus nos salvou, em Cristo.
      O amor católico adorna Maria de uma infinidade de títulos. É Nossa Senhora de todos os nomes. Nossa experiência, contudo, prova que um amor não esclarecido exagera facilmente em sua prática, e nem sempre exprime dignamente as verdadeiras grandezas de que ela é portadora.
      A Teologia, sóbria como toda ciência e como órgão vivo da fé eclesial, é a instância crítica da pregação contemporânea, e é também a mensageira da pregação do amanhã. Cabe a ela explicar o quanto for possível o impenetrável mistério da realidade salvífica mariana, explorar a riqueza do conteúdo e eliminar os elementos inautênticos.
      Os grandes teólogos da Idade Média, que foram grandes apaixonados por Maria, não tiveram medo de aplicar o espírito crítico. Eles nos acautelaram contra os louvores excessivos de que Maria não tem necessidade, devido à riqueza de seu verdadeiro título de glória, que é ter sido a mãe de Jesus de Nazaré.
      Neste sentido, a autêntica fé católica mantém-se distanciada de dois perigos: o do exagero intempestivo, pseudo-teológico ou sentimental, e o do racionalismo diante do mistério mariano, que fez Maria predestinada desde a eternidade pelos desígnios da Divina Providência a ser a mãe terrena do Deus Encarnado.
      Com a encarnação do Verbo Divino, a virgem Maria foi neste mundo a sublime mãe do Redentor, singularmente mais que os outros seguidores de Cristo, a generosa e humilde serva do Senhor, e tanto, que todas as gerações a chamarão "bem-aventurada".
      Ela concebeu, gerou, nutriu a seu Filho Jesus, fugiu com Ele para o Egito, resguardando-O da ira de Herodes,  compadeceu-se aos pés da cruz com Ele, como nos dizem os textos evangélicos.
      Assim, de modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, cooperou na obra do Redentor, para a restauração da vida sobrenatural dos cristãos.
      Por tal motivo, é que ela se tornou para nós, católicos, uma verdadeira mãe na ordem da Graça. E é por isso também, que ela é estimada e venerada pelos católicos do mundo inteiro. 

sábado, 26 de maio de 2012

O CORPO É A PESSOA?



      "È raro o médico que se dá conta da violência que, sem fazer parte do tratamento, é rotineiramente cometida contra os pacientes."               
       (Carlos Ramalhete, Gazeta do Povo, 24-05-2012)

     
     Na visão  do filósofo francês Renée Descartes (1596-1649) o homem é uma mente que habita um corpo. É a célebre tese do "fantasma na máquina". É esta a filosofia da Medicina moderna, que se atém ao cuidado do corpo, percebido como uma máquina, sem se dar conta de que o corpo é apenas uma parte de algo muito maior: a pessoa.
      Devido a esta visão, e repetindo a epígrafe acima,  "é raro o médico que se dá conta da violência que, sem fazer parte do tratamento, é rotineiramente cometida contra os pacientes." Isolados numa cama de hospital, longe de casa, com as visitas das pessoas queridas restritas a algumas horas, virados e revirados como postas de carne por enfermeiros, comendo gelatina molenga e comida sem gosto. Transformados, enfim, em anexos dos importantíssimos resultados de exames, os pacientes ficam esquecidos de todos, até mesmo dos médicos, enquanto não se medem esforços para tratar da máquina que seu corpo seria.
      A depressão que naturalmente os invade, devido a tantas violações, quando percebida é considerada  um desequilíbrio bioquímico sem que se lide com sua causa real.
      Surge, aqui e ali, alguém que tenta fazer uma diferença, grupos que procuram levar pela música ou pelo teatro alguma alegria de viver aos lugares mais desprovidos dela: os hospitais, onde teoricamente a vida seria defendida contra a morte.
      Mas que vida é essa? O funcionamento da "máquina"? Ora, a vida do corpo é uma expressão e uma condição da vida do espírito, da vida verdadeira, de dores e alegrias, de bons e maus momentos. Desta vida que é suspensa quando se cruzam as portas do hospital, e se é transformado em anexo da papelada, em posta de carne a ser cutucada, pesada e medida, sendo deixada de lado a pessoa que ali está.
      Isto se deve ao cartesianismo da Medicina moderna, que a impede de perceber o paciente como ser humano integral. Os médicos, contudo, e mais ainda os enfermeiros, podem procurar manter em mente este problema e fazer menos dolorosos os dias longuíssimos que os pacientes passam nos hospitais.
      É preciso um policiamento constante de si mesmo,  uma abertura constante para o outro, para que se possa tornar menos iatrogênica a própria internação. Um sorriso, um tratamento digno, chamar o paciente idoso de "senhor" ou "senhora", respeitando seus pudores e sua delicadeza, vê-lo como pai ou mãe, irmão ou filho, como ser humano infelizmente afastado do lar.
      É preciso procurar diminuir, ainda que um pouco, essa infeliz dissociação do corpo e da pessoa.
      Só assim se pode realmente curar.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O "deus" que não é Deus




      Lançar Deus para fora do próprio coração, como faz o ateu, por sentir-se incompatível com Ele,  creio que é uma decisão dura que não se toma sem consequências: a mesma coisa que ocorre quando alguém decide que não cabem sob o mesmo teto ele e a pessoa com quem convive. Chegar à conclusão de que a vida sem Deus é mais plena e rica, segundo prega pelo mundo o ateu Richard Dawkins, deixa cicatrizes que colocam sombras na alegria da pretensa liberdade conquistada.
      Na verdade o ateu e o crente vivem na mesma realidade e se confrontam no dia a dia com os mesmos problemas radicais. Diferem unicamente na resposta que lhes dão: crentes e ateus preocupam-se igualmente com a morte e o que poderá haver depois dela - para os crentes, a promessa da vida eterna; para os ateus, simplesmente o nada.
      Muitas vezes aquele deus expulso do coração por motivos variados não é na verdade Deus, mas sim um fantasma engendrado pelas nossas limitações humanas: um ser cruel, capaz de castigar eternamente, com infinito rancor. Um ser arbitrário e caprichoso, disposto a ajudar a uns e não a outros, castigador de pessoas que deixaram de cumprir alguns ritos meramente formais, como a missa dominical ou a abstinência e o jejum em alguns dias da quaresma. Este "deus" definitivamente não existe.
      Quando se ouve um padre ou um pastor deblaterar do púlpito que Deus  "castiga" o pecador com o "fogo eterno" do inferno, é impossível aceitar essa idéia de um "deus" que está determinado pelas idéias de vingança, de direito de senhor e dever de servo, de remuneração pelo serviço prestado, ou de penalidade pelo omitido... Ou quando se faz um pedido a Deus e não se é atendido, está implícito que Deus deveria preocupar-se conosco e não se preocupa; poderia conceder, e não concede; não "escuta", não "tem piedade", contra o que cada domingo pedem incansáveis milhões de vozes em nossos templos e igrejas, ao redor de todo o mundo.
      Um dos motivos que me parecem levar muitos a renegarem a Deus creio que é fruto de uma leitura convencional da Bíblia - ou simplesmente uma não leitura! - que mostra um "deus" conforme aparece em vários textos bíblicos, em que se apresentam concepções extraviadas, de corte mágico ou caprichoso, um "deus" que destrói a humanidade com o dilúvio, um "deus" que afoga no mar o faraó e seu exército, um "deus" que envia a peste, a enfermidade e o castigo; o "deus" de enigmas inexplicáveis que abandona o justo a uma sorte miserável, como fez com Jó.
      (Na verdade Deus não faz nada disso. Para o povo hebreu. na sua religiosidade primitiva e elementar, que tudo atribuía à ação de Deus, desde as leis que regulamentavam a vida da comunidade, até a vitória nas guerras, a derrota dos inimigos, os fenômenos meteorológicos, as doenças, os desastres físicos e naturais, tudo era atribuído a uma ação direta e pontual de Deus, em todos os variados aspectos da vida do povo).
      É claro que, lidos ao pé da letra, estes episódios revelam-se simplesmente intoleráveis hoje, e os crentes têm a obrigação de ser muito mais cuidadosos na interpretação desse tipo de textos. Como hoje em dia não se pode mais apoiar-se neles, como ainda fazia Lutero, fautor do protestantismo, ao falar da "ira de Deus"; uma ira que precisou "ser satisfeita" por Jesus de Nazaré, que a sofreu na cruz, "pagando" assim a Deus por nossos pecados. Verdadeiro absurdo.
      Ao ler-se a Bíblia com outros olhos e na sua totalidade, podemos entender que ela não foi escrita por um só autor, mas por muitos; não a um só tempo, mas por muitos e muitos anos, mesmo séculos, refletindo a dolorosa busca de um povo pela face verdadeira e autêntica de seu Deus. E nessa caminhada, existem altos e baixos, avanços e retrocessos, na formação da tradição. Existem inclusive correções e contradições entre uns trechos e outros, chegando às vezes a ocorrer no interior de um mesmo livro e inclusive de um mesmo autor.
      O mundo da Bíblia, no assim chamado Antigo Testamento, está impregnado do mundo simbólico de seu ambiente cultural, como também da nefasta influência dos povos vizinhos, como o cananeu. A grande maravilha deste mundo não consistiu em encontrar-se desde o começo com uma imagem de Deus já feita, completa, caída diretamente do céu pura e sem mancha, mas justamente na dura conquista de uma imagem que desde os tempos de Moisés, passando pelos profetas, encontra sua culminância em Jesus de Nazaré. Por isso, nessa longa caminhada do povo hebreu na busca de seu Deus, o caminho esteve quase sempre cheio de fantasmas e até de monstruosidades, como o "herém", o mandamento expresso por parte de Javé, para o extermínio de povos inimigos inteiros, sem reparar nos velhos, enfermos, mulheres e crianças.
      O assombroso é que, através desta selva de ameaças, repressões, cóleras, violências, castigos e mortandades, mesmo assim pôde abrir-se passagem para a revelação do rosto verdadeiro de Deus: Seu perdão incondicional, Seu amor salvador, Sua ajuda sem descanso, Sua entrega sem limites. Leia-se o livro dos Juízes, sem preconceitos, e ver-se-á claramente este rosto benfazejo de Deus, para com o Seu povo escolhido.
      Um olhar lúcido e realista para a Bíblia em seu todo, Antigo e Novo Testamento, longe de estranhar, maravilha-se com a autenticidade do povo bíblico, desde as suas origens, na sua busca incansável de Deus.
      A experiência inaugural do livro do Êxodo, sob o comando de Moisés, já nos mostra um Deus que salva e liberta, estabelecendo uma "aliança"; ou seja, um Deus que se preocupa com o bem de homens e mulheres, os quais, por sua vez, se vêem solicitados a observar uma conduta reta e honesta.
As recaídas "mágicas" que tentam manipular o favor divino com sacrifícios e holocaustos, ou as imagens de um deus arbitrário, terrível e vingativo, são continuamente corrigidas pela consciência que se vai aprofundando sobre a face real desse Deus ético e salvador da Aliança com Moisés e seu povo.
      Neste sentido, convém ler os profetas, principalmente Isaías, Jeremis, Oséias e Amós, pois eles ajudam a manter viva e operante essa vivência da Aliança, tirando as consequências e nelas se aprofundando através de um processo de fidelidade tão admirável, que de certo modo constitui caso único na história das religiões.
      Simplificando: Amós sublinha a justiça de Deus, que protege os fracos e oprimidos; Oséias destaca o Seu amor; Isaías proclama Sua santidade; Jeremias completa o quadro assinalando Sua preocupação para com todo o ser humano. A piedade dos salmos mostra, por sua vez, como essas idéias penetram pouco a pouco na espiritualidade coletiva, inclusive através de crises tão terríveis como as da destruição do templo e do país, e do longo exílio na Babilônia.
      Chegada a plenitude dos tempos, com Jesus de Nazaré, a face autêntica de Deus se revela em toda a sua culminância. A bondade de Deus, tão universal que não exclui ninguém, "faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus, e cair a chuva sobre justos e injustos." Por isso, perdoa sempre e sem condições, até a ponto de, como o pai da parábola do filho pródigo, não castigar nem repreender, mas alegrar-se e fazer festa. Ou perdoando a pecadora, gratuitamente, não lhe impondo nenhuma condição.
      Jesus de Nazaré, com sua vida, suas atitudes, sua mensagem de libertação, que culminaram na sua paixão e morte, deixou-nos a lição de sua peculiaríssima relação filial que mantinha com Deus, e que o fazia chamá-Lo de Abbá = papai, paizinho.
      Assim, numa leitura consciente da Bíblia em seu conjunto, reconhecemos dentro de nossa tradição milenar a captação humana do que Deus, desde sempre, quer ser para nós: Pai entregue em Seu amor tão infinito como Seu próprio Ser e que unicamente espera de nós que, compreendendo-O, ousemos responder-Lhe com a máxima confiança de que nosso coração for capaz.
      É nesta perspectiva que somos convidados a ler a Bíblia, com outros olhos e outra mentalidade, principalmente o Evangelho de João, quando então poderemos compreender que o Deus da "ira", segundo Lutero, é o Deus que é Amor, nas palavras e na vivência de Jesus de Nazaré.

domingo, 20 de maio de 2012

É VERDADE QUE JESUS "SUBIU" AO CÉU?



       Neste domingo, a comunidade católica de todo o mundo comemora a ascensão, ou a "subida" de Jesus de Nazaré, ressuscitado, ao céu. Façamos, portanto, algumas reflexões sobre o tema.
      Dom Moacyr José Vitti, arcebispo metropolitano de Curitiba, afirma na sua coluna dominical na Gazeta do Povo que há no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, um pequeno santuário octogonal construído pelos cruzados e transformado em mesquita pelos muçulmanos em 1200 d.C. Nos dias de hoje ele tem um telhado, mas quando foi construído estava descoberto, para lembrar a ascensão de Jesus ao céu.
      À primeira vista, a narrativa da ascensão pelos evangelistas se desenrola com fluidez e espontaneidade, mas, considerando todos os detalhes,  experimentamos certa perplexidade; parece pouco plausível que Jesus se tenha comportado como um astronauta que, em se afastando da Terra, se eleva em direção ao céu e desaparece entre as nuvens.
      Na parte final do seu Evangelho, Lucas afirma que o Ressuscitado levou seus discípulos para Betânia, e "enquanto os abençoava, separou-se deles e foi arrebatado ao céu; depois de O terem adorado, voltaram para Jerusalém, com grande júbilo."
      Afirmar que Jesus subiu ao céu é exatamente a mesma coisa que afirmar que Ele "ressuscitou", que foi glorificado, que entrou na glória de Deus. O seu corpo, é verdade, foi colocado no sepulcro, o apóstolo Paulo chama de "corpo espiritual".
      Não houve nenhum deslocamento no espaço, nenhum rapto do Monte das Oliveiras rumo ao céu, 40 dias após a Páscoa. A Ressurreição e a  Ascensão aconteceram, sim, mas no mesmo instante da sua morte, embora os discípulos tenham começado a entender e a acreditar somente a partir do "terceiro dia".
      A narrativa de Lucas é uma página de teologia, não uma afirmativa sobre fatos, extraída de um jornal. Nessa página nos é ensinado que Cristo, por primeiro, atravessou o "véu do templo" que separava o mundo dos homens do mundo de Deus, e mostrou que tudo o que aconteceu aqui na terra, sucessos ou fracassos, injustiças, sofrimentos, e até mesmo os fatos mais absurdos, como uma morte ignominiosa, não estão excluídos do propósito de Deus. Se a Ascensão de Jesus é tudo isso, não devemos causar espanto que os Apóstolos tenham saudado com "grande júbilo."
      Não devemos entender em sentido material a indicação que o Ressuscitado "está sentado à direita de Deus." Deus, puro espírito, não tem direita nem esquerda, e não é possível pensar que no céu a gente se cansa de ficar de pé. Trata-se de afirmações teológicas transmitidas através de uma imagem que relembra os costumes das cortes dos soberanos da Antiguidade.
      Quando os reis do Oriente queriam homenagear um súdito que tinha demonstrado uma fidelidade heróica, convocavam os notáveis do reino e diante de todos o convidavam a sentar-se à sua direita. Usando desta imagem, o evangelista quer nos dizer: Jesus de Nazaré, o derrotado segundo a lógica dos homens, é proclamado por Deus "Servo fiel", o Rei do Universo. 

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A PRECE QUE NOS FAZ IRMÃOS


      Desde meus tempos de faculdade de teologia, já perdidos nas brumas quase impenetráveis do passado, foi-me ensinado que a prece nunca será uma palavra que divide, mas é o vínculo de união que nos une mais fortemente a Deus e aos irmãos de caminhada neste mundo.
      Infelizmente, há muitas pessoas que não creem na prece, nela não se apoiam, e existe ainda quem a considere um capítulo superado.
      Mas, em contrapartida, existem muitíssimos irmãos nossos que amam a prece, no sentido de manifestarem a Deus, e a si próprios, seus desejos mais íntimos e mais profundos.
      Que prece poderá fazer em comum nós que nos irmanamos na Fé em Cristo, para além das divisões e incompreensões que, aparentemente, nos separam e distanciam uns dos outros?
      É bom que nossos olhos se abram e comecemos pela urgência de superar o próprio egoísmo, sair de nós mesmos e nos dedicarmos de vez, à custa de quaisquer sacrifícios, à luta não violenta     por um mundo mais justo e mais humano.
      Que não deixemos para amanhã: comecemos hoje, agora, sem arrebatamentos passageiros; com decisão, firmeza e pertinácia!
      Que olhemos em volta para descobrir irmãos e irmãs, marcados pela mesma vocação de dizer adeus ao comodismo e de marcar encontro com todos os que têm fome da verdade e juraram dedicar a vida tentando abrir, através da prece, da justiça e do amor, caminhos para a paz!
      Que não percamos tempo em discutir lideranças; o importante para nós seja unir-nos e caminhar, firmes, para o nosso objetivo, lembrados de que o tempo, inexorável, corre contra nós.
      Que demos o melhor de nós mesmos à dupla missão, através da qual, esperamos, a pressão moral que possamos fazer sobre aqueles que se proclamam nossos representantes em todas as esferas do poder público, se tornará capaz de atingir as indispensáveis mudanças sociais e políticas de que nosso Brasil necessita com urgência.
      Que sejamos capazes do máximo de firmeza, sem cair no divisionismo, na intolerância e no particularismo egoísta, de conseguir atingir nossos objetivos mais nobres, no âmbito da convivência fraterna com nossos irmãos, sem cair na conivência com o mal.
      Lembremo-nos sempre que a Lei consiste em amar a Deus e amar o próximo. Ora, quem ama o próximo já cumpriu metade da Lei.
      Quem ama de verdade e profundamente o próximo, mesmo sem saber e até sem querer, já ama a Deus, nosso Criador e nosso Pai.
      Neste intuito, façamos nossa a prece de Francisco de Assis, e que ela  seja o ideal de nossa vida de cristãos conscientes em todos os nossos atos do dia a dia:

       Senhor, fazei de nós um instrumento de vossa paz!
       Para onde há ódio, que nós levemos o amor;
       Para onde há ofensa, que nós levemos o perdão;
       Para onde há discórdia, que nós levemos a união;
      Para onde há erro, que nós levemos a verdade;
      Para onde há dúvida, que nós levemos a Fé;
      Para onde há desespero, que nós levemos a esperança;
      Para onde há trevas, que nós levemos a luz;
      Para onde há tristeza, que nós levemos a alegria.
      Ó Mestre, possamos nós consolar, a sermos consolados;
      Compreender, a sermos compreendidos;
      Amar, a sermos amados
      Porque
      É dando que se recebe;
      É no auto-esquecimento, que se pode encontrar;
      É perdoando, que se é perdoado;
      É morrendo, que se ressuscita para a vida eterna!
   
     

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O SONHO DE BARTH

      Lendo a biografia de Karl Barth, líder da teologia e da exegese protestante, descobri que ele certa noite sonhou com Mozart. Achei um tanto quanto estranho, porque Barth sempre se sentiu melindrado pelo catolicismo de Mozart, e pelo fato dele rejeitar publicamente o protestantismo. Aliás, foi Mozart que disse: " O protestantismo está todo, e tão só, na cabeça." E ainda: "Os protestantes não conhecem o sentido do Agnus Dei qui tollis peccata mundi, e apesar de seu biblicismo e da sua bibliolatria, se esquecem de que estas palavras também estão na Bíblia, e são elas de igual modo palavra de Deus: - Todas as gerações, de agora em diante, me chamarão de bem-aventurada."
       No sonho, Barth foi indicado para examinar Mozart em conhecimentos teológicos. Desejava tornar o trabalho de examinador tão favorável quanto possível. Assim, em suas perguntas, fazia questão de aludir expressamente às "Missas" do compositor. Mozart, porém, no sonho, não respondia nada ao interrogador.
      Este trecho de sua biografia me deixou comovido pela sinceridade de Barth. O sonho tem a ver com sua salvação e Barth está se esforçando por admitir que ele será salvo mais pelo Mozart que está nele, do que por sua própria teologia.
      Cada dia, durante anos Barth, também ótimo musicista, tocava Mozart todas as manhã, antes de iniciar seus trabalhos teológicos. Creio que ele procurava, talvez inconscientemente, despertar o Mozart nele oculto, a sabedoria interna que se harmoniza com a música divina e é salva pelo amor. Enquanto o outro ser, o seu ser teológico, que deveria se preocupar mais com o amor vivo e atuante, na realidade abraçava um amor muito mais severo, mais cerebral e abstrato. Um amor que, afinal, não está em seu próprio coração, mas somente em Deus, e é revelado apenas à nossa cabeça, não ao nosso coração.
      Como disse linhas acima, a sinceridade de Barth, na sua biografia, é muito comovente, e deve ser compreendida e respeitada.
      Barth diz também, com muito sentido, que é "uma criança, mesmo uma criança divina, que nos fala na música de Mozart."
      Algumas pessoas, declara ele, sempre consideraram Mozart uma criança em relação às coisas práticas da vida. Ao mesmo tempo, afirma que ao menino-prodígio Mozart nunca foi permitido ser criança no sentido literal da palavra. Tinha apenas seis anos quando deu seu primeiro concerto público .Contudo, foi sempre uma criança "no sentido mais elevado do termo."
      Encerro meu texto dizendo a Karl Barth que, tenho certeza, ele está na Casa do Pai:  Nada temas, Karl Barth! Sempre confiaste na misericórdia divina. Sei bem que cresceste e te tornaste um teólogo de credibilidade mundial, e Cristo permanece em ti uma criança. Teus livros e tua teologia valem muito mais do que poderías pensar! Lembra-te que em todos nós há um Mozart divino que será a tua e a nossa salvação.
     
     

terça-feira, 15 de maio de 2012

REFLEXÕES À BEIRA DO FOGO


        "Venha a nós o Vosso reino", rezamos diariamente no "Pai Nosso". Esta vinda a nós do Reino de Deus é o que denominamos Parusia, a segunda vinda de Jesus de Nazaré até nós. Entretanto, a  Parusia permanece como o grande problema do Cristianismo. Em si, evidentemente, não se trata de um problema real, porque o Reino de Deus já está estabelecido, não, porém, definitivamente manifestado. Continua  ainda  num tempo de desenvolvimento, de opção livre e de preparação.
      Permanecemos todos num tempo de decisão. O cristão é alguém que "se decidiu" pela Parusia. Pela vinda, no fim dos tempos, do Reino de Deus. Toda a vida do cristão é orientada por esta decisão fundamental. Sua existência tem sentido na medida em que a segunda vinda de Cristo é, para ele, de importância absoluta na vivência de todo dia.
      No entanto, a Parusia, esta segunda vinda de Jesus de Nazaré, nos parece, acha-se indefinidamente adiada, pelas próprias palavras dos Evangelhos.
      Também isto não é um acaso. Deve ser aceito como fazendo parte do problema. Considerada em si mesma, a Parusia não é problema. A demora da Parusia não é todo o problema. Essa demora é que faz surgir o problema. Penso que uma possível solução para tal problema seria o seguinte:
      Como cristãos, somos homens e mulheres que colocam todas as suas esperanças pela vitória final quando da segunda vinda de Cristo - e esta vitória seria a vitória final e definitiva da vida sobre a morte.
      Tendo a Parusia sido "adiada", foi-nos deixada, nestes mais de dois mil anos, a tarefa de construir para nós e nossos filhos, neste mundo, uma espécie de reino, uma cristandade cultural, política  e religiosa que, temos de admitir, não é tudo o que se esperava, mas que tem lá suas vantagens.
      Ora, a questão insidiosa é esta: se a vinda de Cristo significa o fim e a destruição dessa estrutura provisória por nós criada, e principalmente o seu julgamento por Cristo, devemos sinceramente desejar a Parusia? Não deveríamos então, seguramente, rezar para que a Parusia seja adiada indefinidamente?
      Se, com todo o poder que nos foi dado  de mover a vontade de Deus pela nossa oração, não deveríamos nós, antes, tentar mudar os planos de Deus, e não nos preocuparmos mais com o problema de sua vinda até nós, para o julgamento final?
      Não deveríamos considerar nosso dever pedir a Deus que Ele nos permita construir o Reino a nosso modo, um Reino consistente com o que já iniciamos neste mundo?  Um Reino de Deus ao mesmo tempo sagrado mas encravado no mundo, e ao mesmo tempo colaborando também no terreno social e político com o mundo? 
      Não deveríamos insistir em que a Parusia fosse considerada como nosso triunfo social, cultural, religioso e político no mundo e, assim, não mais sermos um obstáculo, pois já conseguimos estender nosso domínio sobre o mundo inteiro?
      O certo é que já tentamos isto uma vez, diz-nos a História. Foi no século VIII e atravessou toda a Idade Média. Foi uma boa tentativa de nossos antepassados, mas alguns pontos importantes foram descuidados, e a tarefa fracassou. Não seria possível  assumirmos um compromisso que nos permitisse uma nova tentativa, para sermos desta vez mais bem sucedidos?
      Assim pensando, estaríamos na realidade decidindo-nos contra a segunda vinda de Cristo, contra a Parusia. Continuaríamos a rezar: "Venha a nós o Vosso Reino." - não, porém, agora. E nem na maneira desoladora de um julgamento. Se ele tiver que vir, que venha, mas da maneira que nos convier.
      Com isso, nós cristãos aprendemos a orar contra a vinda do juízo final, e por uma eternidade que seria um prolongamento indefinido do tempo. Pois nós precisamos de tempo. De muito tempo. Tempo para tentarmos construir o que até agora julgamos incompleto, e precisamos de tempo para completá-lo.
      Minha sugestão para uma correção no "Pai Nosso", a oração que Jesus nos ensinou: em lugar de: "Venha a nós o Vosso Reino", eliminemos essa frase e a substituímos por esta outra, mais conveniente às nossas necessidades: "Dai-nos tempo, Senhor!"...
     E então, que faríamos com esse "tempo" que nos seria dado? Faríamos deduções na História negativa do passado? Inventaríamos um novo sistema cristão, - e dessa vez o faríamos funcionar? Ou antes, observaríamos  cuidadosamente os sistemas inventados por outros, e batizaremos seus sistemas, tornando-os repentinamente cristãos, e neles descobrindo o inesperado Reino?
      Deixo aqui a minha sugestão, na forma de tais questionamentos...
     

domingo, 13 de maio de 2012

DIA DAS MÃES:- o cântico do filho


Mãe
deixa que neste teu dia eu cante um hino para ti
deixa que minha alma se engolfe nas vagas de teu amor por mim
e se expanda veementemente
em cadadupas de gratidão

meu cântico será breve
tão mais breve quanto os meus raros instantes de felicidade
mas nele as catedrais de todo o meu ser em festa
carrilhonarão o glória in excelsis de teu louvor

vê minha Mãe
sou uma folha arrastada pelo vento impetuoso do inverno
mas teus braços se estendem para mim
como as sombras das árvores seculares
sou um peregrino pelos desertos sem oásis
um viandante açoitado continuamente pelo frio das madrugadas
mas teu nome é um raio de luz em meio às trevas

eu era como uma criança deixada no escuro do quarto
era como lázaro em todos os festins da vida
e meus dedos encarquilhados tateavam as sombras
em busca de míseras migalhas esperdiçadas
meus amigos desprezavam-me como a um louco
filho pródigo perdi os caminhos do retorno
e meus próprios irmãos envergonhavam-se de mim

tu porém velhinha de cabelos brancos
deixaste as contas gastas de teu rosário
e saíste à minha procura pelo mundo
tu me encontraste bem longe pobre e faminto
como as plantas selváticas que brotam sem raízes no rochedos
deixei então as babilônias da vida
e voltei redimido para os teus braços
deixei para trás em meio à escuridão da noite
as milhares de quimeras que andei sendo
nos desertos sem oásis donde me arrancaste

por tudo isso minha Mãe deixa que eu te louve
és como uma campina imensa na primavera
teu amor é sem limites como os vagalhões do mar
que nunca visitam praias

estar junto de ti ouvindo o pulsar de teu coração
é como ouvir as notas agrestes de uma agreste flauta
que bem longe soam nas mãos firmes do pastor
enchendo-nos o peito
com um não sei quê de indizível em linguajar humano

tuas palavras maternais de encorajamento e de perdão
banham minha alma
como o orvalho suspirado pelos campos ressequidos
teus conselhos são para mim mais cheios de sabedoria
que as mais sublimes exortações dos mestres

ouve por fim minha Mãe
se um dia ruírem as paredes ante o fragor das guerras
se se partirem os diques da caridade
sob a avalanche infrene das paixões revoltas
e o ódio se espalhar pela terra
tudo afogando num dantesco mar de chamas

se um dia os céus enegrecidos ribombarem
desfeitos em mil estilhas
com os tentáculos de aço dos canhões a vomitarem morte
se os monstros apocalípticos dos robôs teleguiados
silvarem pelo ar anunciando o armagedon
e os homens se encolherem transidos de terror
como se pendesse sobre eles a espada flamejante do arcanjo vingador

então minha Mãe eu nesse dia de lágrimas
deitarei minha fronte febril em teu regaço
bem longe dos gritos ululantes das multidões crispadas

então eu morrerei tranquilo sobre os teus joelhos
e tu me cantarás tua última cantiga de ninar





sexta-feira, 11 de maio de 2012

UM SONHO MUITO ESTRANHO



      Noite passada tive um sonho muito estranho, que até agora não fui capaz de entender. A verdade é que ultimamente me acho cercado por uma aura de melancolia, de uma espécie de tristeza dolorida, e talvez esteja aí a causa do sonho.
      Sonhei que fui convidado para uma festa. Nela, toda gente está vestida com roupas novas, muito bonitas.  Andam nas margens de um grande lago, ao lado de um pequeno vilarejo composto por velhas casas de madeira. Os vestidos claros, alegres, das meninas, moças e mulheres mais velhas fazem contraste com a madeira escura das casas. Sou convidado para ir com eles à festa. Mas, de repente, somem todos, e a festa será muito mais longe dali. Tenho de ir até lá de canoa, coisa que me dá um certo arrepio. Estou sozinho. A canoa  está amarrada a uma estaca, na margem do lago.
      Um homem do vilarejo diz que por dez reais poderei atravessar o lago de barco. Tenho nos bolsos muito mais do que dez reais, quase uma centena deles. O homem leva-me até a canoa, que não é uma canoa, mas um barco de pesca, coisa que prefiro. No entanto o barco não se move da praia. É muito pesado. Tentamos empurrá-lo; mas ele permanece imóvel. Tentamos, de diversos modos, fazê-lo mover-se, e parece ter-se movido um pouco. Mas eis que de repente sinto dever atirar-me à água e nadar.
      Agora estou nadando para frente na linda água mágica do lago. Das claras profundezas da água sobe uma vida maravilhosa à qual tenho direito; uma vida e um poder que, ao mesmo tempo, amo e temo. Sei que, mergulhando nestas águas, encontrarei maravilhas e alegrias, mas sei também que não devo mergulhar. O que devo fazer é nadar para o outro lado, e de fato estou nadando para o outro lado. O outro lado do lago  ali está, bem perto. Está no fim esta minha natação. 
      A casa está perto das margens do lago. Ampla casa de verão, da qual me aproximo com a força que me vem da água. Sinto que a água é grande e vasta debaixo de meu corpo, à medida que me aproximo da margem. E cheguei. Estou fora da água. Sei agora tudo o que devo fazer na casa de verão. Sei que devo primeiro brincar com este cão que vem correndo, saindo de uma das salas.
      Sei que a Criança virá, e ela vem. A Criança vem e sorri para mim. Tem o semblante e o sorriso de minha filha Raquel, falecida há um ano e meio.  Ela sorri de novo e me dá, com simplicidade, duas fatias de pão com manteiga, a refeição ritual e hierárquica de todos os que vêm à casa para ficar.
      Então o sonho se foi e, por mais que me esforçasse, não consegui entender o seu significado.  

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A PARÁBOLA DO MACACO

      Folheando um caderno antigo, de anotações, encontrei nele recortes de jornais onde se dizia que   os americanos conseguiram colocar um macaco no espaço. E eu fiquei matutando, com os meus botões: qual a finalidade de um macaco no espaço? O que o pobre animal iria fazer nas alturas a que o enviaram? Será que  conseguiram trazê-lo de volta são e salvo?
      Diziam ainda os recortes que o macaco voou ( ? )  pelo espaço a uma velocidade fabulosa, apertando botões, puxando alavancas, comendo  pílulas com sabor de banana. E ainda mais: o bicho enviava sinais com regularidade impecável,  tal como fora ensinado pelos treinadores.
      Certamente o macaco não se queixou do espaço, lá em cima. Não se queixou nem da terra nem do céu. Com toda certeza, também, não foi importunado por nenhum problema metafísico, nem se sentiu culpado, para ter sido castigado com essa viagem tão inesperada. Pelo menos os jornais nada noticiaram se ele sentiu ou não sentiu alguma culpa.
      E eu ainda me perguntava a mim mesmo: por que haveria um macaco no espaço de sentir-se culpado por alguma coisa? O espaço, me disseram na escola, é o lugar onde não há nem peso nem culpabilidade. E, aliás, um macaco nunca se sente culpado mesmo quando está na Terra. E eu me questiono, com ou sem razão: quem dera que nós, humanos, não tivéssemos também nenhum sentimento de culpabilidade!
      Talvez, se pudéssemos todos, homens e mulheres, subir ao espaço, não nos sentiremos mais culpados de nada. Só faríamos como o macaco: puxaríamos alavancas, apertaríamos uma fileira de botões, comeríamos pílulas com sabor de banana. Ora bolas... me perdoe o eventual leitor: ainda não somos exatamente macacos!
      Aliás, não nos sentiremos culpados no espaço. Se um dia chegarmos à Lua, lá também não nos sentiremos culpados. Talvez nos sintamos um pouco culpados em Marte, lembrando-nos que entre os antigos ele era o senhor da guerra, coisa que nós humanos gostamos de fazer de vez em quando.
      Da Lua ou de Marte, seríamos capazes, talvez, de explodir o mundo, e por isso nos sentiríamos um tanto culpados. Se fizermos a explosão quando estivermos em Marte, estaríamos em terreno conhecido, e por isso não teremos nenhuim sentimento de culpa. Nenhuma culpa. Faríamos explodir o mundo sem culpa nenhuma. Tra-lá-lá-lá. Apertar botões, puxar alavancas! Logo que tivermos em Marte uma fábrica para macacos cor de banana, não haverá mais para nós nenhuma culpa.
      Pois é, tudo isto aconteceu no dia em que fiz quarenta e seis anos. Vamos ser pessoas perfeitamente sérias. A Civilização Moderna se dignou agraciar meu quadragésimo sexto ano com este feito maravilhoso - colocar um macaco no espaço - e eu ficaria magoado com isso? Deixe-me aprender alguma coisa a mais com esse macaco. Ele apertou botões. Puxou alavancas. Foi atirado demasiadamente longe.
      Não faz mal. Ele sentiu-se animalescamente feliz. Pois foi pescado são e salvo no Oceano Atlântico. E em agradecimento apertou as mãos do pessoal da Marinha Americana que o salvou!...
       

terça-feira, 8 de maio de 2012

A FÉ E AS BOAS OBRAS


      Esta é uma das grandes intuições do protestantismo que encontrei lendo Karl Barth, famoso teólogo da Igreja Reformada: - "Todos os que têm de lutar com a incredulidade deveriam ser aconselhados a não levar demasiadamente a sério sua própria incredulidade. Somente a Fé deve ser levada a sério. E se nossa Fé é do tamanho de um grão de mostarda, isso basta, pois o diabo já perdeu o jogo."
      Apesar de não ser teólogo de profissão, mas apenas por formação, desconfio de que, do ponto de vista estritamente católico, pode-se encontrar um erro nessa frase de Barth. Mas por quê? Dizer "só a Fé deve ser levada a sério" pode ser compreendido à luz daquela humildade cristã - e católica - que coloca toda a sua confiança em Deus. Nossas "boas obras", como católicos, são necessárias; não devem, porém, "ser levadas muito a sério." 
      A doutrina católica da justificação nunca disse a ninguém que suas boas obras devessem ser levadas a sério, no sentido de confiar inteiramente em sua própria "justiça".  Levar demasiadamente a sério suas boas obras é agir como um fariseu. Só a Fé deve ser levada a sério, pois somente a misericórdia de Deus é algo de sério.
      Se colocamos demasiada ênfase na seriedade daquilo que fazemos, não só tornamos o juízo de Deus a mais séria realidade em nossa vida, mas nos consideramos, de fato, já julgados. Seremos homens e mulheres julgados que tomamos com seriedade algo que não é a infinita misericórdia de Deus. Aquele ou aquela que leva a sério suas próprias obras não serão preservados, por esta seriedade, de pecar. É uma pseudo-seriedade. E isto só não basta.
      Que dizer então da incredulidade, como linhas acima Karl Barth lembrou?  Penso que se a Fé deve ser levada a sério, creio que a incredulidade também poderia ter algo de sério. Mas não: pois levar a sério a Fé, é a Deus que levamos a sério, não a nós, nem mesmo a nossa Fé. Não levamos a sério a Fé como algo que possuímos definitivamente, mas levamos a sério Deus, que nos faz o dom da Fé e renova esse dom, por sua misericórdia, a todo momento, apesar da nossa incredulidade.
      Esta é, parece-me, afirmo outra vez, uma das intuições centrais do cristianismo protestante, e é algo que nós, católicos, devemos aprender. Lembrando que é algo, também, de que muitas confissões protestantes  se esqueceram. Tornaram-se obcecados com a Fé tal como eles a posssuem. Vigiam-se constantemente para ver se a  Fé ainda está ali. Isto, para mim, significa transformar a Fé numa "boa obra" e, em consequência,  serem eles também justificados pelas obras.
      "Crer é ser livre para confiar nEle somente, e só nEle", - diz Barth - e é ser livre em relação a toda outra forma de dependência e apoio.
      Essa, com efeito, é a verdadeira liberdade, e dela brota a capacidade para toda boa obra, pois remove de nosso coração e de nossa alma todos os obstáculos ao amor a Deus e ao amor de Deus.

sábado, 5 de maio de 2012

AS SEMENTES DA VIDA

      Na vida de qualquer homem e mulher nesta terra, cada instante que vivemos, cada acontecimento de que participamos, toda vivência de cada dia semeia sempre alguma coisa nova em nossa vida. Assim como o vento leva pelos ares incontáveis sementes aladas, visíveis aos nossos olhos, como invisíveis, também o decorrer do tempo traz consigo, tenhamos ou não  conhecimento disso, incontáveis níveis de experiências que vêm pousar indelevelmente em nosso espírito e em nossa vontade.
      Muitíssimas dessas sementes, por incúria e inadvertência nossa, definham e morrem, porque talvez não estivéssemos bastante preparados para recebê-las. Na verdade, tais sementes só podem germinar no fértil e fecundo solo da liberdade e do desejo.
      Se nosso espírito estiver prisioneiro do seu próprio e transitório poder, e se nossa vontade estiver também voltada para a posse de realidades passageiras e volúveis, este solo pedregoso e seco não poderá acolher as sementes de vida que a providência de Deus nos envia.
      Como podemos nós acolher essas sementes de vida se estamos apaixonados pela escravidão do pecado, do egoísmo e do alheamento diante de nossos irmãos que sofrem e pedem o socorro de nossas mãos?
      Deus não consegue semear em nós a Sua santidade, uma vez que estamos prisioneiros de nossos vãos desejos e não queremos deles ser libertados.
      Se procurássemos realmente a Deus, principalmente no acolhimento de todos quantos nos rodeiam, certamente Ele depositaria em nossa alma as sementes de vida que um dia haveriam de germinar em prodigiosa e abundante colheita.
      Não tenhamos dúvida sobre esta verdade porque, segundo o que aprendemos das Sagradas Escrituras, é o amor de Deus que nos aquece ao sol, é o amor de Deus que nos envia a chuva refrigerante e fecundadora.
      Será que temos consciência viva de que é o amor de Deus que nos alimenta com o pão que comemos e com a água benfazeja que nos mata a sede?
      É o amor de Deus que nos manda os dias de inverno, em que tiritamos de frio; mas é também o amor de Deus que no causticante verão nos refrigera com o vento leve que vem das montanhas e com as brisas saudáveis que encontramos nas avenidas e nos parques.
      É o amor de Deus que nos fala no canto dos pássaros e na barulheira inocente das crianças ali na escola defronte de nosso lar.
      Se tais sementes de vida se enraizassem em nossa liberdade, e se a Sua vontade dominasse nossa fugaz independência, nós seríamos dignos de Seu amor, e a nossa colheita viria a ser a Sua glória e a nossa perene alegria.
      Se em todas as coisas apenas reclamássemos do calor e do frio, da saciedade ou da fome, da doença ou do cansaço, do êxito ou dos prejuízos, do bem ou do mal que porventura nos rodeiem, encontraremos apenas o vácuo, e não a felicidade. Porque,  na verdade, o nosso alimento, o sal de nossa vida, é somente a vontade de Deus que nos criou por amor, e criou também todas as coisas, a fim de Se dar a todos nós por intermédio delas.
      Se assim o reconhecêssemos, a nossa principal preocupação não deveria ser procurar vitórias, êxito nos negócios, saúde, vida, dinheiro, - ou lamentar os seus contrários, como o sofrimento, a dor, o insucesso, a doença, a morte inevitável.
      Mas em todas as caminhadas da vida, o nosso único desejo deveria provir da certeza de que tudo que nos acontece é a vontade de Deus que o quis para nós. E recebendo com júbilo  a Sua vontade e vivendo-a no dia a dia com gratidão, acolhemos as Suas sementes de vida em nosso coração e em nossa alma, não porque tais sementes são o que são, mas porque só Deus é verdadeiramente quem é, e o Seu amor, através delas, dará frutos cem por um, na seara de nossa existência. 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

astronauta



foi há muito tempo
- oh se me lembro e quanto -
sentado nas escadas da varanda
eu fazia grandes bolhas com espuma de sabão
que soltava pelo ar


          e a frágil bolha
          bonita transparente como cristal
          se julgando por certo nave espacial
          subia airosamente para o céu
          entre gritos de alegria e de vitória


e lá se ia pelo espaço a fora
levando em sua cápsula as quimeras alucinantes
os castelos encantados
com mil sonhos de ventura
de minha infância descuidosa e feliz


          mas
          como esses sonhos de ventura
          que nunca jamais se realizaram
          e se perderam
          inexoravelmente perdidos
          nos buracos negros sem fundo da existência


assim
as minhas bolhas de sabão
subiam triunfantes embaladas pelo vento
para o espaço sideral
e dentro em pouco
explodiam vergonhosamente
desfeitas em milhares de respingos
que se sumiam no ar