sexta-feira, 30 de novembro de 2012

AI DOS SACIADOS!... DOS QUE NÃO TÊM FOME!...


 
      - Tenho pena, Senhor, dos que têm fome, e mais pena ainda dos saciados, que morrem de fastio e de tédio... (Dom Hélder Câmara, "Um olhar sobre a cidade").
 
      Seguindo as palavras do Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, tenho pena dos que têm fome, e não consigo me acostumar a ver criaturas humanas, filhos de Deus, disputando restos de comida em depósitos de lixo, como escrevi dias atrás sobre o "Lixão do Embocoí."
      E como poderei dizer, com o ilustre Arcebispo, que tenho  também  mais pena ainda dos saciados que morrem de fastio e de tédio?
      Deus me entende! Eu me aflijo vendo uma criatura de Deus que nem sabe mais o que fazer com o dinheiro; não tem mais em que gastar, pois que já tem tudo na vida, em abundância e superfluidade. Não conseguindo, mesmo com os seus esbanjamentos faraônicos, acabar com a sua enorme fortuna.
      Isso me faz pensar na precariedade dos bens deste mundo: quem sabe, hoje mesmo a morte pode chegar, e de nada valerão, do lado de lá, todos os créditos nos Bancos da Terra, todas as cadernetas de poupança, todos os talonários de cheques. Nada disto será levado para a outra vida, a não ser o resultado da própria vida que vivemos neste mundo transitório!
      Tenho pena, Senhor, dos sem-casa, dos sem-abrigo, e mais pena ainda dos que estão instalados na vida, dos enraizados, que fizeram da Terra sua morada permanente...
      Tenho pena dos sem-casa e sem-abrigo... Pois é tão bom, ao final do dia, terminado o trabalho, voltar para casa; ter um canto seu, parentes à espera; quem sabe um banho quente reparador, um jantar com os entes queridos!
      Deve ser terrível  para o morador de rua não ter um lugar seu, para onde ir, e não ficar rolando debaixo de marquises, no patamar de igrejas, nos pisos de edifícios ou debaixo de pontes, sem comida, sem família, sem agasalhos, sem banho, sem nada...
      Como então tenho coragem de dizer que ainda mais me aflige encontrar pessoas instaladas, enraizadas, totalmente esquecidas de que não temos aqui morada permanente e de que, a cada instante, pode soar o sinal da partida definitiva?...
      Feliz de quem guarda a lembrança de que estamos em marcha, em caminho, em peregrinação, e que, de casa mesmo, permanente, só quando chegarmos à Casa do Pai de todos os pais!
      Quem vive à luz desta verdade, que haurimos nas páginas sagradas dos Evangelhos, faz tudo para que não falte a ninguém um teto mesmo humilde e um catre para repousar o corpo cansado!...
      Tenho pena, Senhor, dos que Te procuram tateando nas sombras, mas tenho mais pena ainda de quem acha que se basta a si mesmo, não precisa de Ti, se crendo um super-Deus...
      Tenho pena dos que procuram Deus e têm a impressão de não encontrá-Lo: tateiam nas sombras! Mas quem busca o Senhor, mesmo que tenha a impressão de não O encontrar, já tem garantido o encontro com o Criador e Pai!
      Fico triste ao encontrar alguém que se diz senhor absoluto de sua vida e de seu destino, que se basta a si mesmo, se julga seguro e forte, que nem precisa de Deus.
      Perdoa-lhe, Senhor: é mais fraqueza do que maldade. Tu és grande demais, Senhor, e sobretudo, dizem-nos os Evangelhos,  és bom demais para desceres a mesquinharias e vinganças! Vai ao encontro deles, Senhor! Tu és pai, e és Pai de todos nós, principalmente és Pai para os que dizem que não são Teus filhos!

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

E POR FALAR EM SORRIR...


      Sorrir! É tão importante sorrir, dependendo da profundidade e da origem do sorriso.
      Os pais, pai e mãe, verdadeiramente pais na plena acepção da palavra, aguardam, com ansiedade, o primeiro sorriso do filhinho, como minha esposa e eu aguardávamos, impacientes, o primeiro sorriso de nossos filhos, o Carlos, o Júlio, o Aroldo, e a Raquel, ela agora já na Casa do Pai de todos os pais.
      O eventual e compreensivo leitor deste blog com toda certeza sabe que sorrir é próprio do ser humano. O macaco, tão imitador do homem, não sorri... Minha neta Isabela tem em casa um cachorrinho de estimação que sabe manifestar sua alegria sorrindo a seu modo, isto é, balançando a cauda...
      Na frase inicial falei da importância de medir a profundidade e a origem do sorriso. Não merece o nome de sorriso o entreabrir artificial dos lábios, só para ser amável com os frequeses,  com as visitas de pessoas importantes, ou com os amigos convencionais do dia a dia.
      Não merece o nome de sorriso o entreabrir de lábios que costuma acompanhar a ironia, gozando a  perversidade que deve ter atingido o alvo, gozando a malícia que deve ter feito alguém sofrer...
      Sorriso, sorriso mesmo, verdadeiro, vem de dentro. Traduz alegria, compreensão, amor e paz.
      O sorriso, o riso e a risada são irmãos. O riso é mais aberto, mais ruidoso, mais festivo.  Quando o meu time do coração, o Coritiba, faz um gol contra o Atlético, não é suficiente sorrir: explode o grito de surpresa, de alegria, seguido de boas risadas de felicidade...
      Sorri minha esposa, a Cida, quando preparou uma sobremesa gostosa para mim e nossa neta, a Isabela, sabendo que apreciamos seu bom gosto de cozinheira, sua boa vontade e seus dotes de perfeita mestra na confecção de seus temperos...
      Sorri o operário que executa, com rapidez e segurança, o trabalho que lhe foi confiado, e se vê encorajado pelos olhares de aprovação de quem lhe contratou os serviços.
      Quem já acompanhou o sorriso de um casal de namorados, que se acham em pleno êxtase de seu amor?  Ele pode mostrar não importa o quê, ela pode responder seja lá o que for; mas tudo é pretexto para mais risos e sorrisos por assim dizer celestiais.
      As más línguas dizem que é mau sinal andar pelas ruas falando sozinho... Isto eu não faço, mas confesso que sorrio muito sozinho, quando caminho pelas ruas e praças de Curitiba.. - Quando tudo está em paz em casa, quando minha neta Isabela chega feliz do colégio dizendo que recuperou a nota de Matemática, quando o jardim de minha mulher se abre em flores que poderiam participar de exposição em qualquer planeta, quando a luz se despede do dia e nos convida para o repouso noturno, quando encontro uma senhora grávida e fico imaginando na criança que vai nascer e mais tarde assistir a prodígios incomparavelmente maiores do que a energia nuclear e as viagens espaciais e, muito especialmente, quando encontro sinais visíveis da ação do Pai de todos os pais em nossa vida,  então eu não me contenho, e sorrio, sorrio!
      Portanto, compreensivo leitor que agora me lê: mesmo que não goste do que escrevo, desamarre seu rosto. Não pense que cara feia vai melhorar meu texto. Cara feia, para o povão, não é tanto falta de beleza; é cara enjoada, enfezada, de poucos amigos...
      Não ranja os dentes. Não tranque os lábios. Deixe que eles se abram felizes, sorrindo para tudo e para todos, para homens e mulheres e, principalmente, para Deus!

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

TER sem RETER


      Minha neta, Isabela, tem um cachorrinho poodle, chamado Billy. E eu, observando-o, noto que ele está sempre, de uma maneira ou de outra, roendo um osso, que nunca acaba. E eu me pergunto:
      -  Donde virá a paixão do cachorro pelo osso?
      Tenho para mim que se oferecermos aos cães carne de um lado, osso do outro, eles nem vacilam: largam a carne e agarram o osso...
      É só reparar um cachorro agarrado ao osso... Deus do céu! Que sofreguidão! Que fúria! E rosna, de tão feliz que está! Rosna também para espantar qualquer intruso que tenha a audácia de querer participar de seu banquete... Tem ciúme da própria sombra, pois o faz lembrar-se de outro cão que pretenda dividir com ele um pedaço, por mínimo que seja, de seu festim delicioso...
      Me parece que vale como frutuosa meditação olhar, com olhos de ver, um cachorro agarrado ao osso...
      É curioso! Chamar cachorro de cachorro, falar de seu agarramento ao osso, não inclui nada de ofensivo... Mas é muito delicada qualquer aproximação quanto a criaturas humanas com agarramentos que lembram o cachorro agarrado ao seu osso. Mas é ou não é o caso de cada qual de nós perguntar a si mesmo se, em matéria de agarramentos, não há nada que lembre a cena à qual estou aludindo?
      Sem a pretensão de não julgar a ninguém, deixando a cada consciência o encargo de se examinar ,atrevo-me a perguntar:   
      - Há ou não agarramento a dinheiro e outros bens semelhantes que lembrem o agarramento ao osso, com todos os pormenores da cena canina recordada acima: arreganhar os dentes, mostrar as unhas, rosnar, não deixar ninguém chegar perto, querer o osso só para si e, não raro, morder o observador incauto?...
      Às vezes nós, humanos, temos a intenção de ir ainda mais longe: não contentes com o osso que já temos nos dentes, ainda avançamos nos ossos dos outros...
      - Há ou não agarramento a cargos e ofícios que lembram o agarramento ao osso? Há criaturas que foram esplêndidas no cargo que ocupavam; desdobraram-se; obtiveram resultados magníficos; não mediram sacrifícios; dedicaram ao cargo o melhor de sua vida.
      Mas, cadê a coragem para largar o osso?... Convenceram-se a si mesmos de que não se trata de nada de pessoal: querem morrer no posto, por que onde encontrar quem conheça o trabalho como quem praticamente criou tudo e fez o trabalho crescer? Onde encontrar alguém que tenha a mesma dedicação?...
      E não faltam amigos aduladores - mais aduladores do que amigos - para dizer e redizer que é impossível largar o osso, que é preciso sacrificar-se...
      Convém examinar se nossas amizades não são agarramento ao osso... É amizade autêntica a amizade possessiva, absorvente, ciumenta, rosnante, que mostra dentes e garras a quem se aproxima, como se todos quisessem tomar-nos o osso?
      Que o eventual leitor deste despretensioso blog não se ofenda com a comparação: estou pedindo apenas que, encontrando um cão agarrado a um osso, parem, olhem, meditem... Meditem!
     

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O LIXÃO DO EMBOCOÍ

 
 
      A "Gazeta do Povo", de Curitiba, publicou tempos atrás foto com a seguinte legenda: -"Pessoas, vacas, cavalos, urubus e cães vadios dividem espaço no lixão do Embocoí."
      Alguém, menos prevenido, poderia achar normal semelhante cena, mas um mínimo de percepção da realidade em que vivem vastas parcelas de nosso povo das periferias, marginalizadas e desassistidas pelos poderes públicos, nos atesta que o quadro é tremendo.
      Quando os primeiros caminhões da coleta do lixo urbano nem bem acabam de descarregar, eles e elas aparecem ou já estão à espera. Como por encanto, numa imitação trágica das estórias da carochinha, eles e elas vêm, não se sabe bem de onde. Uns "moram" por perto, outros vêm de longe, chegam, encostam carrinhos ou abrem sacos, e começa a disputa: de um lado, seres humanos, ansiosos e tristes; do outro, urubus e cães vadios, famintos...
      Os bandos de urubus e de cães ficam à espreita. Descarregados os caminhões, eles avançam sobre o lixo, os enormes caminhões não os assustam. Então aparecem os concorrentes mais perigosos: crianças, jovens, adultos, velhos, todos irmanados na ânsia de colher alguns restos que lhes proporcionem um minguado dinheirinho para as necessidades do dia a dia. Ávidos, começam a procurar e catar. Tudo serve: restos de comida, latas, ferro velho, plástico, papel, latinhas de cerveja, garrafas descartáveis. Qualquer coisa que possam comer ou vender. O espetáculo gratuito da miséria.
      Assustando as aves da carniça e os cães, espantando-os, os párias da cidade grande fuçam, como porcos, a imundície. Armados de paus e pedras espantam os cães e urubus que tentam roubar-lhes o pouco que esperam recolher. Quando já conseguiram o suficiente para vender no ferro-velho ou nos depósitos de papel e recicláveis, correm para trocar por míseros reais o que a busca lhes proporcionou. Outros, com menos sorte, depois de seguidas vezes mexer e remexer o grande amontoado de lixo, ficam como que bestificados, sentam-se sobre a sujeira, contemplando-a desiludidos, até que os tratores da Prefeitura venham fazer o seu serviço, espalhando-a e cobrindo-a de terra.
      A poucos passos do grande palco onde se representa o mais ignominioso drama da vida real, erguem-se os barracos de mais uma das centenas de invasões de que sofre a metrópole. Das portas, mulheres encarquilhadas, mais pela fome crônica do que pela idade, contemplam seus maridos e filhos na árdua e triste batalha contra urubus e cães vadios.
      Nada mais as impressiona. Quem mora em favelas ou em áreas de invasão acostuma-se a assistir a qualquer cena dessas sem se emocionar. Crianças desnudas de ambos os sexos, brigas, palavrões atirados em altas vozes, pragas e imprecações são comuns no linguajar de adultos, adolescentes e crianças. A ingenuidade, a pureza e a delicadeza de sentimentos não existem, desde os mais tenros anos, para aquelas pobres vítimas da sociedade globalizada e egoísta.
      Quantas vezes, após uma busca prolongada que resultou infrutífera, uma pequena menina-moça ou um garoto ainda imberbe aceitam o convite de um dos malandros que de longe os observam, e daí a pouco haverá mais dois jovens a perambular pela cidade, nos caminhos da prostituição ou do tráfico de drogas.
      Esse é o espetáculo da marginalização, da miséria e da fome, à sombra dos arranha-céus, bem pertinho da cidade grande. Legiões de miseráveis continuarão indo todos os dias para o lixão, crime que pagam por terem nascido na pobreza.
      Diante de quadro como este, compreendemos o grito de revolta e de incontida indignação do grande escritor, além de cristão dos bons, que a França nos deu, Léon Bloy:
      - "Ah, ricos! Se torcessem vossas roupas de grife, elas haveriam de sangrar. Se espremessem esse automóvel de luxo e vissem como foi adquirido, vocês o achariam feito do pão arrancado à boca dos pobres. Quando recordamos que é preciso que uma criança sofra fome e frio num barraco gelado, para que uma menina cristã e rica desfrute das delícias de uma boa mesa junto à lareira, como nos custa esperarmos a justiça de Deus!
      

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

MEU IRMÃO O SACRISTÃO


      Se não me falha a memória, parece-me ter lido alhures que não há mais idéias novas neste nosso planeta das arábias. Todo o possível e imaginável no campo das idéias  já foi dito pelos nossos antepassados, e nós somente o repetimos hoje sob novas roupagens.
      Entretanto, por mais que escarafunche o bestunto, já passando dos setenta e seis malaventurados invernos da existência, não me lembra ter lido algo a respeito de sacristães. Ora bolas, resmungo eu, afinal de contas, a "irmandade" dos sacristães é uma classe profissional enorme, espalhada pelas igrejas católicas de todo o mundo, e não fica nada mal alinhavar algumas palavras sobre eles.
      Sem nenhum desdouro para os nossos irmãos sacristães, mas não sei por que cargas d'água, geralmente, pelo que tenho observado, os sacristães apresentam uma característica toda especial, que merece algum estudo especializado, coisa que até agora não me consta ter sido feita: na maioria dos casos ou é gente já de certa idade, ou meio caolha, corcunda, manquitola, um tanto surda, e não raras vezes ocasião de chacota por parte de certos espíritos gozadores.
       Dizem até alguns desses gozadores que, não tendo conseguido nada melhor na vida, uma classe de pessoas optou, sem outra alternativa, por essa profissão tão criticada e alvo de anedotas: a sacristãneidade.
      É claro que a maior parte daquilo que se diz dos sacristães é fruto do espírito alegre e faceto do nosso povo, que não deixa, entretanto, de ter lá o seu tanto quanto de verdade.
      Paradoxo ou não, apesar de viver o dia quase inteiro na igreja, vendo tantas cerimônias complicadas, convivendo com padres, cônegos e monsenhores, quase sempre é o sacristão o menos piedoso dos homens. Por isso se diz de Santa Teresa, que um dia estando ela em oração na igreja, viu passar um vulto apressadamente, diante do altar, fazer uma espécie de trejeito como se fosse uma genuflexão e desaparecer na sacristia, levando a santa a pensar que se tratava do "tinhoso", pelo ódio que tem a Cristo.  Mas, notando melhor, viu que não era o tinhoso coisa nenhuma, e sim o piedoso e compenetrado sacristão da igreja.
      Não sei se é verdade, mas passo para a frente pelo preço que me custou.
      Certa vez o vigário foi obrigado a ficar de cama, dando um pouco mais de repouso ao seu já bem maltratado corpo. Vai daí, chamou o prestimoso sacristão e deu-lhe modesta série de avisos para o bom andamento da igreja durante sua ausência:
      - Olegário, avise os fiéis que não posso celebrar hoje e amanhã a Santa Missa, porque me sinto adoentado. Que não se preocupem com isso, porque não é por culpa deles que ficarão sem cumprir o preceito dominical. Avise também que na próxima quinta-feira será a festa de São Pedro e São Paulo, e véspera da primeira sexta-feira do mês. Por isso haverá confissões e também haverá coleta especial em favor do Papa. Ainda mais: na quarta-feira abençoarei o casamento de Benedito Bueno com Pafúncia dos Prazeres, e que se alguém souber de algum impedimento para essa união, deve declarar sob pena de pecado grave. Foi também achado um embrulho na igreja, e quem o esqueceu poderá vir buscá-lo na sacristia.
      No dia seguinte, às seis horas, como de costume, o sacristão abriu a igreja, acendeu as luzes, bateu os sinos, e quando os fiéis já estavam presentes, o nosso homem, muito compenetrado do seu ofício, transmitiu-lhes o aviso do vigário:
      - O padre Aleixo manda avisar que está doente, mas que isso não é pecado mortal. Quinta-feira próxima é a primeira sexta-feira do mês, e o Papa virá fazer a coleta. Além disso, quinta-feira é também a festa de Benedito Bueno e Pafúncia dos Prazeres, e o vigário fará o casamento de São Pedro e São Paulo. Se alguém souber de algum impedimento, deverá colocá-lo no embrulho que se encontra na sacristia.
      Devo dizer, entretanto, pela minha experiência adquirida ao longo do tempo, nas muitas igrejas por que passei, que entre os sacristães há honrosas exceções. Se não a bem da verdade, pelo menos em atenção ao nosso sacristão da paróquia, pessoa que muito me honra com sua preciosa amizade...

sábado, 24 de novembro de 2012

SONHOS DE UMA TARDE DE VERÃO


      Ele a encontrou à sombra de florido flamboyant, no jardim da cidade. Não sei se esse encontro lhe trouxe alguma transformação para o futuro. O que posso afirmar, com certeza, é que, nos rápidos momentos passados juntos, ela lhe proporcionou instantes de indizível felicidade.
 
                                                         *******************
 
      Jovem camponês, filho de pequeno proprietário rural que teve suas terras leiloadas para cobrir dívidas de financiamento bancário, ao rapaz não sobrou outra alternativa  a não ser deixar a enxada e o arado, e vir tentar a sorte na cidade grande. Chegou há muitas semanas, com algum dinheiro no bolso de brim barato e um incêndio de ambições na cabeça.
      As avenidas rumorosas, a agitação poliforme, o trânsito desenfreado e perigoso, o imprevisto e o inesperado assaltando-o a cada esquina, os odores diferentes, a moda descontraída e insinuante das mulheres, o maravilhoso das coisas e dos aspectos urbanos, a cidade inteira alucina-o numa alegria deslumbrante.
      Na sua ingenuidade de recém-chegado, julga fáceis todas as coisas; abertos à sua frente todos os caminhos. Nesta ilusão perigosa, procura emprego com as mais fagueiras esperanças.
      Vê, porém, frustrados, todos os seus anseios. Ou porque sua aparência não fosse lá bastante convidativa, ou porque a vida está mesmo apertada, o certo é que não conseguiu nenhuma colocação.
      Assim, correm os meses, as refeições vão-se encolhendo, até se transformarem em sanduíches de pão com mortadela; a cara da dona da pensão vai-se fechando a cada dia que passa sem pagamento. Coisa trágica!
      O moço resolve dar o milésimo giro pela zona comercial, a ver se tem mais sorte desta vez. Aventura-se por um supermercado. Fala ao gerente. Oferece os seus serviços. O gerente não o conhece. O candidato não tem referências. Ademais, o salário mínimo subiu, os consumidores retraíram-se, a recessão bate às portas, a Assembléia Constituinte ameaça a estabilidade e a jornada de quarenta horas, e com isso vai para as ruas uma boa leva de trabalhadores. Voltasse outro dia. Talvez até lá surgisse alguma vaga.
      Desengano maldito!
      O pobre se atira a todas as casas comerciais. Todas elas têm gente de sobra. Todas dizem que o novo plano econômico do Governo fracassou, que estão operando no vermelho, por isso são obrigados a comprimir despesas, não podem contratar ninguém. Oficinas, bares, farmácias, lojas de confecções, postos de gasolina, tudo a mesma coisa.
      E pelas calçadas rescaldantes, frustrado, arrependido de ter vindo para a cidade, caminha o infeliz na sua lentidão desiludida, coração opresso, até que cansado da busca infrutífera, se atira nos braços acolhedores de um banco de jardim.
      E foi então que ela chegou.
      E chegou faceira, cativante, ostentando suas graças e donaires na sedução irresistível das formas bem feitas. Como era linda! Encantadora mesmo! Se o rapaz estivesse a par da linguagem das novelas e dos romances, diria que ela estava tentadora. Não conhecia essa linguagem, por isso se limitou a contemplá-la, embevecido, em muda admiração, pois nunca na sua vida ele vira beleza igual.
      E a borboleta (pois era uma linda borboleta, dessas grandes e douradas), atraída pelo perfume de rubicunda rosa, voava e tornava a voar, descomprometida, fazendo brilhar ao sol as asas de setim.
      O divorciado da sorte deixou-se estar a contemplá-la, na plácida modorra de um faquir. E foi então, aos seus olhos incrédulos que, dentre as translúcidas asas da borboleta a volitar, pareceu-lhe surgir tênue fumaça, que pouco a pouco se foi adensando até formar um rosto... e esse rosto era o seu!
      Nessa fantástica miragem, viu-se o rapaz transformado em rotundo ricaço, a exibir o fausto e a ostentação de uma situação privilegiada. A cada volteio da despreocupada borboleta, mais e mais o jovem se aprofundava em seu êxtase. É agora dono de rico e majestoso palacete, centro de reunião e de festas da fina flor da sociedade local.
      Suas emoções crepitam. Passam-se minutos, que lhe parecem séculos, neste deslumbramento de riquezas nunca jamais possuídas. Diante dele espelham-se todos os seus mais ardentes desejos, agora realizados, e ele se vê em companhia de outros rapazes, de muitas e muitas moças maravilhosas, simpático, atraente, e com aquele ar desdenhoso e distante, da abastança regalada.
      As translúcidas asas da borboleta dourada transformam-se, para o rapaz que sonha, num televisor gigantesco, onde as imagens alegres do mundo se sucedem sem parar. O mundo está delirante, as pessoas cada vez mais belas e encantadoras, a cidade sempre mais cheia de magia, e ele entre tudo isso. Que delícia! Como é bom viver!
      O rapaz sonha. Está no auge de sua felicidade, com todos os seus desejos realizados, apaixonado de todas as mulheres, possuidor de todas as comodidades da vida, fruindo todos os prazeres e luxos que o dinheiro proporciona, quando um estudante, que "enforcara" as aulas, também avista as fulgurações da borboleta dourada!...
      Na ânsia de colher novo espécime para sua coleção, corre para ela, persegue-a, alcança-a, dá-lhe com o livro, derruba-a na grama verde do jardim. E, com ela, as falazes quimeras do sonhador!
 
                                                     ************************
 
      Coisas da vida!
      O pobre moço vê destruída, de um golpe, toda a sua felicidade.
      Já agora o tortura o aguilhão da fome. Procura algum dinheiro nos bolsos. Nada. Vazios.  E melancólico, frustrado mais uma vez, roendo dolorosamente as unhas maltratadas, ergue os olhos para o horizonte longínquo, procurando nele, quem sabe, uma nova borboleta dourada, que lhe venha trazer, por alguns instantes, mais alguns retalhos de mentira à sua vida inútil e miserável!...

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A BELEZA DO LOUVOR A DEUS


      A beleza e a grandeza do Antigo Testamento, no meu modesto entender, está começando a se tornar plenamente evidente em algumas ótimas teologias do Antigo Testamento escritas por especialistas protestantes, como Von Rad e outros. O universo do Antigo Testamento é um universo de louvor, do qual homem e mulher constituem parte viva e essencial, lado a lado com os coros angélicos no Céu.
      Ora, para o cristão o louvor a Deus é a mais segura manifestação da verdadeira vida. A característica do Xeol, a região dos mortos segundo a Bíblia, é a ausência total de louvor. Os salmos, como eu os entendo, são a mais pura expressão da essência da vida neste nosso universo: Javé se faz presente quando os salmos são cantados com vigor triunfante e cheio de jubilosa alegria (e não apenas murmurados a meia voz e meditados individualmente na barba de cada um).
      Essa presença e comunhão, esse vir a ser no ato de louvor é o cerne do culto no Antigo Testamento, como o é também hoje quando a comunidade se reúne no culto litúrgico. O louvor vivo é a plenitude do ser de homem e mulher em relação a Deus.  Contudo, tem também uma dimensão histórica: fé no poder de Deus e em Suas grandes obras de misericórdia, assim como em Suas promessas torna a história presente àqueles que cantam como realidade e fato teológico.
      A compreensão teológica desses grandes feitos do Senhor é sentida e experimentada em toda a sua beleza. O magnífico poder da radiosa presença do Senhor revelada em Seus feitos salvíficos toma inteiramente posse do adorador. Daí a qualidade arrebatadora dos salmos, quando a comunidade em peso ergue a voz vibrante na liturgia, cantando, jubilando, exultando...
      Lembro-me muito bem do tempo em que cursava Teologia na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, e nosso coro era conduzido pelo Padre Talarico, maestro de grande sensibilidade e empatia, que em certos domingos do Tempo Pascal conseguia movimentar-nos a cantar de tal maneira, que eu pensava que fôssemos arrancar o teto de nossa igreja.
      Repetimos a mesma façanha na festa da Ascensão que se seguiu. O texto musical prestava-se perfeitamente para isso: Jubilate Deo omnis terra, "cantai a Deus vossa alegria, Terra inteira".
      Jubilate: expressa uma alegria que quase não se pode conter. Onde encontrar isso hoje em nossa liturgia? Este é o verdadeiro grito de triundo da liturgia, o triunfo que experimentamos quando a beleza divina e angélica se apodera de todo o nosso ser na alegria do Cristo ressuscitado!
      A grandeza de Deus é mais bem louvada pelos homens e mulheres que atingem e percebem seus limites, sabendo que seu louvor não é capaz de alcançar a Deus. Neste aspecto, o canto gregoriano possui uma graça particular para fazer sobressair essa experiência do louvor, que atinge seu limite, fracassa e, no entanto, continua vivo numa nova dimensão.
      Desse modo, o louvor atinge não só o coração de Deus, mas também o coração da própria criação, encontrando, por toda parte, o belo da grandeza de Javé, nosso Deus e Senhor.
      Até hoje, mais de 49 anos passados desde os meus tempos de Faculdade de Teologia, a lembrança  desses fatos me faz faz voltar no tempo e sentir-me tão empolgado como costumava sentir, ao viver tão expressiva experiência!

domingo, 18 de novembro de 2012

TEOLOGIA EM PÍLULAS


      - Se quase não há mais cristandade, em compensação há cristãos. Cristãos escolhidos, que preparam o futuro em segredo. Que os haja em todas as nossas comunidades, cristãos fervorosos, lavando uma vida espiritual infinitamente mais rigorosa que a dos nossos antecessores na Fé, é já uma esperança e uma alegria. Quanto mais, no plano dos conjuntos políticos e institucionais, a apostasia é planetária, no plano das comunidades populares a Fé se mostra viva.
      Graças sejam dadas a Deus, porque verdadeiramente é um milagre, o milagre da Fé.
 
      - Haverá sempre pobres entre vós! - dizia Jesus. Não deveríamos esquecer que se esses pobres reclamam todos os nossos cuidados temporais e espirituais, não é em primeiro lugar porque se trata de ventres a saciar, de corações humanos a encher de ternura, mas sobretudo porque a sua multidão inumerável constitui, entre nós, a presença de Jesus Cristo.
 
      - Os cristãos que desejam milagres espetaculares enganam-se. O homem e a mulher são feitos de tal modo que, não estando moralmente preparados para ir ao encontro de Deus, nem o milagre mais extraordinário os convencerá.
 
      - Reza e trabalha! - dizia  São Bento. É preciso lutar, como se tudo dependesse de nós, e por-se de joelhos como se tudo dependesse de Deus.
 
      - Deus não pode encher o mundo de milagres nem atender a todos os oprimidos em virtude da injustiça, da enfermidade, da guerra, ou por causa de catástrofes naturais. Mas entrou e entra na História através de nossa liberdade para transformar tudo isso à medida que nos for possível.
 
      - A espera de uma nova terra, longe de esmorecer, deve antes avivar a nossa preocupação pelo aperfeiçoamento desta Terra, na qual cresce o corpo da nova família humana.
 
      - Os cristãos deste século querem pão, pão verdadeiro que sacie; querem água, água verdadeira que lhes estanque a sede; querem luz, a luz da verdade, que não se apaga. Querem ouvir a Palavra divina, simples, poderosa, indo até à junção do espírito e das medulas. Essa Palavra de Deus é Jesus Cristo, o Verbo de Deus.
 
      - A Fé é sobrenatural, livre e racional. É sobrenatural porque, no princípio, no meio e no fim, é sempre o apelo de Deus que solicita homem e mulher, os ampara e os faz chegar à Fé. É livre, porque, sem o consentimento da vontade humana, nem todo o oceano da divindade conseguiria franquear os umbrais de nosso tabernáculo interior. Enfim, é racional, porque no começo, no meio e no fim, o ato de Fé é uma atividade eminentemente digna da inteligência humana,
 
      - É próprio da liberdade humana poder, com sua minúscula recusa, perdida nas imensidades do tempo e do espaço, deter o oceano da graça divina.
 
      - A Pátria, para mim, é onde consigo rezar bem.
 
      - Nós nunca sabemos que dique derrubamos quando cedemos às tentações, porque um pecado não se isola; é como uma invasão da morte. Nunca se sabe quanto se perdeu, nem se avaliará a extensão do desastre, senão no Juízo Final.
 
      - Deus prepara os seus dons à medida de nossa sede. Decerto nós não podemos impor a Deus a maneira de nos atender. Mas também não podemos considerar nossas decepções como negativas. Para além de nossas esperanças, precisamos acreditar na Esperança.
 
      - A Graça é a parte de Deus; o desejo da Graça é a minha parte.
 
      - A primeira responsabilidade de um homem e de uma mulher de Fé é fazer da sua Fé uma parte real da vida, não a discutindo, mas a vivendo.
 
      - Não posso descobrir Deus em mim nem a mim em Deus, se não tenho a coragem de enfrentar-me exatamente como sou, com todas as minhas limitações, e de aceitar os outros como eles são, também com todas as suas limitações. 

sábado, 17 de novembro de 2012

VOLTAR AO PAI



      Uma coisa é sumamente importante em minha vida de cristão, acima de tudo: "voltar ao Pai".
      A Bíblia nos diz que o Filho veio ao mundo e morreu por nós, ressuscitou e voltou para o Pai. Enviou-nos o Espírito Santo para que nEle e com Ele pudéssemos voltar ao Pai.
      Sim, para que pudéssemos passar completamente para além da névoa de tudo que é transitório e inconclusivo: voltar ao Imenso, ao Primordial, à Fonte, ao Inconhecível, Àquele que ama e conhece, ao Silencioso, ao Misericordioso, ao Santo, Àquele que é tudo.
      Procurar algo, preocupar-se com algo fora disso, é loucura e enfermidade. Pois isso é o sentido pleno e o cerne de toda existência. E é nisso que todos os negócios de nossa vida e todas as necessidades do mundo e dos homens e mulheres tomam seu sentido certo. Tudo aponta para essa única grande volta à Fonte.
      Toda a meta que não é fim último, todo o fim da linha, que podemos ver e planejar como fim ou fins, são simplesmente absurdos, porque estas coisas nem têm início. A volta é a volta para além de todos os fins e o início de todos os inícios.
      O retorno ao Pai não é um voltar no tempo, não é fechar o livro da História, nem reverter seja o que for. É ir adiante, ir além. Pois retroceder pelo mesmo caminho seria vaidade acrescentada à vaidade - renovação do mesmo absurdo em sentido reverso.
      Nosso destino é seguir para além de tudo, deixar tudo, apressar para atingir o Fim e encontrar, no Fim, nosso Princípio, o Princípio sempre novo que não tem fim.
      Obedecer-Lhe no caminho para alcançar Aquele em quem tive início, que é a chave e o fim - porque, na verdade, Ele é o Princípio.
      Esta é a lição que o monge cisterciense norte-americano, Thomas Merton, me ensina nesta manhã de sábado, quando estou sozinho em casa, enquanto minha mulher e a neta Isabela estão no litoral, em merecidas férias...
     

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

E POR FALAR EM RESSURREIÇÃO...



      Se em novembro temos um dia consagrado aos mortos, (e eu tenho um morto muito querido a lembrar: minha filha Raquel, falecida há dois anos), para o cristão a morte não é o fim definitivo e total da pessoa humana, pois acredito na ressurreição dos mortos, não em um problemático final dos tempos, mas no instante da própria morte.
      O apóstolo Paulo chamava o homem ressuscitado de corpo-espiritual. Com isso entendia o homem todo inteiro alma-corpo, mas totalmente realizado e repleto de Deus.
      Como poderíamos designar o homem ressuscitado? Utilizando-nos de uma categoria da antropologia baseada no princípio-esperança, talvez pudéssemos dizer: homo revelatus,  como sugere o teólogo brasileiro Leonardo Boff,  no seu primoroso livro "A nossa ressurreição na morte".
      Com a ressurreição, se revelou realizado o verdadeiro homem que estava crescendo dentro da situação terrestre, aquele que Deus realmente quis quando o colocou dentro do processo evolutivo. O homem verdadeiro, em sua radical patência, é só o homem escatológico, explica Boff.
      Pela ressurreição, o poder-ser do homem-ser se realiza exaustivamente: ele sai totalmente de sua latência, pois nele se revela o desígnio de Deus sobre a natureza humana, que é fazê-la participar de Sua divindade com toda a realidade dela, corpo-espírito-aberta-para-a-totalidade.
      O homo revelatus participa da ubiquidade cósmica de Deus e de Cristo: possui uma presença total no mundo criado, tornando-se assim o homo cosmicus.
      Agora, na presente condição espácio-temporal, existe apenas o homo revelatus, que está ainda preso às categorias deste mundo, e vive na condição bíblica de simul justus et peccator  (ao mesmo tempo justo e pecador).
      A morte vem libertá-lo e possibilitar-lhe uma penetração mais profunda no coração do mundo. Pela ressurreição na morte ele participa do Cristo ressuscitado e cósmico. Na consumação final do mundo-universo, ele mesmo se potencializará, porque o cosmos lhe pertence essencialmente.
      No final da vida terrestre, o homem deixa atrás de si um cadáver, que é dado à terra. É como um casulo que possibilita o emergir radiante da crisálida e da borboleta, agora não mais presa pelos limites do casulo, mas aberta ao horizonte vasto de toda a realidade.
      Diante da pergunta fundamental da antropologia - que será do homem? que podemos esperar de seu futuro? - a Fé nos responde cheia de júbilo: vida eterna do homem-corpo-espírito em comunhão íntima com Deus, com os outros, e com todo o universo.
      -"Passa certamente a figura deste mundo deformado pelo pecado", adverte-nos o Concílio Vaticano II", mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova Terra. Nela habitará a justiça, e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos da paz que sobem nos corações dos homens. Então vencida a morte, os Filhos de Deus ressuscitarão em Cristo... e toda aquela criação que Deus fez para o homem será libertada da servidão da vontade... O Reino já está presente em mistério aqui na Terra. Chegando o Senhor, o Reino se consumará."(Gaudium et Spes, 39).
      São muito consoladoras as palavras da Missa dos Mortos, que resumem toda a teologia exposta nas linhas anteriores:
      - "Em Cristo brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição. E aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola, porque, aos que creem em Deus a vida não é tirada, mas transformada; desfeito o corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível", nas palavras felizes do apóstolo Paulo.
      Hoje ainda choro a ausência física entre nós de minha filha Raquel. Mas, porque tenho a firme certeza de que ela ressuscitou na morte, esta convicção torna menos pesada para mim a tristeza da separação.
     

domingo, 11 de novembro de 2012

A FELICIDADE, OU: MANEIRAS DE SER FELIZ



      Por que não podemos contentar-nos com uma felicidade comum, secreta, pessoal, que não precisa ser explicada ou justificada? Sentimo-nos culpados se não somos felizes de algum modo publicamente aprovado, se não imaginamos estar conseguindo um padrão de felicidade reconhecido por todos.
      Deus, em Sua liberalidade, nos concede o dom e a capacidade de realizar nossa própria felicidade dentro da situação que nos é própria, aquela em que vivemos. E não é difícil ser feliz, pela simples aceitação do que está ao nosso alcance e disso aproveitando como nos seja possível. Mas, se assim fazemos, e tenho consciência de que eu o faço, ainda nos perguntamos se não haverá aí algo de errado.
      Estaremos conseguindo alguma coisa que os outros não podem ter (uma felicidade privada e pessoal!)? Evidentemente, minha eventual felicidade não é a de outro - enquanto eu não a partilho  - e se a partilho, eu me torno mais feliz do que antes.
      Ou então seria o caso de perguntarmos a nós mesmos se falhamos na tentariva de encontrar um nível geral único e autêntico. Por exemplo: pode uma felicidade que é absolutamente gratuita, que não custa nada, nunca foi colocada num anúncio de TV, ser uma felicidade genuína? Ora, a reflexão e o bom senso nos revelam que esta é a única felicidade realmente genuína!
      Está tudo ali, ao nosso lado, plenamente disponível; no entanto, ficamos um pouco preocupados como sse não fosse algo permitido. Como se não pudéssemos ser felizes sem que isso seja antes aprovado pela Globo, pelo SBT ou pelo "Estadão". Entretanto, esta verdade, entre todas as outras coisas, é precisamente aquilo para que não é preciso ter uma permissão da mídia, da opinião pública, ou do que quer que seja.
      Enquanto me cortavam o cabelo, esta manhã, da cadeira do cabeleireiro eu observava os operários, homens e mulheres, de uma fábrica à frente, que chegavam prontos para o trabalho.  Alguns me pareciam cansados dessa rotina diária, outros com ares de muita eficiência, a maioria bem feliz.
      Confesso que fiquei comovido ao vê-los e pensar que tantas vezes servimos de obstáculo a nós mesmos, ao tentarmos carregar tanta bagagem inútil em nossa vida que julgamos  necessitar de grandes reformas (espirituais?) no dia a dia.
      E como seria difícil ajudá-los sem acrescentar inconscientemente muito mais bagagem ínútil ao peso que já carregam, em vez de aliviá-los de seus fardos (que é o que eu, que me confesso cristão, deveria tentar fazê-lo!).
      Ao voltar para casa, assaltou-me o pensamento de que, ao menos, poderei amá-los em simplicidade, como nos ensinam os textos evangélicos, e assim preservar o clima em que o Espírito Santo desata e carrega as minhas próprias cargas impossíveis e inúteis para a Vida Eterna!

                                                          *********************

      È possível ser feliz, tendo de levar por toda a vida a carga enorme de uma bronquite crônica que, de tempos em tempos me ataca com toda força, nas suas crises periódicas? E à medida que a gente vai envelhecendo, essas crises se tornam sempre mais frequentes e sempre com maior intensidade?
      Pois já há uns dez dias que venho passando por uma dessas crises, que só melhoram, por umas cinco ou seis horas, após uma inalação de Berotec com Atrovent.
      Durante o dia tais crises não incomodam muito. À noite, porém, elas atacam para valer, principalmente das duas da madrugada em diante, com uma falta de ar pavorosa, que muitas vezes me faz até a pensar em morte; o ar falta de tal maneira, que eu fico de boca aberta, tentando como que apanhar o ar com a boca, tal o sufoco que me aperta o peito.
      Estou saindo agora para consulta com um pneumatologista, e minha esperança é que ele me consiga uma maneira de evitar a repetição frequente dessas crises e, pelo menos, me indicar meios mais apropriados para combatê-las. As  inalações não podem ser feitas a todo momento, e a milagrosa "bombinha", se for usada a todo momento, acabará perdendo o seu efeito, e daí, o que fazer numa dessas violentas crises de falta de ar?

                                                        ************************

      Estive no pneumatologista em companhia do Nor, que diz ter gostado do médico, que interrogou bastante, me examinou com cuidado, e acabou dizendo que até prova em contrário ainda não estou enfisematoso... Como se isso fosse um consolo para mim. Pediu uma bateria de exames, e a partir de amanhã começarei a fazê-los. Não gostou das minhas "bombinhas", dizendo que elas resolvem o problema apenas de passagem, nas crises, mas não possuem nenhum efeito curativo.  Receitou-me um medicamento novo que, diz ele, está tendo muito êxito no tratamento da DPOC, que é a minha companheira à noite, principalmente nas madrugadas. Amanhã de manhã começarei a usá-lo, na esperança de que "desta vez, vai..."

                                                      ************************

      Fiz uso, hoje de manhã, do novo medicamento receitado pelo pneumologista. É um conjunto de módulos meio complicado, através do qual o medicamento é enviado aos pulmões. O resultado não me pareceu satisfatório, talvez porque não tenha entendido direito o mecanismo da coisa. Não quis repetir a operação com receio de uma superdosagem, e deixei para a noite a correção do que me pareceu errado na primeira vez.
      À tarde estarei de novo na clínica para um teste de função pulmonar.

                                                     *************************

      Pois é: estive na clínica de pneumatologia fazendo o tal exame de função pulmonar. Quem me aplicou o teste foi uma mulher, não sei se médica ou apenas técnica. Mas tive pena dela porque, estando grávida, talvez já no final da gravidez, ela mal cabia na poltrona, e demonstrava claramente o seu mal estar com a situação.
     Enfiou-me um tubo plástico na boca, que a fez chegar até às orelhas, tão grosso era o tal canudo. O pior é ela me mandava assoprar, assoprar, "Assopre, mais forte, mais forte!" - e eu ali assoprando, e não conseguindo assoprar como ela queria. Depois de muito esforço, consegui chegar ao ponto ao ponto desejado, e isso para mim foi um desastre: ela parece ter gostado do meu sopro e pediu-me continuar soprando enquanto tivesse fôlego. A cada sopro que eu dava, ela exclamava, contente: "Jóia! Jóia!"
     Para desanuviar o ambiente, depois de ela repetir "jóia", várias vezes, eu resolvi entrar na brincadeira, e exclamei: "Mas, onde vou colocar tanta jóia? No meu bolso elas não cabem!...
      E ela emendou: -"Pior seria se o senhor tivesse muitos bolsos e nenhuma jóia para colocar neles!"
      Confesso que por essa eu não esperava... Tive vontade de dar-lhe uma resposta meio gaiata, já ensaiada, mas desisti, respeitando seu adiantado estado de gravidez. Saí da sala, com a certeza de que minha crise de bronquite está sendo mais "produtiva" do que os prognósticos médicos...

                                                 ********************

      Dia 14, 18 horas:- A "turma" desce para o litoral, e eu fico em casa cuidando do cachorro... ou melhor, no último instante a Isabela resolve levar também o cachorro, e eu fico livre dessa... Agora posso dormir sossegado todo o fim de semana, até domingo, quando eles voltam.
       
       

     

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

E POR FALAR EM DEMOCRACIA...


      Não há nenhum exagero em dizer que a sociedade democrática está fundada sobre uma espécie de fé: a convicção de que cada cidadão é capaz de assumir e na verdade assume, com exceções, é claro, inteira responsabilidade política, dentro das características próprias da sociedade em que vive.
      Que cada um não só compreende em larga escala os problemas do governo, mas está pronto a tomar parte, de boa vontade, na solução desses problemas.
      Noutras palavras: a democracia presume que o cidadão saiba tudo o que se passa, compreenda as dificuldades da situação e já tenha elaborado uma resposta que o ajudará a contribuir inteligente e construtivamente à obra comum de governar a sociedade de que é membro.
      Mas, para que isto seja verdade, deve haver considerável peso de sólida preparação educacional e cívica. Uma verdadeira formação da mente. Uma autêntica educação no que concerne às disciplinas intelectuais e espirituais, sem o que a liberdade não é possível.
      Deve haver, numa sociedade democrática, completa liberdade na troca de idéias. As opiniões da minoria, mesmo opiniões que possam parecer perigosas, devem ser ouvidas, claramente entendidas e seriamente avaliadas quanto ao seu valor, e não simplesmente descartadas como inúteis.
      As crenças e disciplinas religiosas devem ser respeitadas. Os direitos da consciência individual devem ser protegidos contra toda espécie de pressão aberta ou oculta.
      A democracia não pode exisitr quando homens e mulheres dão preferência a idéias e opiniões para si próprios fabricadas. As ações e declarações do cidadão e da cidadã não devem ser simples "reações" automáticas - meras saudações mecânicas, gesticulações que signifiquem conformidade passiva com os ditames daqueles que detêm o poder, seja ele político, econômico, ou religioso..
      Para sermos verdadeiros, teremos de admitir que não se pode esperar que isto se realizes em todos os cidadãos e cidadãs de uma democracia. Mas, se não se realizar numa proporção significativa em relação a eles, a democracia deixa deixa de ser um fato objetivo, e nada mais é que uma palavra simplesmente carregada de emotividade, sem nenhum lastro efetivo e  concreto.
      Qual é hoje em dia a situação no Brasil, quando se discute esse feio episódio do "mensalão"?

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O SONHO DE KARL BARTH

     


      Aproveitei os meus dias de reclusão forçada em casa, motivada por  uma violenta crise de bronquite crônica, para ler a biografia de Karl Barth (1886-1968), um dos mais destacados teólogos protestantes do século XX.
      Celebrizou-se como criador da "teologia dialética", na qual ressalta o sentido existencial do Cristianismo, e o reintegra em sua base bíblica, de doutrina da Revelação e da Fé.
      Lendo-lhe a biografia, descobri que certo dia Karl Barth teve um sonho. Sonhou com Mozart.
      A verdade é que Barth sempre se sentiu melindrado pelo catolicismo de Mozart e pelo fato de o grande compositor rejeitar o protestantismo. Foi Mozart que disse certa vez:  -"O protestantismo está todo na cabeça. Os protestantes não conhecem o sentido do  Agnus Dei qui tollis peccata mundi."
(= Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo).
      No sonho, Barth foi indicado para examinar os conhecimentos teológicos de Mozart. Desejava tornar o resultado do exame tão favorável quanto possível. Assim, em suas perguntas, sempre fazia referências às Missas do famoso compositor.
      Mozart, porém, não lhe deu nenhuma resposta.
      Confesso que fiquei profundamente comovido com a descrição deste sonho de Barth, pois me pareceu que o sonho  tem muito a ver com a sua salvação, e Barth estaria talvez se esforçando por admitir que ele, Barth, será salvo mais pelo Mozart que nele existe, do que por sua própria teologia.
      Cada dia, durante anos, Barth tocava Mozart todas as manhãs antes de iniciar seu trabalho sobre temas teológicos. Procurava, talvez inconscientemente, despertar o Mozart sapiencial nele oculto, a sabedoria interna que se harmonizava com a música divina, que é salva pelo amor, na sua categoria de eros, enquanto o outro ser, o teológico, aparentemente mais preocupado com outro amor, um ágape mais severo, mais cerebral. Um amor que, afinal, não está em nosso próprio coração, mas somente em Deus.
      Barth diz também, com muito sentido, que "é uma criança, mesmo uma criança divina, que nos fala na música de Mozart."
      Isto se explica porque, segundo Barth, muitos críticos sempre consideraram Mozart uma criança em relação às coisas práticas da vida. Ao mesmo tempo, ao menino-prodígio Mozart nunca lhe foi permitido ser criança no sentido literal da palavra. Tinha sete anos quando deu seu seu primeiro concerto. Contudo, na realidade, foi sempre uma criança no sentido mais elevado do termo.
      Agora, eu tomo a liberdade de dizer ao eminente teólogo Barth:
      - "Não temas, Karl Barth! Confia na misericórdia divina. Se bem que, adulto, te tornaste um grande e famoso teólogo, Cristo permanece em ti uma criança. Mesmo que tenhas pensado que teus livros valem menos do que desejavas que fossem, há em nós, em ti como também em mim, um Mozart que, espero, será a nossa salvação. Como o foi no teu sonho, que tanto me comoveu!"
       
     
     

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

 
 
                                                  SEMENTES DE VIDA ETERNA
 
 
      O monge cisterciense norte-americano, Thomaz Merton, num de seus escritos diz que  "na vida de qualquer homem, na terra, cada instante, cada acontecimento, semeia qualquer coisa na alma."
      De fato, assim como o vento leva milhares de sementes aladas, visíveis e invisíveis, também o curso do tempo traz consigo germes de vitalidade espiritual que vêm misteriosamente pousar no espírito e na vontade de homens e de mulheres.
      Muitas dessas sementes definham e perdem-se, porque homens e mulheres nem sempre estão preparados para recebê-las, e elas são sementes que só podem germinar no terreno fértil da liberdade e do desejo.
      Não se deve esquecer que o espírito prisioneiro do seu próprio prazer, e a vontade que está cativa do seu próprio desejo, não podem acolher as sementes de um prazer mais elevado e de um desejo iluminado pelo sobrenatural.
      Como podemos nós  receber as sementes de liberdade, se estamos apaixonados pela escravidão, e como podemos amar o desejo de possuirmos a Deus, se nos encontramos cheios de um desejo diferente e contrário?
      Deus jamais poderá semear em nós a Sua santidade, se nós nos encontramos prisioneiros, enleados em mil correntes de maus desejos, e delas não queremos ser libertados. Isto porque, infelizmente, amamos o nosso cativeiro, fechamo-nos no desejo de coisas que mais nos prendem, e endurecemos nosso coração diante do verdadeiro amor, que é o amor de Deus.
      Se fosse Deus que procurássemos, cada acontecimento e cada instante de nossa vida depositaria em nossa alma sementes fecundas de Sua vida, que algum dia, infalivelmente, haveriam de germinar em prodigiosa e benfazeja colheita.
      Não há dúvida de que isto seria assim, porque é o amor de Deus que nos aquece ao sol, é o amor de Deus que nos envia também a chuva que nos refrigera.
      É o amor de Deus que nos alimenta quando a fome nos assalta. É o amor de Deus que nos manda os dias os dias de inverno, que muitas vezes nos deixam gelados e doentes, como também o causticante verão em que o trabalho  se nos torna pesado, ensopando-nos a roupa com o suor, mas é sobretudo o amor de Deus que faz pairar sobre nosso corpo fatigado o vento leve das planícies e as suaves brisas dos bosques.
      É o Seu amor que estende sobre nossas cabeças a sombra amiga das árvores quando trabalhamos no campo sob o calor causticante do sol, e de repente, à beira da lavoura um rapaz ou uma moça, com um balde de água fresca da fonte.
      É o amor de Deus que nos alegra com o canto dos pássaros e no murmúrio do regato aqui perto, mas é também o amor de Deus que nos ajuda a acolher os Seus mandamentos, porque tudo em nosso viver são sementes até nós trazidas pela Sua vontade soberana.
      Se em todas as realidades da vida considerarmos apenas o calor e o frio, o alimento ou a fome, a doença ou a saúde, a beleza ou o prazer, o êxito ou o fracasso, o bem ou o mal material, que as nossas obras produziram por nossa própria vontade, encontraremos apenas o vácuo, e não a felicidade que almejamos. Não estaremos alimentados, não estaremos saciados.
      Isto porque nosso alimento é a vontade dAquele que nos criou, e criou ao mesmo tempo todas as coisas, a fim de Se entregar a nós por intermédio delas.
      Aceitando toda e qualquer coisa que nos vem, dádiva de Seu amor, acolhemos Sua presença em nossa vida, não porque as coisas são o que deveriam ser, mas porque Deus é quem é, e o Seu amor, através das coisas criadas, quis fazer chegar até nós o dom precioso de Sua alegria, presente na criação.
      Abramos nossa alma, façamos dela um terreno fértil e acolhedor, e as sementes sobrenaturais da Graça e do Amor de Deus frutificarão a cem por um, e quando chegar o tempo da ceifa, acolheremos o Divino Ceifador e a Ele entregaremos alegremente os frutos abundantes do nosso trabalho na vinha do Senhor, como nos diz o salmista.
     


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O GUARANI




                                                           O GUARANI


      Lembro-me muito bem que fechei comovido este belo romance indianista de José de Alencar, que foi a alegria dos meus anos de ginásio. Naqueles anos felizes, sem bombas atômicas, sem satélites artificiais, sem invasão de marcianos, sem batons que não deixam marcas, sem as "viagens" perigosas dos "baseados", sem o malaventurado mensalão, minha imaginação ainda se perdia no labirinto de tantas situações complicadas que encontrava nos livros de aventura.
      Winnetou, de Karl May; o detetive infalível Nick Carter; os tiros certeiros de Búffalo Bill; as intrigas de Arsène Lupin; a barriga e o charme de Charlie Chan, e centenas de outros heróis eram meu passatempo favorito nas horas de folga dos estudos e do trabalho.
      Colocando-me em seus lugares, pratiquei mirabolantes avanturas, arrostando os mais terríveis perigos. Ora disfarçado de "arqueiro verde" em plena Londres, com as minhas flechas de ponta de aço vivia a abalar os nervos do multimilionário e sequestrador de mulheres, Abbe Belamy, em sua imponente mansão no Garre Castle. Outras vezes, já agora Henry Merrivale, detetive particular, tentava decifrar o mistério das dez xícaras de chá colocadas ao lado de um homem baleado dentro de um quarto hermeticamente fechado e com a chave de lado de dentro da portta. Não raro, desta vez travestido de Winnetou, valente cacique dos apaches mescalleros, saía rodeado de guerreiros para enfrentar o gorducho Tangua, nos campos de caça dos kiowas.
      Quase sempre os inimigos índios, ao me verem brandindo o meu bem afiado "tomawhak", tremiam nas bases e se propunham imediatamente a fumar comigo o "calumet" da paz. Minha maior preferência, porém, era mesmo aparecer na pele de "Mão de Ferro", valente explorador do selvagem oeste americano, e sair em perseguição de Santer, assassino da belíssima ínidia "Olhos Negros", desde o deserto do Novo México até as montanhas do Grande Urso.
      Como todos esses livros, também O Guarani foi atirado no porão do desprezo. Com o nascer do primeiros dezesseis fios do bigode adolescente, achei que já era tempo de conhecer algo mais atraente e sensível a respeito da vida, principalmente o relacionamento entre homem e mulher. O romantismo e o idealismo de Alencar não mais me seduziam. Cronin, Maurice Dekobra, Paul Bourget, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Walter Scott e outros semelhantes mereceram minha preferência nos anos de adolescente.
      A verdade é que também estes foram postos de lado mais tarde, quando estranhos pruridos em meu metabolismo me fizeram procurar outro tipo de literatura, e aí tomei conhecimento com o realismo de Júlio Ribeiro, Zola, Balzac, Flaubert, chegando depois até Tólstoi, Dostoievsky, e às Mil e Uma Noites, sem esquecer a incomparável Françoise Sagan.
      Mas eis que agora, forçado a ficar em casa, sob o ataque violento de uma crise de bronquite, me volta às mãos "O Guarani". Tento lê-lo com o mesmo prazer do passado quando não o deixava um instante sequer: em casa, no caminho do ginásio, em plena aula de matemática, que detestava. Nos intervalos das aulas, enquanto os demais colegas trocavam caneladas na quadra de esportes, ou paqueravam as garotas nos bancos do pátios, ou iam espionar as meninas que trocavam as roupas da ginástica, pelas frinchas das portas dos vestiários, eu não fazia nada disso.
      Eu ia era surpreender Cecília no pequeno jardim na casa do "Paquequer", fingindo ser o cavalheiro que lhe oferecia uma flor com a ponta dos dedos, ajoelhado a seus pés.  Ou então, encarnando Peri, nobre guerreiro goitacás e guardião da donzela, eu seguia por entre as brenhas fechadas e espinhentas a pista dos perversos conspiradores, o ex-frade Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões.
      Os vários episódios do "Guarani" empolgavam-me tanto, que me faziam esquecer de tudo mais. Lembro-me que certo dia, no percurso para o ginásio, caminhava devagar, lendo o romance, completamente enlevado e absorto. Sendo ainda um pouco cedo para o início das aulas, sentei-me a um banco da praça para terminar o capítulo mais sensacional:
      Os ferozes índios aimorés, agrupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinza, faziam preparativos para desfechar um ataque decisivo. Preparavam setas inflamáveis para incendiar o castelo de Dom Antônio de Mariz. De repente o herói, Peri, altivo, nobre, radiante de coragem invencível, caiu sobre eles com uma grande espada, sozinho, em face de duzentos selvagens ferozes e sedentos de sangue.
      Ansioso por ver o desfecho da cena sublime e vigorosa, mergulhei decididamente na leitura, totalmente absorto e, quando finalmente dei por mim, as aulas já estavam perdidas e voltei para casa.
      O "Guarani" me submergia num mar de sonhos e de ilusões. A nobreza e a coragem de Peri e de Dom Antônio, o espírito cavalheiresco de Álvaro, a ingenuidade e beleza de Cecília, a paixão violenta de Isabel, tudo no livro como que me inebriava.
      Agora, já muitos anos passados, relendo o livro na minha enfermidade, tento fazê-lo com a gravidade de quem já estudou e passou por outras e diversas experiências de vida. Procuro me tornar menino de doze anos outra vez, para reviver, se possível, todos aqueles sonhos que outrora me embalaram a adolescência.
      E fecho o livro no mesmo ponto em que um dia também o fechei, para pensar no que poderia ter acontecido a Cecília e a Peri, sentados o olho da palmeira, sobre as águas frementes do Rio Paraíba:
      - "A palmeira, arrastada pela torrente impetuosa, fugia... E sumiu-se no horizonte."
 


                                  
                               VOLTAR AO PAI



       Nesta nossa vida terrena, uma coisa é importante acima de tudo mais: "voltar do Pai". Os Evangelhos nos dizem que o Filho veio ao mundo e morreu por nós, ressuscitou e subiu para o Pai. Enviou-nos o Espírito Santo para que nEle e com Ele pudéssemos voltar ao Pai.
       Sim, para que pudéssemos passar completamente para além da névoa que tudo que é transitório, contingente e inconclusivo: voltar ao Eterno, à Fonte, Àquele que conhece, ao Misericordioso, ao Santo, Àquele que é tudo.
 
       Preocupar-nos, procurar algo fora deste objetivo, é loucura e enfermidade, parodiando o apóstolo Paulo.
 
       Voltar ao Pai é o sentido pleno, e o cerne de toda a existência humana.  E é nisso que todos os encargos de nossa videa e todas as necessidades do mundo, dos homens e das mulheres, tomam seu sentido certo e definitivo. Tudo aponta para essa grande e única volta à Fonte, onde tudo teve o seu início.

      Toda a meta que não é fim último, todo o "fim da linha", que podemos ver e planejar como "fim" ou "fins", são simplesmente absurdos, porque estas coisas nem têm um início palpável e seguro. A "volta" de que falo é a volta para além de todos os fins e o início definitivo de todos os inícios.
 
      O "retorno ao Pai" não é um "voltar" no tempo, não é colocar de lado o livro da História, nem reverter o modificar seja lá o que for. Este retorno significa seguir adiante, ir além.  Retroceder pelo mesmo caminho seria vaidade acrescentada a mais vaidade, - renovação do mesmo absurdo em sentido inverso.
 
      Nosso destino  de cristãos, abertos aos desejos do Pai, é seguir para além de tudo, deixar tudo para trás, visando atingir o Fim e encontrar, neste Fim, nosso Princípio, o Princípio sempre novo que nunca terá fim.
 
      Obedecer-lhe em nossa jornada neste mundo, trilhar conscientemente e cheios de esperança o caminho para alcançar Aquele em quem tivemos início, porque Ele é a chave e o fim de toda a nossa existência, porque Ele é também o Princípio de tudo o que somos e que devemos ser.