segunda-feira, 21 de maio de 2012

O "deus" que não é Deus




      Lançar Deus para fora do próprio coração, como faz o ateu, por sentir-se incompatível com Ele,  creio que é uma decisão dura que não se toma sem consequências: a mesma coisa que ocorre quando alguém decide que não cabem sob o mesmo teto ele e a pessoa com quem convive. Chegar à conclusão de que a vida sem Deus é mais plena e rica, segundo prega pelo mundo o ateu Richard Dawkins, deixa cicatrizes que colocam sombras na alegria da pretensa liberdade conquistada.
      Na verdade o ateu e o crente vivem na mesma realidade e se confrontam no dia a dia com os mesmos problemas radicais. Diferem unicamente na resposta que lhes dão: crentes e ateus preocupam-se igualmente com a morte e o que poderá haver depois dela - para os crentes, a promessa da vida eterna; para os ateus, simplesmente o nada.
      Muitas vezes aquele deus expulso do coração por motivos variados não é na verdade Deus, mas sim um fantasma engendrado pelas nossas limitações humanas: um ser cruel, capaz de castigar eternamente, com infinito rancor. Um ser arbitrário e caprichoso, disposto a ajudar a uns e não a outros, castigador de pessoas que deixaram de cumprir alguns ritos meramente formais, como a missa dominical ou a abstinência e o jejum em alguns dias da quaresma. Este "deus" definitivamente não existe.
      Quando se ouve um padre ou um pastor deblaterar do púlpito que Deus  "castiga" o pecador com o "fogo eterno" do inferno, é impossível aceitar essa idéia de um "deus" que está determinado pelas idéias de vingança, de direito de senhor e dever de servo, de remuneração pelo serviço prestado, ou de penalidade pelo omitido... Ou quando se faz um pedido a Deus e não se é atendido, está implícito que Deus deveria preocupar-se conosco e não se preocupa; poderia conceder, e não concede; não "escuta", não "tem piedade", contra o que cada domingo pedem incansáveis milhões de vozes em nossos templos e igrejas, ao redor de todo o mundo.
      Um dos motivos que me parecem levar muitos a renegarem a Deus creio que é fruto de uma leitura convencional da Bíblia - ou simplesmente uma não leitura! - que mostra um "deus" conforme aparece em vários textos bíblicos, em que se apresentam concepções extraviadas, de corte mágico ou caprichoso, um "deus" que destrói a humanidade com o dilúvio, um "deus" que afoga no mar o faraó e seu exército, um "deus" que envia a peste, a enfermidade e o castigo; o "deus" de enigmas inexplicáveis que abandona o justo a uma sorte miserável, como fez com Jó.
      (Na verdade Deus não faz nada disso. Para o povo hebreu. na sua religiosidade primitiva e elementar, que tudo atribuía à ação de Deus, desde as leis que regulamentavam a vida da comunidade, até a vitória nas guerras, a derrota dos inimigos, os fenômenos meteorológicos, as doenças, os desastres físicos e naturais, tudo era atribuído a uma ação direta e pontual de Deus, em todos os variados aspectos da vida do povo).
      É claro que, lidos ao pé da letra, estes episódios revelam-se simplesmente intoleráveis hoje, e os crentes têm a obrigação de ser muito mais cuidadosos na interpretação desse tipo de textos. Como hoje em dia não se pode mais apoiar-se neles, como ainda fazia Lutero, fautor do protestantismo, ao falar da "ira de Deus"; uma ira que precisou "ser satisfeita" por Jesus de Nazaré, que a sofreu na cruz, "pagando" assim a Deus por nossos pecados. Verdadeiro absurdo.
      Ao ler-se a Bíblia com outros olhos e na sua totalidade, podemos entender que ela não foi escrita por um só autor, mas por muitos; não a um só tempo, mas por muitos e muitos anos, mesmo séculos, refletindo a dolorosa busca de um povo pela face verdadeira e autêntica de seu Deus. E nessa caminhada, existem altos e baixos, avanços e retrocessos, na formação da tradição. Existem inclusive correções e contradições entre uns trechos e outros, chegando às vezes a ocorrer no interior de um mesmo livro e inclusive de um mesmo autor.
      O mundo da Bíblia, no assim chamado Antigo Testamento, está impregnado do mundo simbólico de seu ambiente cultural, como também da nefasta influência dos povos vizinhos, como o cananeu. A grande maravilha deste mundo não consistiu em encontrar-se desde o começo com uma imagem de Deus já feita, completa, caída diretamente do céu pura e sem mancha, mas justamente na dura conquista de uma imagem que desde os tempos de Moisés, passando pelos profetas, encontra sua culminância em Jesus de Nazaré. Por isso, nessa longa caminhada do povo hebreu na busca de seu Deus, o caminho esteve quase sempre cheio de fantasmas e até de monstruosidades, como o "herém", o mandamento expresso por parte de Javé, para o extermínio de povos inimigos inteiros, sem reparar nos velhos, enfermos, mulheres e crianças.
      O assombroso é que, através desta selva de ameaças, repressões, cóleras, violências, castigos e mortandades, mesmo assim pôde abrir-se passagem para a revelação do rosto verdadeiro de Deus: Seu perdão incondicional, Seu amor salvador, Sua ajuda sem descanso, Sua entrega sem limites. Leia-se o livro dos Juízes, sem preconceitos, e ver-se-á claramente este rosto benfazejo de Deus, para com o Seu povo escolhido.
      Um olhar lúcido e realista para a Bíblia em seu todo, Antigo e Novo Testamento, longe de estranhar, maravilha-se com a autenticidade do povo bíblico, desde as suas origens, na sua busca incansável de Deus.
      A experiência inaugural do livro do Êxodo, sob o comando de Moisés, já nos mostra um Deus que salva e liberta, estabelecendo uma "aliança"; ou seja, um Deus que se preocupa com o bem de homens e mulheres, os quais, por sua vez, se vêem solicitados a observar uma conduta reta e honesta.
As recaídas "mágicas" que tentam manipular o favor divino com sacrifícios e holocaustos, ou as imagens de um deus arbitrário, terrível e vingativo, são continuamente corrigidas pela consciência que se vai aprofundando sobre a face real desse Deus ético e salvador da Aliança com Moisés e seu povo.
      Neste sentido, convém ler os profetas, principalmente Isaías, Jeremis, Oséias e Amós, pois eles ajudam a manter viva e operante essa vivência da Aliança, tirando as consequências e nelas se aprofundando através de um processo de fidelidade tão admirável, que de certo modo constitui caso único na história das religiões.
      Simplificando: Amós sublinha a justiça de Deus, que protege os fracos e oprimidos; Oséias destaca o Seu amor; Isaías proclama Sua santidade; Jeremias completa o quadro assinalando Sua preocupação para com todo o ser humano. A piedade dos salmos mostra, por sua vez, como essas idéias penetram pouco a pouco na espiritualidade coletiva, inclusive através de crises tão terríveis como as da destruição do templo e do país, e do longo exílio na Babilônia.
      Chegada a plenitude dos tempos, com Jesus de Nazaré, a face autêntica de Deus se revela em toda a sua culminância. A bondade de Deus, tão universal que não exclui ninguém, "faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus, e cair a chuva sobre justos e injustos." Por isso, perdoa sempre e sem condições, até a ponto de, como o pai da parábola do filho pródigo, não castigar nem repreender, mas alegrar-se e fazer festa. Ou perdoando a pecadora, gratuitamente, não lhe impondo nenhuma condição.
      Jesus de Nazaré, com sua vida, suas atitudes, sua mensagem de libertação, que culminaram na sua paixão e morte, deixou-nos a lição de sua peculiaríssima relação filial que mantinha com Deus, e que o fazia chamá-Lo de Abbá = papai, paizinho.
      Assim, numa leitura consciente da Bíblia em seu conjunto, reconhecemos dentro de nossa tradição milenar a captação humana do que Deus, desde sempre, quer ser para nós: Pai entregue em Seu amor tão infinito como Seu próprio Ser e que unicamente espera de nós que, compreendendo-O, ousemos responder-Lhe com a máxima confiança de que nosso coração for capaz.
      É nesta perspectiva que somos convidados a ler a Bíblia, com outros olhos e outra mentalidade, principalmente o Evangelho de João, quando então poderemos compreender que o Deus da "ira", segundo Lutero, é o Deus que é Amor, nas palavras e na vivência de Jesus de Nazaré.

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