quinta-feira, 28 de junho de 2012

A PAIXÃO PELO OSSO


      Donde virá a paixão do cachorro pelo osso?
      Na minha modesta opinião, acho que se oferecermos aos cães de um lado, carne, e do outro um belo e bem limpo osso, eles não têm um segundo de indecisão: largam a carne e agarram o  osso!...
      É só reparar um cachorro qualquer agarrado ao osso... Que sofreguidão! Que fúria! Rosna, de tão feliz que se sente... Rosna, para espantar qualquer intruso que tenha a audácia de querer compartilhar de seu banquete... Tem ciúme da própria sombra, pois lembra outro cão que pretenda dividir com ele um pedaço, por mínimo que seja, de seu festim delicioso...
      Creio que vale como uma profunda meditação olhar, com olhos bem abertos, um cachorro agarrado ao seu osso!
      Ora, direis, chamar cachorro de cachorro, falar do seu agarramento ao osso, me parece que não inclui nada de ofensivo... Mas, qualquer alusão que se faça a uma criatura humana que lembre um cachorro aferrado a seu osso, é atitude condenável. Mas é ou não é o caso de cada um de nós perguntar a si mesmo, no silêncio da reflexão se, em matéria de agarramento, não existe alguma coisa que lembre a cena do agarramento do cão ao seu osso?
      Sem pretender julgar ninguém, pois também eu tenho os meus agarramentos, sempre é bom fazer algumas reflexões a respeito:
      - há ou não agarramento ao dinheiro, que lembra o agarramento ao osso, com todos os pormenores aludidos linhas acima: não deixar ninguém chegar perto; querer o osso apenas para si; rosnar; arreganhar os dentes; mostrar as unhas e, muitas vezes, até morder...
      Às vezes nós, homens ou mulheres, sentimos a tentação de irmos ainda mais longe: não satisfeitos com o osso que já temos preso aos dentes, ainda queremos avançar no osso dos outros...
     - há ou não há agarramento a cargos e funções que lembram o agarramento ao osso?  Muitas pessoas nossas conhecidas se desdobraram, trabalharam bem, não mediram sacrifícios e  conseguiram resultados esplêndidos no seu trabalho; dedicaram ao cargo ocupado o melhor de sua vida...
      Cadê a coragem de largar o osso?!... Não se trata de nada pessoal: querem continuar no posto até morrer, pois se convenceram que é impossível encontrar outro candidato que tenha a mesma experiência, como quem criou tudo e fez o trabalho crescer?... Onde encontrar outra pessoa que tenha a mesma dedicação e competência?...
      E não faltam "amigos" aduladores - ou melhor, mais puxa-sacos que amigos - para dizer e repetir para não largar o osso, que é preciso sacrificar-se, mas não desistir.
      Lembro ao eventual leitor que é muito conveniente que examinemos de vez em quando se nossas amizades não são agarramento ao osso... Será  uma amizade autêntica, ou ao contrário, amizade possessiva, absorvente, ciumenta, rosnante, que mostra dentes e garras a quem quer aproximar-se, como se quisesse tomar-nos o osso?
      Que o leitor não se considere, por favor, ofendido com a comparação, mas me atrevo a propor que, encontrando um cão agarrado ferozmente a um osso, pare, olhe, e faça uma profunda reflexão sobre a própria vida!...

domingo, 24 de junho de 2012

ENVELHECER, SEM VIRAR VINAGRE!



      Eis o fato inelutável: com a entrada do mês de julho, estarei também entrando nos meus setenta e seis anos e meio, e considero que já posso considerar-me dono de uma idade provecta, como se diz por aí.
      Apesar da família não ter bons olhos para esse meu hábito, sou fanático por um bom vinho, e agora, com a velhice chegando a todo vapor, preciso aprender com o vinho a melhorar envelhecendo, e sobretudo a escapar do perigo terrível de, envelhecendo, virar vinagre!...
     Dizem os gerontólogos que é muito importante saber envelhecer. Saber descobrir o encanto (?) de cada idade. Sem dúvida, há limitações que a velhice traz. Mas feliz de quem envelhece como as frutas que amadurecem e não se tornam azedas...
      Feliz de quem envelhece por fora, conservando-se jovem por dentro. Crescendo em compreensão para com tudo e para com todos, caminhando, sempre mais, no amor a Deus e no amor ao próximo.
      Quem conserva acesa a sua chama, quem mantém entusiasmo pelo que faz, quem sente razões para viver, pode ter o rosto cheio de rugas e os cabelos totalmente brancos, esse alguém ainda é jovem!
      Quem não entende a vida, e não descobre razão para viver, e não vibra, não se empolga, pode ter vinte anos, mas já é um velho!
      Adulto que não entende os jovens, que vive dizendo que no seu tempo não era assim, que reclama de tudo e de todos, cava um abismo que o impede de atingir a gente moça, os mais jovens que ele.
      Minha mãe faleceu com mais de noventa anos, mas até quase chegar ao fim de sua jornada, foi sempre confidente e sempre jovem com os seus netos e netas.
      Qualquer que seja a nossa idade, precisamos ter estes pensamentos positivos, como certa vez ouvi do saudoso Dom Hélder Câmara, numa palestra em São Paulo:
      - "O importante não é viver muito, ou viver pouco, mas realizar na vida o plano para o qual Deus, na Sua misericórdia, nos deu o dom da vida. Dizem os jardineiros que há flores, e das mais belas, que a rigor, não vivem mais do que um dia. Mas vivem plenamente, porque realizam o destino de graça, de beleza e de perfume, com que tornam também mais bela a Terra"!
      E eu tomo a liberdade de completar: se começarmos a sentir que os anos nos pesam, e que a mocidade se vai, peçamos a Deus, para nós e para os outros que também se tornam menos jovens, a graça de envelhecer como os vinhos envelhecem - tornando-se melhores   -  e, sobretudo, pedindo a Deus a graça de, envelhecendo, não azedarmos, não virarmos vinagre!...

(Dedico este texto à minha amiga baiana, Clélia, titular do blog "Coração que pulsa", no qual encontrei este projeto de vida: - "Não sei se posso REJUVENECER as pessoas ou o mundo... mas procuro NASCER a cada dia!).

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A VOZ DO POVO

       Nos meus saudosos tempos de magistério em Barbosa Ferraz, interior do Paraná,  os três professores de Português do colégio promovemos entre os pais dos alunos e amigos um concurso sobre "Ditos e expressões populares", com bastante êxito, compensando todos os nossos esforços.
      Relendo hoje o que compilamos na época, cheguei à conclusão de que a maioria quase total dos ditos e expressões mereceria ser comentada, pelo seu conteúdo e originalidade.
      Começo por um que diz assim: "A medida de ter nunca enche." De fato, nunca ninguém acha que já tem demais ou mesmo que já tem bastante. É o caso de a gente comparar o ter com o ser. E até, para ser mais completa a comparação, valeria a pena aproximar: ter, ser e parecer...
      Pensamento que descobrimos voltar muito na cabeça do Povo é o de que  "a água só corre para o mar,"  o que é o mesmo que dizer que só vem dinheiro para quem já é rico, só vem felicidade para quem já é feliz...
      Às vezes a gente se engana. Há pessoas que chegam a causar inveja e, no entanto, só elas e Deus sabem o que sofrem e aguentam, mesmo porque o Povo diz: "A gente vê cara, mas não vê coração".
      O Povo, sabiamente, alerta para o perigo de "querer abarcar o Mundo com as mãos"...  Não que não entenda e não aplauda o esforço para melhor, para subir...
      "A vontade de ganhar tira o medo de perder". Mas este pensamento não apaga o aviso: "A corda, muito esticada, rebenta"...
      E a sabedoria popular tem mais esta: "A paciência vale mais do que a força", ou então esta outra:
"A esperança é a última que morre". 
      O Povo se divide entre otimistas e pessimistas. Se, em certas horas, pensa que "a água só corre para o mar", também sustenta que  "a esperança e a verdade vencem qualquer coração". 
      Tem-se a impressão de que o pessimismo, não raramente, vence o que, em áreas como a nossa, é fácil de entender.
      "Amor, só de Deus e de Mãe".
      "Alegria de pobre é coceira".
      "Além de cair do cavalo, ainda leva coice".
      E o povo ainda não esquece:  "A coisa melhor do Mundo é um dia atrás do outro, com uma noite no meio".  E sabe também que "Água mole em pedra dura tanto bate até que fura".
      Há esta outra, com muita sabedoria: "Uma andorinha,  só, não faz verão", e completa com esta: "A união faz a força".
      Cheia de sabedoria me parece esta outra:  "A instrução é enfeite do rico e riqueza do pobre".
     Técnicos, professores, padres, pastores, blogueiros, nascidos no Brasil ou longe daqui, em países cultos e ricos, lembrem-se: ao lidarmos com o Povo, não devemos nos esquecer um só instante de que se temos o que ensinar  -  é evidente que temos  -  temos sempre (e muito) o que aprender com ele.
      O Povo pode não ter estudo, mas tem experiência, tem vivência prá dar e vender.
      Vive aprendendo na escola do sofrimento e da vida!...
     


quarta-feira, 20 de junho de 2012

PERMITAM-ME FALAR DE MARIA


      Lembro-me que nos meus tempos de criança, o mês de maio, dentro do catolicismo,  era considerado o mês de Maria, mãe de Jesus de Nazaré.  Nas igrejas, nas capelas, e às vezes até  nos lares havia, todas as tardes ou todas as noites, preces e cânticos em louvor de Maria.
      Pode haver a impressão de que tenha diminuído o prestígio de Maria dentro da Igreja. O que me parece é que está havendo o mesmo respeito e o mesmo amor a ela entre os católicos, mas dentro de uma visão mais clara, mais segura e mais cristocêntrica.
      Tem-se cada vez mais presente que Salvador e Mediador da Salvação só existe um, Jesus de Nazaré, o Cristo, o Filho de Deus, que se fez Homem para salvar homens e mulheres deste mundo. Maria continua sendo uma criatura, mesmo sendo mãe de Jesus de Nazaré, mãe de Cristo, mãe de Deus!
      Os católicos a veneram porque ela é a mãe do Filho muito amado, a Quem o Pai nada sabe negar.
      Sabemos qual a maior virtude que devemos apreciar em Maria, fazendo tudo para seguir o exemplo que ela nos deu, exemplo de Fé, de humildade, de prontidão em aceitar a vontade de Deus, de ter ouvido a Palavra de Deus, de a pôr em prática, de vivê-la em toda a sua vida.
      Sei bem quão difícil é para um pobre carregado de dívidas e sem esperança de poder pagá-las, conseguir um fiador. Apesar de pobre, carregado de dívidas, sempre prometendo pagá-las e nunca cumprindo o prometido, apesar de tudo isto, eu tenho a ousadia de pedir a Maria que seja a minha fiadora junto a Deus Pai.
      E digo mais:
      Se dependesse de mim, eu pediria ao Pai que baixasse um Edital ordenando que no início do mês de maio, que os católicos dedicam a Maria, as roseiras do mundo inteiro fizessem abrir suas mais belas e perfumadas rosas em louvor da Rosa Mística, que para mim é a Mãe de Jesus de Nazaré.
      Se dependesse mim, eu faria que todas as estrelas de todo o céu cintilassem com brilho ainda mais puro em louvor da Estrela da Manhã, como chamamos Maria na ladainha rezada em nossas igrejas e capelas.
      Se dependesse de mim, haveria curas de todos os enfermos, em nome da Saúde dos enfermos, que é outro título de louvor que damos à Virgem de Nazaré.
      Se dependesse de mim, eu pediria ao Pai o perdão de todos os pecados cometidos no mundo inteiro, pela intercessão da Mãe de Jesus de Nazaré, que nós católicos aclamamos como Refúgio dos pecadores.
      Se  dependesse de mim, gostaria que ninguém, em todos os tempos e lugares, nunca fosse acometido de dor e de tristeza, em louvor da Causa de Nossa Alegria, outro nome que damos à Senhora.
      Exagero? Superstição?
      Sendo Mãe da Graça Incriada, que é Jesus de Nazaré, ela é Mãe da Divina Graça, e por isso mesmo, nós a invocamos como Mãe de homens e mulheres, a Mãe dos pecadores!
     

terça-feira, 19 de junho de 2012

COISAS QUE GENTE GRANDE NÃO ENTENDE


      Minha nora cismou que meu netinho é quem tinha perdido a chave do cadeado do portão. Exigiu, então, que ele virasse pelo avesso os dois bolsos de sua calça e os dois bolsos de seu blusão.
      Quanta coisa saiu de dentro dos bolsos! Tudo, menos a chave.
      A mãe do menino foi ficando furiosa com a bugiganga com que ele enchia os bolsos. Como é difícil entender coisas de criança!
      Diante dessa bronca da nora, eu, que contemplava a cena, comecei a ter saudades dos meus tempos de criança. Era a mesm coisa, como acontecia agora com o bolso do meu pequeno neto.
      Um carretel vazio. A mãe, que se diz entendida em psicologia, podia lá entender que era um carretel, mas para o moleque era um telefone eletrônico usado na travessia dos desertos?...
      Um pedaço enorme de barbante... Como é que a gente grande podia aceitar que era um simples barbante, e não uma corda mágica para atravessar o rio perto de casa, sem molhar os pés?
      Algumas pedrinhas de tamanhos e cores diferentes: aqui é que a mãe ia mesmo torcer o nariz, sem poder de modo algum acreditar que eram pedaços da Lua, trazidos e oferecidos ao moleque por um astronauta!
      Vendo sempre mais coisas sair de dentro dos bolsos, as coisas mais absurdas e inesperadas, menos a chave do cadeado, a mãe do garoto viu aparecer um guizo, e então perdeu a esportiva:
      - Afinal, uma coisa que eu entendo... Guizo! Você merecia andar de guizo no pescoço, nas mãos, nos pés, seu palhacinho!...
      O moleque ficou triste mas não disse nada. Eu, que estava por perto, quase cheguei a dizer:
      - Vai ver que se trata de guizo mágico, trazido por algum peixe, do fundo do mar... Vai ver que é guizo que espanta a tristeza e traz alegria prá gente...
      Tive vontade de dizer, mas não falei nada. A mãe não ia entender mesmo. É tão difícil gente grande, principalmente mulher, entender as coisas mais simples da vida!
      Ainda me lembro que dos bolsos de meu netinho saíram ainda: um prego meio torto, um pião, um pedaço de papel colorido, um retrato do Ronaldinho Gaúcho...
      A tira de papel estava na cara que era para o papagaio... O pião devia ser o campeão de dança do mundo dos piões... E o prego meio torto? Ora, o prego: mas que mania de querer explicação para tudo?! Por que não deixar o prego para alguma surpresa?... Vai ver que até antes do anoitecer ele vai ser aproveitado uma meia dúzia de vezes...
      Seria o cúmulo da ignorância perguntar a razão da presença do Ronaldinho Gaúcho...
      E eu comecei a refletir: Que paciência as crianças precisam ter com a gente grande!
     

domingo, 17 de junho de 2012

O CRISTÃO E O MUNDO SEM DEUS

            Em português a palavra "mundo" comporta uma grande variedade de sentidos. Na cristandade da Idade Média e em épocas posteriores o conceito de "mundo" era acentuadamente religioso, pois era algo que devia ser renunciado e esquecido pelo crente. Para isto era sempre lembrada a primeira Carta de João (2,15-17), na qual eram os cristãos exortados: - "Não ameis o mundo nem as coisas do mundo: não está nele o amor do Pai, porque todas as coisas do mundo, tais como a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o fausto da vida não vêm do Pai, mas do mundo. E quem faz a vontade de Deus permanece eternamente."
      É muito clara esta advertência, não deixando margem a nenhuma dúvida porque, neste caso, "mundo" é o reino do egoísmo e do pecado. O mundo, assim considerado, "não pode receber o Espírito Santo" (Jo 14,7), porque a paz de Cristo não é um dom semelhante aos dons deste mundo. Com certeza, "mundo", neste sentido, deve ser tomado como uma "criação má", algo puramente material, oposto por sua natureza ao mundo espiritual.
      Infelizmente, esta interpretação derivada das heresias do maniqueísmo e do gnosticismo nos foi imposta durante muito tempo no decorrer da História como uma visão "tenebrosa" do mundo, carente da luz de Cristo e oposta à vontade de Deus. Entretanto, o mundo material, porque criado por Deus, no rigor do termo não pode ser "tenebroso", e nem por sua natureza se opõe a Deus. As trevas do mundo não estão no seu aspecto material, mas unicamente no pecado de homem e mulher, que rejeitaram o amor de Deus e preferiram os manjares terrestres, muitas vezes sob o pretexto de uma religião alienante e mal compreendida. Neste sentido, o mundo "tenebroso" não passa de um mundo sem amor, distante de Cristo, um mundo composto de pessoas enrodilhadas sobre si mesmas, egoístas e sem calor humano.
      Tradicionalmente, a oposição cristã ao "mundo" é uma oposição de fundo teológico, enquanto rejeita o mundo na medida em que confina a liberdade de homem e de mulher numa escravidão a preconceitos e paixões, sumariamente descritos pelo  apóstolo Paulo na sua Carta aos Romanos (1, 18-32).
      Há sem dúvida nenhuma o lado positivo deste quadro. Se o cristão deve permanecer "no mundo, mas não ser do mundo" (Jo 15, 18-19; 17,11), deve contudo permanecer no mundo como testemunha e manifestação de Cristo, que é a "luz do mundo" (Jo 8,12), e que por Sua morte expulsa dele o mal e atrai homens e mulheres para Si.
      Lembremo-nos também que a mais profunda palavra de João a respeito do mundo nos revela que "Deus amou de tal maneira o mundo, que lhe deu o Seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nEle crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3,18).
      O mundo vivido pelo cristão é um mundo que, em muitos e variados aspectos, é de fato um mundo em que está presente o mal, o ódio, a ganância, o egoísmo, a mentira, a frustração e o desespero, mas que, muito mais que isso, tem como sua realidade central e mais íntima as promessas de Deus, no Reinado de Cristo e na Sua obra de redenção.
      A Fé cristã, ao confessar esta verdade central, esta presença salvífica de Cristo Redentor no mundo pecador e sofredor, assume a chave do sentido pleno do homem e da mulher, do mundo e da História, inclusive de todas as injustiças e desumanidades presentes na História.
      Precisamente porque a Fé não se baseia na evidência clara, externa e científica, mas na fidelidade ao Deus das promessas, ela exige de nós um compromisso pessoal com a pessoa de Jesus de Nazaré, que ama o mundo e sua História, que redimiu homem e mulher, e que sustém o mundo e seu destino nas Suas próprias, benfazejas e divinas mãos.  

quinta-feira, 14 de junho de 2012

O HUMANISMO CRISTÃO


      Se bem me lembro (já que participei ativamente dele no MUT - Movimento de União dos Teólogos - e na Frente Nacional do Trabalho, fundada em São Paulo pelo saudoso doutor Mário Carvalho de Jesus e pelo sindicalista Miéle), o ano de 1963 foi um tempo de profunda crise que abalou as estruturas políticas e sociais da vida brasileira.
      Estava nas ruas a campanha pelas "reformas de base" patrocinada pelo presidente João Goulart, pelos sindicatos de trabalhadores, pela juventude universitária vinculada à UNE, além das agitações nos meios campesinos por uma reforma agrária urgente e radical, atiçadas por idéias marxistas, que se infiltraram em vários setores da atividade urbana e rural.
      Neste caldeirão prestes a explodir (como de fato explodiu em 31 de março de 1964), surgiu no convento dos dominicanos em Perdizes, São Paulo, Carlos Josaphat Pinto de Oliveira, um frade dominicano cheio de carismas, e grande orador popular. Fiel às linhas de seu livro "Evangelho e Revolução Social", e liderando um vasto grupo de cristãos ditos "progressistas", fundou o jornal de esquerda mas de inspiração cristã, o "Brasil Urgente", que foi o catalizador de todos quantos lutavam pela justiça social, mas em campos opostos aos dos influenciados pelas idéias marxistas e revolucionárias, então em plena efervescência, sob os auspícios da recente e vitoriosa revolução cubana de Fidel Castro e Che Guevara.
      Eis que explode a "redentora" de 1964, liderada pelos militares, com as tristes e funestas consequências que todos conhecemos, principalmente para aqueles que batalhavam nas ruas pelas urgentes reformas sociais.
      Temerosos da influência de Frei Carlos Josaphat e dos seus seguidores, principalmente no meio universitário, os fautores do golpe militar empastelaram o valoroso "Brasil Urgente" e exilaram Frei Carlos na França. Se quiseram calar a voz profética do frade dominicano, ledo engano dos militares: Frei Carlos logo se tornou um dos mais conhecidos conferencistas nas grandes universidades francesas, de onde fez ecoar por todo o mundo as violações dos direitos humanos no Brasil perpetradas pelos então detentores do poder.
      Além de denunciar as violações dos direitos fundamentais da pessoa humana em sua pátria, Frei Carlos Josaphat, teólogo de gabarito que era, tinha como sua pregação predileta uma firme postura contra uma leitura individualista dos Evangelhos, a defesa de uma renovação urgente e integral da vida humana, incluindo  reforma profunda das instituições eclesiásticas, dentro de uma visão progressiva da História e da Escatologia Cristã,  num núcleo de pensamento a que seus seguidores chamaram de "Humanismo Cristão".
      O protocolo maior desse Humanismo Cristão, que ainda tenho em mãos, foi inspirado em duas frases do Apóstolo Paulo: - "Nós cremos, por isso falamos" (2Cor 4,13), e - "O Evangelho é a salvação para aquele (aquela) que crê" (Rom 1,16).
      Esta seria também a inspiração primeira de nossa vida. Quem professa o Humanismo Cristão crê igualmente na fecundidade social dos Evangelhos, no seu dinamismo criador e restaurador, na sua capacidade de pensar e engendrar mundos novos, principalmente, e sobretudo, quando velhas estruturas que nos sufocam exigem sejam enfrentadas e neutralizadas.
      Dizia Carlos Josaphat nas suas pregações populares, com enorme bom senso e profunda  empatia com seus ouvintes, que a doutrina de Jesus de Nazaré estabelece a união da Terra com o Céu, pois abraça homem e mulher no seu todo, na realidade de seu corpo e de seu espírito, de sua inteligência e de sua vontade, convocando-os a elevar-se das planícies áridas da vida terrena até às alturas da vida eterna.
      Assim o Humanismo Cristão, embora tenha como urgente missão colaborar na santificação pessoal de homens e mulheres deste mundo, é também missão primordial sua preocupar-se, ao mesmo tempo, com as suas necessidades cotidianas, não só no que diz respeito ao seu sustento, mas ainda no que se refere à prosperidade e à civilização humana em seus múltiplos aspectos, dentro das diversas e mutáveis conjunturas históricas.
      Esta preocupação com uma concepção integral do homem e da mulher constitui o núcleo animador do Humanismo Cristão, porque quem o professa crê também, e principalmente, no corolário social da Encarnação Redentora de Jesus de Nazaré, como igualmente não descrê das aspirações de todas as pessoas, bem conscientes de sua dignidade, em lutar por uma civilização solidária, cada qual no seu meio social e nas suas atividades do dia a dia.
      O humanista cristão crê em um sentido providencial para a caminhada histórica da humanidade, crê na dignificação do trabalho, e saúda as oportunidades concretas que sempre se abrem para a promoção e a ascensão do conjunto de homens e mulheres que lutam para a construção de um mundo melhor, mundo de justiça, e de paz.
      Não se esquecendo que aos poucos vai ficando para trás um triste passado de egoísmo e de misérias, herança de uma política e de uma mentalidade calcada no desamor. E crê ainda, com força total, que vai se firmando também uma alvorada de esperança, cujo penhor é o Sangue redentor de Cristo, que valoriza o suor de todos quantos lutam por uma civilização da União, da Paz, da Fraternidade e da Justiça Social, alimentada pela Fé, pela Esperança e pela Caridade.
      Em resumo: para quem professa e vive um autêntico Humanismo Cristão, crer em Jesus Cristo não é um repouso. É apostar tudo pela felicidade de homens e mulheres deste nosso mundo, já que, pelo dom da Graça Divina, todos nós podemos ser co-criadores com Deus.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

A PRECE QUE LIBERTA


     
      Somos convidados a orar, orar sempre, em todos os instantes de nossa vida. Mas somos também convidados a fazer que nossa prece não seja uma palavra que divide, pois se há quem creia na prece e nela sempre se apóie, há também muitos para quem a prece é já um capítulo superado.
      O fato é que todos nós, de uma maneira ou de outra, fazemos nossas preces, no sentido de manifestarmos nossos desejos mais íntimos e mais profundos, seja a Deus, seja a quem nos rodeia.
      Que prece poderá fazer em comum a família dos que creem na Fé, na Esperança e na Caridade, na crença sincera de que estas três virtudes teologais sejam a alavanca que conduza a humanidade  e o mundo ao encontro da justiça, da paz e da fraternidade?
      Que os nossos olhos se abram e comecemos pela urgência de superar o próprio egoísmo, sair de nós mesmos e nos dedicarmos, ainda que às custas de quaisquer sacrifícios pessoais, à luta não violenta por uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais humana!
      Que não deixemos para amanhã: comecemos hoje, agora, sem arrebatamentos passageiros, com decisão, firmeza e pertinácia!
       Que olhemos em volta para descobrir irmãos e irmãs, marcados pela mesma vocação de dizer adeus ao comodismo e de marcar encontro com todos os que têm fome de verdade e juraram dedicar a vida tentando abrir através da justiça e do amor, caminhos para a paz familiar e social.
       Que não percamos tempo em questiúnculas paroquiais, em divisões confessionais, em discutir lideranças de bairro ou de organizações; que o importante para nós seja unir-nos e caminhar, firmes, para o nosso objetivo, lembrados de que o tempo corre contra nós.
      Que demos o melhor de nós mesmos à  missão, através da qual, assim esperamos, a pressão moral libertadora da sociedade organizada se tornará capaz de atingir as indispensáveis mudanças de estruturas, principalmente na política e na administração da coisa pública, acabando com essa corrupção desenfreada que vai solapando a base de nossa democracia.
      Que sejamos capazes do máximo de firmeza e de rigor, sem cair no ódio,  no combate implacável a todo deslize funcional de nossos servidores públicos, e principalmente sem cair, com eles, na convivência com o mal.
      Façamos nossa a prece de Francisco de Assis, e seja ideal de nossa vida concretizá-la em todos os nossos atos do dia a dia:

      Senhor, fazei de mim um instrumento de Vossa paz¹
      Onde há ódio, que eu traga o amor.
      Onde há ofesnsa, que eu traga o perdão.
      Onde há discórdia, que eu traga a união.
      Onde há erro, que eu traga a verdade.
      Onde há dúvida, que eu traga a fé.
      Onde há desespero, que eu traga a esperança.
      Onde há trevas, que eu traga a luz.
      Onde há tristeza, que eu traga a alegria.
      Ó Mestre, possa eu preferir
      Consolar, que ser consolado.
      Compreender, que ser compreendido.
      Amar, que ser amado,
      Pois:
      É dando que se recebe;
      É no auto-esquecimento que se pode ser encontrado;
      É perdoando que se é perdoado;
      É morrendo, que se ressuscita para a Vida Eterna!

segunda-feira, 11 de junho de 2012

PARTIR... CAMINHAR...



      Meu último texto foi "Caminhar pelos caminhos da vida". Este, com outras palavras, continua o mesmo assunto: Partir... Caminhar... Pelas estradas da vida. Em busca da Casa do Pai.
      Partir é, antes de tudo, sair de si mesmo. Romper a casca de egoísmo que tende a aprisionar-nos dentro do próprio e exclusivo eu.
      Partir é não rodar, permanentemente, em torno de si, numa atitude de quem, na prática, se considera o centro do Mundo e da vida.
      Partir é não rodar apenas em volta dos problemas do meio a que pertencemos. Por mais que esse meio em que vivemos nos seja prazeroso, maior é a humanidade que nos rodeia e que temos a obrigação de servir.
      Partir, mais do que devorar estradas, cruzar mares ou atingir velocidades supersônicas, é abrir-se aos outros, ao nosso próximo, descobri-lo, ir-lhe ao encontro.
      Partir é abrir-se às idéias, inclusive contrárias às próprias, demonstrar fôlego de bom andarilho, de bom caminheiro. Feliz de quem entende e vive este pensamento que encontrei num livro do saudoso Dom Hélder Câmara, dos meus tempos de estudante de teologia: -"Se discordas de mim, tu me enriqueces."
      Ter ao próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda sempre, para começo de conversa não é ter um companheiro de jornada mas, sim, uma sombra de si mesmo. Desde que a eventual discordância não seja sistemática nem proposital, que seja fruto de visão diferente da realidade, a partir de ângulos novos de conhecimento, ela constitui de fato um enriquecimento.
      É possível partir e caminhar sozinho. Mas o bom viajante, o bom peregrino, sabe que a grande caminhada é a própria vida, e esta supõe e exige companheiros. Companheiro, etimologicamente, diz-nos o dicionário, é quem come o mesmo pão, em comunidade.
      Feliz de quem se sente em perene caminhada e de quem vê no próximo um eventual e desejável companheiro de jornada.
      O bom caminheiro pelas estradas da vida preocupa-se com os companheiros desencorajados, sem ânimo, sem esperança de chegar ao fim da caminhada. Adivinha o instante em que esse companheiro desanima e se encontra a um palmo da desistência. Conforta-o onde ele se encontra. Deixa que desabafe e, com inteligência, com habilidade e, sobretudo com amor, ajuda-o a recobrar ânimo e voltar a ter gosto na caminhada.
      Partir por partir, caminhar por caminhar não é ainda verdadeiramente caminhar.
      Caminhar é partir à procura de metas, é prever um fim, uma chegada, um desembarque prazeroso.
      Lembremo-nos que há caminhada e caminhada.
      Para os que buscam um objetivo, uma meta a alcançar, um alvo a atingir, partir, caminhar significa mover-se e ajudar muitos outros a se moverem também, na procura de tudo fazer para colaborar na construça de um mundo mais justo e mais humano, para si e para os companheiros de jornada.
      Partir... caminhar... Mas à procura de quem se transviou, se perdeu nos caminhos tortuosos da vida, para mostrar-lhe a estrada certa que deve palmilhar, para mostrar-lhe que toda estrada bem palmilhada leva definitivamente, sem erros ou desvios, à Casa do Pai!
  

domingo, 10 de junho de 2012

CAMINHAR PELOS CAMINHOS DA VIDA


      É bom caminhar. E eu o faço diariamente, desde manhãzinha. Saio de casa bem cedo para buscar o pão para o café. E procuro, no bairro, a padaria mais distante, justamente a pretexto de caminhar. Utilizo pouco os ônibus do transporte coletivo. Só quando tenho urgência para chegar ao meu destino é que os utilizo.
      Com isso, cheguei à conclusão de que caminhar é expressão tão profunda e tão bela, que não se aplica apenas à marcha que nossos pés realizam, pelos caminhos da vida, pelas ruas da cidade, ou estradas a fora... Se caminhar fosse apenas isso, já seria muito proveitoso.
      Gosto de percorrer as ruas do bairro, já conheço todo o Tingui, o bairro onde moro.  Adoro caminhar pela Avenida Erasto Gaertner do começo ao fim, não me importando com o barulho e a poluição dos ônibus, caminhões e carros que a tornam um verdadeiro carrossel desordenado. Gosto mais ainda quando caminho por ela à noite ou de manhã, quer esteja ela cheia de gente, ou quer esteja quase vazia, o que é difícil de acontecer.
     Gosto de percorrer estradas, sobretudo quando nelas há árvores, muitas árvores, sombras acolhedoras, às vezes até cantos de passarinhos, coisa rara no tumulto da Capital.
      Hoje, não sei se porque à noite sonhei com minha querida filha Raquel, recentemente falecida, mas o fato é que me levantei de manhãzinha pensando nas caminhadas que se dizem espirituais. Caminhar, sinônimo  de não parar, não se acomodar, mas avançar sempre, progredir nas caminhadas da Fé, da Esperança, do Amor.
      Caminhar na compreensão humana, fugindo de qualquer conflito com meus irmãos de caminhada. Em lugar de apressar-me em julgá-los ou condená-los, entendê-los sempre mais, pois cada criatura de Deus é única e insubstituível.
      Caminhar sobretudo na capacidade de ouvir. Quanto falo, na maioria das vezes, inutilmente! Como tenho dificuldades em dar a vez aos outros, aos que me circundam, aos que desejo que aceitem minhas opiniões, que considero as melhores do mundo!
      Caminhar, sobretudo, na capacidade de dialogar. Dialogar não é fazer de conta que se escuta os outros, e já trazer minhas conclusões prontas e definitivas.
      Dialogar é pesar e prezar os argumentos válidos que os companheiros de jornada me apresentam. Saber vencer e, principalmente, saber perder.
      Muito melhor do que vencer sempre, é conseguir unir-nos com quem discutimos, para que, juntos, consigamos ver mais dentro da realidade e ir mais longe, do que ficando isolados no meio do caminho...
      Caminhar também na compreensão da natureza: em lugar de caçoar de quem fala em ouvir o silêncio das coisas; em lugar de achar cafona e pueril a alegria dos que amam ouvir o farfalhar das árvores, o murmúrio das fontes, a luz das estrelas. o canto dos pássaros, a sinfonia da chuva sobre os telhados.
      Saber que a Natureza, obra-prima de Deus, tem vozes. Nós é que, com os nossos barulhos inúteis, não temos as antenas necessárias para entender as pedras do calçamento, as árvores, os pombos que ciscam na grama verde dos jardins.
      Principalmente, caminhar na paciência consigo mesmo. É orgulho ficar sem entender que também nós estamos ameaçados de cair... Ter paciência consigo não quer dizer deixar de lutar, para não cair. Apenas que somos fracos, pecadores, e sujeitos também ao mal.
      Caminhar na confiança da Graça de Deus e no amor do próximo. É triste e malsão viver desconfiando de tudo e de todos.
       Bom mesmo é caminhar. Aproveitar a vida que Deus na Sua misericórdia nos concedeu. Sobretudo, ganhar companheiros e companheiras na caminhada.
      Caminhar sempre, mas sem perder o rumo, sabendo que a meta final de nossa caminhada é a Casa do Pai!       
       


sexta-feira, 8 de junho de 2012

ECUMENISMO... QUE BICHO É ESSE?


     
      Até tempos atrás, antes do Concílio Vaticano II, em certos círculos integristas do catolicismo  era heresia falar em ecumenismo. Mas, nos últimos tempos, muitos homens e mulheres de todas as partes do mundo sentiram o impulso da Graça para restaurar a unidade de todos os cristãos. Esse movimento chama-se "movimento ecumênico".
      Engajadas nesse movimento, estão várias igrejas cristãs, como a Católica, a Ortodoxa Oriental, a Luterana, a Anglicana e a Copta. Deseja-se uma Igreja de Deus una e visível, verdadeiramente universal e enviada ao mundo inteiro.
      Trata-se, sobretudo, da unidade na Fé em Cristo e nos sacramentos, e não de uma uniformização da disciplina particular e dos ritos de cada Igreja. Homens influentes dentro da Igreja Católica temiam que tal movimento de abertura para as outras confissões pudesse abalar a certeza das verdades para ela incontestáveis, mesclando-se com teorias e sentimentalismos vagos.
      Muitos cristãos realmente não estavam preparados para o diálogo interconfessional, porque até teólogos de gabarito pretendiam construir uma Igreja à base de manuais de teologia, cujo conteúdo, muitas vezes, mais parecia acrobacia do intelecto humano, do que acolhimento da revelação divina.
      No Concílio Vaticano II os padres conciliares, felizmente, e certamente inspirados pela Graça de Deus, se distanciaram dessa orientação malsã e quiseram uma teologia viva, para os tempos de hoje, quiseram uma teologia orientada para os irmãos separados e para os homens e mulheres do mundo inteiro. Com efeito, a Igreja de Cristo deve estar a serviço de todos, indistintamente.
      Que culpa têm os milhões de homens e mulheres nascidos em comunidades separadas? Acaso  apenas os católicos, só porque nasceram em famílias tradicionalmente católicas, já têm o céu e a vida eterna garantidos?
      Somente um catolicismo por herança formalista ou integrista poderá temer a abertura consciente para o outro. O Cristianismo autêntico, voltado para o amanhã, será com certeza um Cristianismo por opção, à base da Fé pessoal, e não temerá encetar o difícil e longo caminho rumo à unidade cristã.
     Neste sentido, o movimento ecumênico não pretende fazer uma onda de sensacionalismo superficial, ocultando ou silenciando as graves dificuldades que separam os cristãos, também em matéria de doutrina ou de dogma.
      A sinceridade e a fidelidade à mensagem evangélica, igualmente, nos proibem reduzir tudo a uma forma simplista de amor fraterno, ou a construção de uma superigreja. O diálogo com o irmão separado pressupõe que ele seja tomado a sério, também naquilo que nos separa dele em matéria de dogma, de sempre reexaminarmos nossa própria posição à luz da revelação de Deus.
      Todo diálogo leal pressupõe uma auto-renovação, pois o Espírito Santo não é monopólio de determinada instituição, nem permite o controle de Sua ação. Ele sopra onde e quando quer. Nossa tarefa é abrir-nos à Sua inspiração, e não lhe construir obstáculos.
      Jesus Cristo quer que Seu povo cresça sob a ação do Espírito Santo, através da fiel pregação do Evangelho e da administração dos sacramentos, realizando a comunhão, na unidade. O centro de toda a profissão da Fé cristã é Jesus Cristo, no qual Deus assumiu toda a humanidade na obra da redenção que, por sua vez, pressupõe também a obra do Pai e exige a obra do Espírito Santo como consequência.
      O Espírito Santo, desde pentecostes, vivifica e dirige a Igreja de Jesus Cristo, na qual prolonga Sua presença histórica na Fé da comunidade a serviço da salvação do homem e da mulher. Por isso, a inquietação generalizada entre os cristãos de todo o mundo de hoje é santa e salutar, pois reflete a ação do Divino Paráclito, que nos quer purificar na Fé em Jesus Cristo, no qual nos encontramos, todos, unidos  com o Pai.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A "REVOLUÇÃO TEMPORAL" PARA A "SALVAÇÃO ETERNA"



            O poeta e ensaísta francês Charles Péguy dizia numa de suas crônicas que "é necessário fazer uma revolução temporal" para a "salvação eterna" da humanidade. Não é possível deixar homens, mulheres e crianças no "inferno da miséria". É necessário fazê-los transpor o limiar que os separa da pobreza, que é em si "um purgatório". E citava um texto evangélico:
      - "Aquele que diz amar a Deus, e que não ama seu irmão, é um mentiroso; porque, como pode ele dizer que ama Deus, que ele não vê, se não ama seu irmão, a quem vê?"
      Estas palavras são de uma simplicidade esmagadora. Impossível alguém furtar-se a elas. O cristão deve estar presente em todos os esforços da cidade temporal, quando esta procura edificar um mundo mais humano. Não pode jamais resignar-se "com o sofrimento dos outros".
      Ele sabe, melhor do que ninguém, que a causa fundamental do sofrimento no universo, é o pecado. Não apenas o pecado de Adão, que introduziu a morte no mundo, mas os seus próprios pecados cotidianos. Ele sabe que as guerras, as revoluções sociais, os levantes, as revoltas de povos desesperados, provêm dos pecados coletivos das nações: regiões onde reina uma espécie de feudalismo, fundamentado na corrupção principalmente política, que dá a alguns a posse privilegiada de imensos recursos desviados da coletividade, são terras de injustiça que clamam aos céus.
      O pecado das nações é também o dos indivíduos. Nossos maus pensamentos e nossas más ações envenenam o ar. A cadeia dos nossos atos desdobra-se até ao infinito. Nós próprios somos já vítimas, antes de por nossa vez nos convertermos também em carrascos e pestíferos.
      No livro de George Gheorgiu, escritor romeno que acabo de ler, no seu impressionante romance A Vigésima Quinta Hora, o mal estendeu-se às dimensões do globo, a ponto de ninguém poder dizer onde está a raiz envenenada que seria preciso arrancar; e contudo esse mal vem da estupidez e da maldade de homens e de mulheres. A maldade de homens e de mulheres contra outros homens e mulheres. Contra semelhante peste todos, indistintamente, deveriam unir-se.
      O cristão consciente sabe melhor do que ninguém até que ponto é responsável por ela. Até que ponto também, se ele vivesse a sua religião com autêntica santidade, o mundo se tornaria melhor. O exemplo de santos como Francisco de Assis, Vicente de Paula e Terezinha do Menino Jesus assim o mostra. Suas vidas permitem entrever onde pode chegar a Graça tomada a sério; ela salva a alma, mas também salva o corpo. Os milagres operados pelos santos, através da Graça de Deus, são tão importantes para a salvação do mundo, quanto as reformas sociais mais urgentes.
      É necessário que a santidade se encarne nas estruturas sociais, políticas, judiciais e econômicas. Aqui principia o drama. A Igreja, que é santa na sua estrutura divina, é também humana, porque está nas mãos de homens que precisam ser cotidianamente resgatados de seus pecados, que a salvação do mundo redimiu. Embora transcendente no tempo, pela sua essencial mensagem de ressurreição, a Igreja deve também esforçar-se por cristianizar as formas sucessivas que revestem as estruturas humanas.
      Muito grave é a tentação de nos instalarmos num estado de coisas estabelecido há certo tempo. Quanto mais perigosa ainda a tentação de nos servirmos de meios temporais para obrigar o mundo a proteger a Igreja, ou de utilizar meios espirituais com o fim de ser obtido um proveito temporal. A "cristandade" da Idade Média foi uma coisa bela. Mas que perigo para os cristãos de hoje sonhar com a sua restauração!
      A Igreja deve "sujar as mãos"; ela deve viver no mundo, porém sem ser do mundo. O que a humanidade pede aos cristãos é uma religião pura de toda a ligação terrestre malsã; uma presença leal nos esforços sociais e políticos. Os cristãos devem mais do que nunca testemunhar que a sua Fé não é uma ideologia, um mito social político ou econômico.
      Os cristãos não devem misturar suas esperanças do além, com seus esforços temporais. Um Cristianismo baseado na esperança pascal da ressurreição, numa alegria de ressuscitado, tal deve ser o seu testemunho: uma colaboração real com todas as forças de justiça deste mundo, tal é o seu dever concreto.
      Os cristãos têm também  "encontros" na Terra. Direi mesmo que os seus únicos "encontros" são aqui, porque é no amor aos homens e mulheres que eles praticam o amor de Deus. Sua Fé neste ponto é muito mais exigente ainda que a "religião" dos "sem Deus", porque não lhes reclama uma filosofia puramente humana, mas uma prova de amor sobrenatural.
      Quando os cristãos trabalham para o aperfeiçoamento da vida social, é necessário que transpareça em seu amor o amor de Deus, aquele amor que Jesus de Nazaré proclamou quando deu ao mundo a mensagem das Bem-aventuranças.
      Se, materialmente, os seus gestos são os mesmos, a luz que os ilumina é sobrenatural. Se o mundo visse que o amor dos cristãos pelo próximo, que o seu sacrifício pelos homens e mulheres salva mais profundamente os seus irmãos humanos, sem dúvida se volveria com melhor vontade para a fonte desse amor, que é a mensagem pascal de Jesus, o Cristo de Deus.
      Termino, parodiando o poeta e ensaísta francês, Charles Péguy, afirmando que a revolução temporal e a salvação devem realizar-se simultaneamente.
      Ora ET labora - reze E trabalhe -  dizia o monge São Bento.
      É preciso lutar, como se tudo dependesse de nós. Mas também pôr-se de joelhos, como se tudo dependesse de Deus.

terça-feira, 5 de junho de 2012

O MISTÉRIO DA PALAVRA DE DEUS


      No mundo secularizado de hoje, muitos homens e mulheres procuram a palavra de Deus.  Mas onde encontrá-la? Sabemos que outrora Deus falou aos patriarcas e profetas, que a própria criação do mundo é um ato da palavra de Deus, que disse e tudo se fez. E, na plenitude dos tempos, Deus falou de novo na pessoa do Verbo, Jesus de Nazaré.
      As palavras de Deus, hoje, chegam até nós através das Sagradas Escrituras. Mas, para evitar um biblicismo simplista, é bom refletirmos um pouco sobre a transmissão da palavra de Deus, pois esta palavra sujeita-se a todo um processo com dimensões humanas.
      Nós não ouvimos a palavra diretamente da boca de Deus, ou da boca de Jesus Cristo. Entre nós e o Cristo de Deus há uma longa história, e esta história envolve a palavra de Deus com uma série de problemas. Sabemos que Jesus de Nazaré não deixou nenhuma palavra escrita. Os evangelhos, tais quais os conhecemos hoje, foram redigidos depois de muitos anos após a ascensão de Cristo aos céus.
      Jesus de Nazaré falava em língua aramaica. Nós, porém, só conhecemos suas palavras através dos originais gregos. As palavras e obras do Senhor foram colecionadas por escrito na Igreja primitiva. Durante longos séculos passaram de geração em geração em manuscritos. E as cópias chegadas até nós apresentam um número enorme de variantes, acréscimos e correções. Assim, hoje é praticamente impossível reconstruir a palavra original de Jesus, tal qual nos falou outrora. Além disso, parte dos redatores dos evangelhos não foram testemunhas oculares da vida de Jesus.
      A palavra de Jesus, desde logo, foi integrada na vida da Igreja, e esse fato nós o chamamos de tradição. Os evangelhos serviram-se dessa tradição para descrever-nos a vida e a obra de Jesus.
      O evangelista Lucas descreve o caminho dessa tradição até chegar ao evangelho escrito, distinguindo, por assim dizer, três etapas:
      1 - as testemunhas oculares: as pessoas "que desde o começo foram testemunhas oculares e ministros da palavra" fundamentam a tradição. São os discípulos do Senhor, particularmente os apóstolos. Eles pregaram o evangelho como fonte de toda a verdade salvífica.
      2 - Lucas refere-se a uma segunda etapa: "Muitos tentaram ordenar a narração daquelas coisas que se realizaram entre nós."  Portanto, antes de Lucas escrever o seu evangelho, outros já haviam tentado fazer o mesmo. E essas tentativas certamente serviram de fonte para o seu trabalho futuro.
      3 - Numa terceira etapa, diz Lucas: "E assim também eu me decidi a reunir e ordenar tudo por escrito."   Parece que a tarefa do evangelista é de selecionar ordenadamente o material já existente. Os evangelistas orientam-se nesta seleção, também em vista da comunidade a que se dirigem. Lucas dedica seu evangelho a um cristão chamado Teófilo!
      Os evangelhos, já na sua origem, apresentam um caráter eminentemente querigmático. Apresentam-se a nós como um e mesmo evangelho, legado a nós por quatro testemunhas diferentes. E se comparamos os quatro evangelhos, podemos ver que apesar de todas as possíveis divergências, há também uma grande unidade nas narrativas dos quatro evangelistas, Marcos, Mateus, Lucas e João.
      Quando hoje tomamos uma Bíblia nas mãos, sempre corremos dois perigos: ou acentuamos demais a objetividade da palavra de Deus, ou tendemos a diluí-la numa mera experiência subjetiva. A objetividade da palavra de Deus, testemunhada pelos evangelistas, em si é indiscutível. Fundamenta-se na historicidade da própria revelação: Jesus Cristo aparece na história como o Verbo do Pai, como o apóstolo enviado pelo Pai. Mas aparece na carne humana. De semelhante modo, as palavras de Cristo chegam até nós no testemunho histórico dos apóstolos e discípulos, o qual para nós se tornou um momento constitutivo da própria revelação. 
      Quando lemos a Bíblia, sempre devemos ter consciência de que, como Cristo chegou a nós na carne humana de Jesus de Nazaré,  tão misteriosamente, também sua palavra se oculta na palavra humana, para chegar a nós. Às vezes temos a impressão de que ela está tão escondida que só a Fé poderá ouvi-la.
      E a Fé sempre poderá ouvi-la na Igreja, pois ela é vivificada sempre pelo Espírito do Senhor!

     

domingo, 3 de junho de 2012

O PROTESTANTISMO, AS BOAS OBRAS E EU


      O gênio religioso da pretensa Reforma Protestante (eu escrevi "pretensa" porque a autêntica reforma religiosa não foi a realizada pelo protestantismo do século XVI, mas a realizada pelo Concílio Vaticano II no século XX),  a meu ver, sempre esteve em luta com o problema da justificação, em toda a sua profundidade e mistério.
      O grande problema cristão é a conversão de homem e mulher e sua restauração à Graça de Deus em Cristo. E essa questão, em sua forma mais simples, é a conversão dos maus e pecadores a Cristo. Mas o protestantismo, com Lutero,  levantou essa mesma questão em sua forma mais radical com a pergunta: e quanto à conversão muito mais difícil e problemática dos piedosos e dos bons?
      Esta pergunta tem muita razão de ser: é relativamente fácil converter o pecador, mas os bons frequentemente são inconvertíveis, simplesmente porque não veem nenhuma necessidade de conversão.
      Assim, o gênio do protestantismo focalizou, desde o início, as ambiguidades contidas no "ser bom" e "ser salvo" ou "pertencer a Cristo."
      Com efeito, converter-se a Cristo não é apenas converter-se de hábitos maus a hábitos bons. É ser nova criatura, tornando-se um homem ou uma mulher inteiramente novos em Cristo e em Seu Espírito.
      Evidentemente, as obras e os hábitos do homem e da mulher novos devem corresponder à sua maneira de ser. Nada há de não católico nisso, muito pelo contrário. Contudo, as perspectivas católicas, ao insistir nas boas obras, levam por vezes a negligenciar o novo ser, isto é, a vida nova em Cristo, a vida no Espírito.
      E quando o protestantismo é infiel a seu dom, começa por diminuir mesmo o "novo ser" e a profundeza radical da conversão, por dar ênfase à pura Graça e ao dom do perdão de Cristo. (Por isso, permanecemos essencialmente maus). Ou então mais tarde, esquecendo a seriedade da necessidade de converter os bons, cai na autocomplacência satisfeita de uma bondade um tanto superficial, tal como uma cordialidade "social", um companheirismo do aperto de mão, do testemunho tagarela de banalidades morais, e semelhantes, quase sempre num biblicismo vazio e inconsequente. (Nisso, é claro, os protestantes são muitas vezes ultrapassados pelas frivolidades mais vulgares dos "bons católicos".)
       É aqui que a "sola fides" - só a Fé -  tão querida dos protestantes, pode dar provas de ser perigosa, pois a Fé que nos justifica não é uma Fé qualquer, ou mesmo uma Fé que se sente justificada por si mesma. Por fim, uma Fé insuficiente não é Fé em Cristo e obediência à Sua palavra, mas apenas questão de crer que cremos porque somos aceitos aos olhos de outros crentes como nós.
      O que importa então, nesse caso, seria  cultivar essa  qualidade de aceitação num meio sócio-religioso e, assim, mesmo obras objetivamente injustas podem ser tomadas por virtuosas e cristãs, uma vez que são aprovadas pelos que, no lugar, são considerados  "bons"... Daí, o grande problema é a salvação daqueles que, sendo bons, pensam não ter mais necessidade de salvação, e imaginam que sua urgente tarefa é tornar, muitos outros, "bons" como eles!
      Os que são fiéis à graça originária do protestantismo são precisamente os que veem toda a profundeza, como Lutero viu, que a "bondade" dos bons pode, em realidade, ser o maior desastre religioso para uma comunidade cristã, e que o problema crucial é a conversão dos bons a Cristo.
      Como católico que sou, confesso minha firme adesão, é claro, ao que minha Igreja ensina sobre a Justificação e a Graça. Ninguém pode ser justificado por uma Fé que não realiza as obras do amor, pois o amor é o testemunho e a evidência do "novo ser" em Cristo. Mas precisamente esse amor é, em primeiro lugar, obra de Cristo em mim, não simplesmente algo que tem origem em minha vontade, e é em seguida aprovado e recompensado por Deus.
      É a Fé que abre meu coração a Cristo e a Seu Espírito, para que Ele possa trabalhar em mim. Nenhuma boa obra minha pode receber o nome de "amor", no sentido cristão, se não vem de Cristo. Ora, os "bons" são tentados a crer na sua própria bondade e capacidade de amar. Enquanto isso, aquele ou aquela, que compreende a sua própria pobreza e seu nada, está muito mais apto ou apta a se entregar inteiramente ao dom do amor que, ele e ela sabem, não pode vir de algo de dentro deles, mas unicamente da misericórdia de Deus.
      É com isso na mente que é preciso considerar as ambiguidades que há em "fazer o bem", sabendo que, quando alguém está firmemente convencido da sua própria correção e bondade, pode, sem pestanejar, perpetrar o mais espantoso mal. Afinal, foram os bons, os corretos, os perfeitos cumpridores da Lei, que mataram na cruz o inocente Jesus de Nazaré.
      E mais tarde, em época de Cristandade, e em nome outra vez de Jesus de Nazaré, esses mesmos "bons"  sacrificaram, nas fogueiras "purificadoras" da Inquisição, milhares de crentes, considerados não tão bons como os "bons" que os sacrificaram.
      Seria isto o que muitos chamam de "ironia da história"?
    (PS: dedico esta matéria a meu filho Carlos porque, tenho certeza, ele não se enquadra em nenhuma das definições de "bom"  contidas no texto).