A "Gazeta do Povo", de Curitiba, publicou tempos atrás foto com a seguinte legenda: -"Pessoas, vacas, cavalos, urubus e cães vadios dividem espaço no lixão do Embocoí."
Alguém, menos prevenido, poderia achar normal semelhante cena, mas um mínimo de percepção da realidade em que vivem vastas parcelas de nosso povo das periferias, marginalizadas e desassistidas pelos poderes públicos, nos atesta que o quadro é tremendo.
Quando os primeiros caminhões da coleta do lixo urbano nem bem acabam de descarregar, eles e elas aparecem ou já estão à espera. Como por encanto, numa imitação trágica das estórias da carochinha, eles e elas vêm, não se sabe bem de onde. Uns "moram" por perto, outros vêm de longe, chegam, encostam carrinhos ou abrem sacos, e começa a disputa: de um lado, seres humanos, ansiosos e tristes; do outro, urubus e cães vadios, famintos...
Os bandos de urubus e de cães ficam à espreita. Descarregados os caminhões, eles avançam sobre o lixo, os enormes caminhões não os assustam. Então aparecem os concorrentes mais perigosos: crianças, jovens, adultos, velhos, todos irmanados na ânsia de colher alguns restos que lhes proporcionem um minguado dinheirinho para as necessidades do dia a dia. Ávidos, começam a procurar e catar. Tudo serve: restos de comida, latas, ferro velho, plástico, papel, latinhas de cerveja, garrafas descartáveis. Qualquer coisa que possam comer ou vender. O espetáculo gratuito da miséria.
Assustando as aves da carniça e os cães, espantando-os, os párias da cidade grande fuçam, como porcos, a imundície. Armados de paus e pedras espantam os cães e urubus que tentam roubar-lhes o pouco que esperam recolher. Quando já conseguiram o suficiente para vender no ferro-velho ou nos depósitos de papel e recicláveis, correm para trocar por míseros reais o que a busca lhes proporcionou. Outros, com menos sorte, depois de seguidas vezes mexer e remexer o grande amontoado de lixo, ficam como que bestificados, sentam-se sobre a sujeira, contemplando-a desiludidos, até que os tratores da Prefeitura venham fazer o seu serviço, espalhando-a e cobrindo-a de terra.
A poucos passos do grande palco onde se representa o mais ignominioso drama da vida real, erguem-se os barracos de mais uma das centenas de invasões de que sofre a metrópole. Das portas, mulheres encarquilhadas, mais pela fome crônica do que pela idade, contemplam seus maridos e filhos na árdua e triste batalha contra urubus e cães vadios.
Nada mais as impressiona. Quem mora em favelas ou em áreas de invasão acostuma-se a assistir a qualquer cena dessas sem se emocionar. Crianças desnudas de ambos os sexos, brigas, palavrões atirados em altas vozes, pragas e imprecações são comuns no linguajar de adultos, adolescentes e crianças. A ingenuidade, a pureza e a delicadeza de sentimentos não existem, desde os mais tenros anos, para aquelas pobres vítimas da sociedade globalizada e egoísta.
Quantas vezes, após uma busca prolongada que resultou infrutífera, uma pequena menina-moça ou um garoto ainda imberbe aceitam o convite de um dos malandros que de longe os observam, e daí a pouco haverá mais dois jovens a perambular pela cidade, nos caminhos da prostituição ou do tráfico de drogas.
Esse é o espetáculo da marginalização, da miséria e da fome, à sombra dos arranha-céus, bem pertinho da cidade grande. Legiões de miseráveis continuarão indo todos os dias para o lixão, crime que pagam por terem nascido na pobreza.
Diante de quadro como este, compreendemos o grito de revolta e de incontida indignação do grande escritor, além de cristão dos bons, que a França nos deu, Léon Bloy:
- "Ah, ricos! Se torcessem vossas roupas de grife, elas haveriam de sangrar. Se espremessem esse automóvel de luxo e vissem como foi adquirido, vocês o achariam feito do pão arrancado à boca dos pobres. Quando recordamos que é preciso que uma criança sofra fome e frio num barraco gelado, para que uma menina cristã e rica desfrute das delícias de uma boa mesa junto à lareira, como nos custa esperarmos a justiça de Deus!
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