quarta-feira, 26 de novembro de 2014

SONHOS DE UMA TARDE DE VERÃO



          Ele a encontrou à sombra de florido flamboyant, no jardim da cidadezinha. Não sei se esse encontro lhe trouxe alguma transformação para o futuro. O que posso afirmar, com certeza, é que nos rápidos momentos passados juntos, ela lhe proporcionou instantes de indizível felicidade.
 
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          Jovem camponês, filho de pequeno proprietário rural que teve seu sítio leiloado para cobrir dívidas de financiamento bancário, ao rapaz não sobrou outra alternativa a não ser deixar a enxada e o arado e vir tentar a sorte na cidade grande. Chegou há três semanas, com algum dinheiro no bolso de brim barato e um incêndio de boas intenções na cabeça.
          As avenidas rumorosas, a agitação poliforme, o trânsito desenfreado, o imprevisto e o inesperado assaltando-o a cada esquina, os odores diferentes, as roupas desinibidas e insinuantes das mulheres - coisa que não existia na roça - o maravilhoso das vitrines e dos logradouros urbanos, a cidade inteira alucina-o numa alegria deslumbrada.
          Na sua ingenuidade de recém-chegado, julga fáceis todas as coisas, abertos à sua frente todos os caminhos. Nesta ilusão perigosa, procura emprego com as mais fagueiras esperanças.
          Vê, porém, frustrados todos os seus anseios. Ou porque sua aparência não fosse lá bastante convidativa, ou porque a vida está mesmo apertada, o certo é que não conseguiu nenhuma colocação.
          Assim correm as semanas, as refeições vão-se encolhendo até se transformarem em míseros sanduíches de pão com mortadela, enquanto a cara da dona da pensão vai-se fechando a cada dia que passa. Situação trágica!
          Nesse dia o moço resolve dar o milésimo giro pela zona comercial, a ver se tem mais sorte desta vez. Aventura-se por um supermercado. Fala com o gerente. Oferece os seus serviços. O gerente não o conhece. O candidato não tem referências. Ademais, o salário mínimo subiu, os consumidores retraíram-se, a recessão bate à porta, a crise na Argentina assusta todo mundo: é necessário cortar na carne e, com isso, irá para a rua meia dúzia de funcionários. Voltasse outro dia. Talvez até lá surgisse alguma novidade.
          Desengano maldito!
          O pobre atira-se a todas as casas comerciais. Todas elas têm gente demais. Todas dizem que a tal política econômica do Governo acirrou a concorrência com os produtos importados da China, estão operando no vermelho, e que por isso são obrigados a comprimir despesas, não precisam de mais vendedores.
          Oficinas, bares, lojas de confecções, postos de gasolina, até mesmo um motel, tudo a mesma desculpa: não há vagas.
          E pelas calçadas rescaldantes, frustrado, arrependido de ter vindo para a cidade, caminha o infeliz na sua lentidão desiludida, coração opresso, até que cansado da busca infrutífera, se atira nos braços acolhedores de um banco de jardim.
          Foi então que ela chegou.
          E chegou faceira, cativante, ostentando suas graças e donaires na sedução irresistível das formas bem feitas. Como era linda! Encantadora mesmo! Se o rapaz estivesse a par da linguagem das novelas da televisão, diria que ela estava tentadora. Não conhecia essa linguagem, por isso se limitou a contemplá-la, embevecido, em muda admiração, pois nunca na sua vida ele viu uma beleza igual.
          E a borboleta - pois era uma linda borboleta, dessas grandes e douradas - atraída pelo perfume de rubicunda rosa, voava e tornava a voar, descompromissada, fazendo brilhar ao sol as suas asas de cetim. O divorciado da sorte deixa-se estar a namorá-la, na plácida modorra de um faquir. E então, aos seus olhos incrédulos, por entre as translúcidas asas da borboleta a voar, parece-lhe surgir tênue fumaça, que pouco a pouco se vai adensando até formar um rosto... e esse rosto é o seu!
          Nessa fantástica miragem, vê-se o rapaz transformado em grande ricaço, a exibir o fausto e a ostentação de uma situação privilegiada. A cada volteio da insinuante borboleta, mais e mais o rapaz se aprofunda no seu êxtase. É agora dono de rico palacete num condomínio fechado, centro de reunião de suntuosas festas da fina flor da sociedade local.
          Suas emoções crepitam. Passam-se minutos que lhe parecem séculos, neste deslumbramento de riquezas nunca jamais possuídas. Diante dele espelham-se, realizados, todos os seus mais ardentes desejos, e ele se vê na companhia de outros rapazes, de muitas e muitas moças maravilhosas, simpático, atraente, e com aquele ar desdenhoso e delirante da abastança regalada.
          As translúcidas asas da borboleta dourada transformam-se para o rapaz que sonha num televisor gigantesco, onde as imagens festivas do mundo se sucedem sem parar. O mundo está delirante, as pessoas cada vez mais belas e encantadoras, a cidade sempre mais cheia de magia, e ele entre tudo isto. Que delícia! Como é bom viver!
          O rapaz sonha. Está no auge de sua felicidade, com todos os seus desejos satisfeitos, apaixonado por todas as mulheres, possuidor de todas as comodidades da vida, fluindo todos os prazeres e luxos que só o dinheiro proporciona, quando um estudante, que enforcara a chata aula de Matemática, também avista as fulgurações da borboleta dourada!...
          Na ânsia de colher novo espécime para sua coleção, corre para ela, persegue-a, alcança-a, dá-lhe com o livro, derruba-a na grama verde do jardim. E, com ela, derruba também as falazes quimeras do infortunado sonhador!
 
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          O pobre moço vê destruída, de um golpe, toda a sua felicidade.
          Já agora o tortura o aguilhão da fome. Procura algumas moedas esquecidas no bolso. Nada. Vazio. E, melancólico, frustrado mais uma vez, roendo dolorosamente as unhas maltratadas, ergue os olhos para o horizonte longínquo, procurando, quem sabe, uma outra borboleta dourada que venha lhe trazer, por mais alguns instantes, outros retalhos de mentira à sua vida inútil e miserável!...

O MISTÉRIO DAS MÃOS



          Você alguma vez já fez uma pausa no seu dia-dia para pensar no mistério das mãos?...
           Elas se prestam a mil gestos e ações, e prouvera a Deus que todos esses gestos e ações sejam altamente construtivos, grandes e belos.
           Mãos postas, acompanhando preces ao Pai de todos os pais: e eu penso, de modo especial, em mãozinhas de crianças, que a jovem mão junta uma à outra, enquanto o filhinho ou a filhinha aprendem a rezar. Penso também, lembrando-me de minha velha mãe há tempos falecida, que estava sempre com as mãos postas, apesar de trêmulas pela idade, a rezar pelos filhos ausentes, perdidos pelos caminhos do mundo...
           Mãos de cirurgiões, que salvam vidas, não raro com extrema habilidade... Basta lembrar a perícia com que cirurgiões manejam cérebros e corações...
           Mãos calosas de trabalhadores braçais, quase sempre tão mal remuneradas.
          Mãos ágeis de datilógrafas nos meus tempos que já lá vão, e hoje mãos afinadíssimas de ágeis secretárias no manuseio de complicados computadores.
          Mãos de músicos - oh que saudades das tardes de retretas num coreto perto de minha casa nas noites de sábado e de domingo - que transportavam a mim e aos meus para além do espaço e do tempo, na pequenina cidade de Caldas, interior de Minas Gerais...
          Mãos que semeiam: sementes que serão alimento e sementes de Amor, de Esperança e de Paz.
          Mãos de pintores e de escritores, que fazem tudo para não trair os sonhos de beleza que estavam no pensamento e no coração do artista.
          Mãos de linotipistas que compõem o jornal com uma síntese do dia que estamos vivendo. Mãos de técnicos de rádio, de televisão e de cinema, que nos permitem viver, na hora, os grandes acontecimentos de qualquer parte deste nosso vasto mundo.
          Mãos que acariciam: mãos de mães, mãos de namorados, mãos de esposos...
          Seria facílimo continuar. Mas acho que é importante lembrar que as nossas mãos, capazes de tantas grandezas e tanta beleza sabem, também, distribuir desolação e morte.
          Observe ao seu redor, e verá mãos que se fecham, egoístas e avaras. Há mãos de terroristas, em várias partes do mundo, que chegam ao extremo de incendiar cidades, de arrasar, de ferir, de matar, de decapitar, como a televisão não se cansa de nos mostrar.
          Há mãos preguiçosas, especialistas em jogar em cima dos outros o trabalho que a elas mesmas lhes cabia fazer...
          Há mãos que roubam de ricos e até de pobres. E, muito triste, há mãos que sequestram pessoas, que as mantêm em cárcere, para exigências de dinheiro em resgate...
          Há mãos que metralham, jogam bombas arrasadoras, que queimam criaturas vivas, e ainda aquelas bombas em mãos das grandes potências mundiais, capazes de exterminar totalmente a vida sobre a nossa Terra.
          Ó Cristo, em Tua Encarnação, em Tua Vida Mortal, usaste Tuas Mãos de modo admirável! Dizem-nos os Evangelhos que Elas passaram fazendo o Bem!
           Que nossas mãos, à imitação das Tuas, sejam semeadoras de Tranquilidade, de Esperança, de Amor e de Paz!

sábado, 22 de novembro de 2014

PARTIR... CAMINHAR...



            Partir é, antes de tudo, sair de si. Romper a casca de egoísmo que tende a nos aprisionar dentro do próprio eu.
            Partir é não rodar, permanentemente, em torno de si, numa atitude de quem, na prática do dia-a-dia, se constitui no centro do Mundo e da vida.
            Partir é não rodar apenas em volta dos problemas das instituições ou centros sociais a que se pertence. Por mais importantes que elas sejam para nós, muito maior é a Humanidade, a quem nos cabe servir.
            Partir, mais do que devorar estradas, cruzar mares ou atingir velocidades supersônicas em modernas aeronaves, é abrir-se aos outros, aos nossos irmãos, descobri-los, ir-lhes ao encontro.
            Abrir-se às idéias, inclusive às contrárias, demonstra fôlego de bom caminheiro.
            Feliz de quem entende e vive este pensamento que, em certa reunião, tempos passados, eu ouvi do saudoso Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara:
            - "Se Você discorda de mim, não importa: com isso, Você me enriquece."
            Ter ao próprio lado quem só sabe dizer Amém, que concorda sempre com tudo, de antemão e
incondicionalmente, não é ter um companheiro, mas, sim, uma sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e não fira a Caridade fraterna, que ela seja fruto de uma visão diferente, a partir de ângulos novos. e que importa de fato, para nós, em enriquecimento.
             Sei que é possível caminhar sozinho. Mas o bom caminheiro sabe que a grande caminhada é a Vida, e esta supõe companheiros. "Companheiro" - lembra-me a etimologia da palavra - é aquele que come comigo o mesmo pão.
             Feliz de quem se sente em perene caminhada, e sempre vê, no próximo, um eventual e desejável companheiro de jornada.
             O bom caminheiro, no meu entender, é aquele que se preocupa com os companheiros desencorajados, sem ânimo, sem Esperança...
             Aquele que adivinha o instante em que o companheiro de jornada e de vida se acha a poucos palmos do desespero. Aquele que o apanha onde se encontra. Deixa que ele desabafe e, com inteligência, com habilidade, - sobretudo com amor - o leva a recobrar ânimo, a voltar a ter gosto na caminhada...
             Marchar simplesmente por marchar não é ainda verdadeira caminhada, no sentido em que eu a entendo.
             Caminhar é ir em busca de metas, é prever um fim, uma chegada, um desembarque.
             Mas alerto que há caminhada e caminhada.
             Para mim, que sou cristão - e faço questão de testemunhá-lo  - é partir, caminhar, mas é principalmente mover-se e ajudar muitos outros também a se moverem no sentido de tudo fazer por um Mundo mais justo e mais humano.
             E termino este meu texto com palavras de Dom Hélder Câmara, o Arcebispo de Olinda e Recife que, nos meus tempos de estudante de Teologia, foi meu mestre e confessor:

                                     - "Se discordas de mim, tu me enriqueces
                                         Se és sincero e buscas a Verdade
                                         e tenta encontrá-La como podes,
                                         ganharei
                                         tendo a honestidade e a modéstia
                                         de completar com o teu
                                         o meu pensamento,
                                         de corrigir enganos
                                         de aprofundar a visão 

                                                             Estás cercado de ti mesmo por todos os lados
                                                             Para te livrares de ti mesmo
                                                             lança uma ponte
                                                             por cima do abismo de solidão
                                                             que o teu egoísmo criou
                                                             Trata de ver além de ti
                                                             busca ouvir alguém
                                                             e, sobretudo,
                                                             tenta o esforço DE amar
                                                             ao invés de simplesmente TE amar..."

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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A PARÁBOLA DA ESPERANÇA


                   - "Amsterdam, sexta-feira, 26 de maio de 1944.
                   Mais de uma vez tenho-me perguntado se não teria sido preferível para todos nós não nos escondermos, e estar juntos a esta hora, do que passar toda esta miserável situação, sobretudo por causa dos nossos protetores que, pelo menos, não estariam em perigo. Mesmo que esta idéia nos faça recuar, amamos ainda a vida, não esquecemos a voz da natureza, esperamos, apesar e contra tudo."
                  Terça-feira, 6 de junho de 1944.
                  A mais bela coisa do desembarque dos aliados é a idéia de me tornar a  reunir a meus amigos. Tenho sentido a faca na garganta e, oprimidos há tanto tempo por esses horríveis nazistas, não podemos impedir-nos de estar impregnados de confiança, pensando na salvação de nossos amigos.
                 ...Margot diz que talvez eu possa enfim ir à escola em setembro ou outubro."

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                 Até aqui o diário de Anne Frank, que era judia e teve de se esconder durante meses, nos fundos da loja de uma pequena casa holandesa, na segunda guerra mundial.
                 Foi num livro de imagens consagradas a Israel que encontrei o texto acabado de citar, e que mais tarde, li integralmente no "Diário de Anne Frank", então publicado. Nesse livro de imagens, em página inteira, vem a fotografia de uma menina, levando na mão estendida um pinheirinho, um dos seis milhões que a juventude plantou nos arredores de Jerusalém, floresta de mártires, floresta dos seis milhões de judeus mortos pelos nazistas, e que o deserto fez reviver.
                Essa menina parece pensar em Anne Frank, da qual um texto que li mais tarde me informou que ela não foi à escola, porque morreu num campo de concentração, em Bergen-Belsen.
                A cabeça da menina está ligeiramente voltada para quem olha; à sua direita vê-se o braço de um rapaz, levando também uma muda de pinheiro.
                Ela tem o corpo envolvido em roupas pesadas, por cima da calça masculina; apenas um leve lenço lhe feminiza o perfil. Suas feições são pueris e sérias, porque os jovens de sua geração cresceram depressa. Os lábios são pequenos e carnudos. Seus olhos é que nunca se esquecem: muito abertos, calmos e sombrios, olham.
               Ali está a esperança que nasce, inscrita num gesto, e cantada pelo profeta Ezequiel, quando disse:
               - "Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. Eis que eles dizem: Os nossos ossos secaram e pereceu nossa esperança... Assim diz o Senhor: Eis que eu abrirei as vossas sepulturas, e vos farei sair dos vossos túmulos, ó meu povo, e vos trarei à terra de Israel."
               Que terra de Israel Anne Frank encontrou neste mundo? Eis a pergunta que nos faz esta jovem judia, porque o povo de Israel, ontem como hoje, é a imagem mais nua, mais miserável e mais verdadeira, da condição de homens e de mulheres neste nosso mundo de contestações,  de violências e de terrorismos sem freio. É a pergunta também que nos fazem os milhões de pessoas que morreram, e ainda morrem, hoje, cativos e aflitos, em seus corpos ou em suas almas.
               - "Que fizestes das esperanças dos homens e das mulheres? Que fizestes do Senhor, esperança do mundo?"
               Nós vivemos numa época incomparável e grandiosa, porque rica em possibilidades e em perigos. Mas se ninguém for capaz de se colocar à altura das suas exigências, ela poderá converter-se na era mais miserável da história, marcando penoso retrocesso da humanidade.
               Entretanto, a Criação inteira espera; NOS espera.
               E estaremos nós prontos para apostar tudo pela salvação dos homens, das mulheres e principalmente das crianças do mundo inteiro?

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Aroldo Teixeira de Almeida - bacharel em Teologia e Filosofia
Licenciado em Língua Portuguesa e Francesa, pela Pontifícia Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC
Professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense
Tem dois livros publicados: "Páginas Esparsas",  e "Capitu".

 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

LIBERTAÇÃO


                                  (para minha filha Raquel, "in memoriam"):



                                                        "...e foi assim
                                                        que naquela madrugada de um outono quente
                                                        a alma vibrante da Raquel
                                                        aprumou-se ereta
                                                        colocou-se no ponto de extrema tensão
                                                        do arco de sua vida


                                                                       mirou com mil cuidados
                                                                       o seu alvo
                                                                       e flechou verticalmente
                                                                       o Céu
                                                                       em busca do Infinito"


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                                                               G Ê N E S I S

         
            No princípio era o Artista. E o Artista criou a Poesia.
            Depois criou o Céu e a Terra, com todos os seres que neles existem, para a glória da Poesia. Criou o Sol e a Lua. Criou as estrelas e as nuvens. Criou as fontes, o regato, o rio e o mar. Criou o beija-flor, o sabiá e o rouxinol. Criou o ar e o vento, para que neles voasse a Poesia sob a roupagem de sons musicais. E criou também a borboleta, a cigarra, a neve e o orvalho.
            Poderoso é o Artista!
            É como uma chama viva sobre cinzas esvoaçantes. É como uma torre altaneira em meio às águas marulhentas. Suas mãos, porém, são delicadas como as roupagens da neblina, pois souberam modelar as sublimes formas da Poesia.
            Estes foram os primeiros quatro dias da Criação.
            E o sol expulsou a lua, a aurora estendeu seus loiros cabelos por sobre a fímbria do horizonte, as borboletas cruzaram o ar, e os ninhos arrulharam nas copas das árvores.
            E o Artista, ainda com flores selváticas nos braços, ainda com os cabelos molhados pelo orvalho dos vales primitivos, saiu para contemplar a obra de suas mãos.
            E viu que tudo era bom. Somente a Poesia estava triste e melancólica no meio da Criação.
            O Artista, vendo-a triste, perguntou-lhe:
            - "Que tens tu, que te escondes envergonhada entre as obras que criei para ti? Dei-te um mundo de maravilhas sem fim: criei para ti a terra e o mar, as vagas do oceano e o murmúrio das fontes, a rosa e a violeta. Minhas mãos espalham nos ares flocos de neve alvinitente para que neles tu faças o teu sólio. Por que então não reinas sobre o mundo?"
            Respondendo ao seu Criador, a Poesia sussurrou que estava triste porque nada no mundo a amava. Nem o leão, nem o urso, nem a girafa, nem o boi, nem o cavalo, nem a fonte, nem a cascata. Nada havia sobre a terra que a amasse e a celebrasse.
            O Artista sorriu, e seu sorriso abalou os alicerces do mundo e as colunas que sustentam os sete céus. E falou assim:
            - Vou criar um ente à minha imagem e semelhança, que te ame como eu. Serás glorificada até os confins da Terra; teus adoradores se multiplicarão como as areias do mar e as estrelas do firmamento.
            Isto dizendo, tomou do cinzel e de um bloco de mármore. No alto do bloco abriu duas cavidades parecidas com os seus olhos divinos; mais abaixo outra igual à sua boca; desenhou as orelhas, afilou o nariz, esculpiu o tronco, os braços e as pernas.
            Afastou-se dois passos, colocou as mãos nos quadris, e admirou o seu trabalho. Achando que era bom, assoprou sobre ele o seu espírito divino, e surgiu o homem.
            Vendo, porém, que não era bom para o homem estar só, o Artista arrancou-lhe do lado um pedaço de sua carne, assoprou também sobre ele, e nasceu a mulher.
            E o homem e a mulher prostraram-se diante do Artista e o adoraram.
            E o Artista lhes disse:
            Eis que eu vos trouxe à vida unicamente para servirdes à Poesia. Vós devereis amá-la e servi-la fielmente. Ela é a senhora da criação inteira: dos pássaros, dos montes, da água das cachoeiras, da dança das folhas, do sol e da chuva, do arco-íris, do dia e da noite, do orvalho das madrugadas e do sussurro das brisas, das borboletas e das cigarras. Este é um mandamento eterno que eu vos dou e aos vossos filhos e filhas para todo o sempre.
           Este foi o quinto dia do trabalho do Artista. E ele viu que tudo era bom.
           Passado muito tempo, os filhos e as filhas dos homens e das mulheres tiveram outros filhos e filhas. E disseram entre si:
           O Artista nos criou para o serviço da Poesia. Para amá-la e servi-la em todos os dias de nossa vida. Vamos, pois, tomemos as arrecadas de ouro das orelhas de nossas donzelas, de nossos filhos e de nossas filhas, e façamos instrumentos musicais para o louvor da Poesia.
          E assim foi feito. Vieram outros também, e com a rima e o ritmo trazidos das terras de Ofir e de Golconda, teceram ricas vestimentas para a Poesia. E ela passou a reinar sobre o mundo. Seus súditos eram, pela multidão, inumeráveis como a areia das praias. E eles comiam, bebiam do seu vinho, fruto da uva, e se alegravam e cantavam, porque era poderosa a sua Rainha. Ela possuía sobre o seu domínio todos os homens e mulheres dos quatro cantos da Terra, desde os confins do país dos orientais, até a fronteira do ocidente.
         E os tempos correram. Como a Poesia se entristecesse, enfarada com o glória que tinha, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres:
          - Eis que nossa Rainha  está dominada pela tristeza. Vamos, pois, e façamos novas coisas que lhe restaurem a alegria. Edifiquemos um altar, e sobre ele ofereçamos-lhe incenso e sacrifícios, com os frutos da terra.
          Mas eis que o Artista lhes apareceu numa nuvem de fogo, entre relâmpagos e trovões. E lhes falou assim:
          - Ouvi, homens, e ouvi também vós, mulheres e crianças. Ide até aos mais distantes rincões da terra, colhei em vasos de alabastro os sorrisos da Poesia, do tempo em que ainda havia sorriso em seus lábios, e eu a farei novamente feliz.
         E assim foi feito. Vieram os filhos dos homens e as filhas das mulheres, e puseram mãos à obra, obedecendo às ordens do Artista. Recolhiam os sorrisos da Poesia nos raios do luar, nas gotas do orvalho, na tepidez dos ninhos, na brancura alcandorada das geleiras eternas, ou na pureza das crianças, ou na felicidade dos esposos.
         Todos trabalharam, todos obedeceram à voz poderosa do Artista. Colheram os sorrisos da Poesia em vasos de alabastro e entregaram ao Artista, para que ele tornasse novamente a Poesia feliz como nos tempos passados.
          E o Artista tomou os sorrisos da Poesia em suas mãos, abençoou-os, assoprou sobre eles o seu espírito divino, e transformou-os no Poeta. E disse ao Poeta:
          - Eis que os filhos dos homens e das mulheres não souberam amar a Poesia como eu lhes ordenei em mandamento solene. Por isso te criei, ó Poeta, e tu serás o seu único sacerdote em toda a face da Terra. Vai, pois, e faz dela novamente a rainha da Criação.
          Foi assim que nasceu o Poeta dos sorrisos da Poesia, pelas mãos fecundas do Artista. E este foi o último dia da Criação, e o Artista descansou de seu trabalho.
          A Poesia iluminou o mundo com a sua luz, quer durante o dia, quer durante a noite, quando o Sol vai repousar por trás das grandes árvores do acaso.
          Ela tudo alegra, tudo vivifica, torna mais linda a Terra. Sem ela nada haveria: nem o sol, nem a lua, nem o vento, nem o mar, nem a chuva benfazeja, nem o homem, nem a mulher. Nada haveria sobre a Terra, exceto o Artista, que a tirou de seu cérebro onipotente, pois a Poesia é o pensamento sublime do Artista que desabrochou na Terra e no Céu, criados ambos para a sua glória.
          Grande é o Artista!
          Grande e eterno é o Artista, criador sublime da sublime Poesia!
          A Ele a honra e a glória, por todos os séculos dos séculos, na voz de todos os Poetas!


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sábado, 8 de novembro de 2014

VINDE, SENHOR, JESUS!


            `As moças e rapazes dos subúrbios da Capital paulista, entre os quais vivi as férias de 1963, porque tinham Fé, e aos meus colegas universitários da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, para que a Fé que vivíamos seja sempre verdade e vida em Jesus Cristo.`

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            Uma verdade que está sempre em meu espírito:
            Os cristãos deste século querem pão, pão verdadeiro, que sacie; querem água, água verdadeira que lhes estanque a sede; querem luz, a luz da verdade, que nunca se apaga. Querem ouvir a Palavra Divina, simples, poderosa, indo até à junção do espírito e das medulas.
            Essa Palavra de Deus tem um nome: Jesus Cristo, Nosso Senhor.
            Lembro-me muito bem até hoje: na pequena capela da Parada Inglesa, em São Paulo eu, como estudante de Teologia na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, passava o domingo nessa comunidade, levando até ela, dentro de minhas limitações, a Palavra do Senhor.
            Apresentava o Evangelho de São Mateus e, à terceira aula, o número dos ouvintes duplicava, e alguns se diziam convertidos à Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. Falava-se em Jesus: bastava pensar nEle.
            Era uma experiência inesquecível: à terceira semana, o número de ouvintes duplicava; alguns se diziam convertidos.
            Nesse tempo restabeleceu-se a Vigília Pascal: a pequena capela ficava cheia, os fiéis cantavam, ajoelhavam-se, deixavam o respeito humano à porta; olham e vêem; rezam, ouvem a homilia, e saem da capela com a certeza de terem vivido um novo "batismo".
            A explicação é muito simples: falavam-lhes na ressurreição de Cristo, pediam-lhes que se associassem a ela, na Fé batismal. Aqueles homens e mulheres, moças e rapazes, acreditavam. Quase sem o saber. Diante da palavra que lhes falava de Cristo, eles se surpreendiam crentes. Falavam-lhes de Jesus Cristo. Bastava pensar nEle.
            Gostaria de lembrar que o centro deste blog é Jesus Cristo. É nEle que a Igreja pede que se creia. Em mais ninguém. Porém, com Ele, nEle, no Pai e no Espírito Santo.
            Também eu, nestes meus setenta e oito anos de vida, depois de muitas aventuras e rodeios, me convenci de que devia voltar para Ele. Com a Graça de Deus, tenho consciência de que voltei.
            E hoje, neste modesto blog, tenho como única finalidade  fazer repetir, a todos aqueles que chegarem até estas páginas, e isso no mais íntimo da alma: - "Vinde, Senhor Jesus."

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

"Custos, quid de nocte?" - Sentinela, o que diz a noite?



          A salvação eterna é vida, justiça e amor, o laço que une homens e mulheres entre si, na unidade, por ser obra comum.
          Quem assistiu ao soberbo filme "Hiroshima meu amor" testemunhou como os amantes, no quarto, todas as manhãs ouvem um homem que passa tossindo debaixo da janela. A felicidade pessoal que não se tivesse aberto para essa "janela de Hiroshima" ficaria estéril. Estamos juntos para o melhor e para o pior. Estamos ligados umbilicalmente a esta terra, situados, encarnados, e a salvação só pode ser a justiça e o amor Neste mundo.
           Este mundo? Os crentes sabem disto: para que ele seja o lugar da chegado do Reino, ele deve ser "transfigurado", deve tornar-se "novo céu e nova terra" (Is 66,22; Rom 8,18-22).
           Os incréus suspeitam que haja nessa transfiguração um escamotear, uma mistificação, que faz esquecer a terra dos homens e da mulheres. Mas Jesus é a salvação, pois Ele é o Salvador. Em última análise, a salvação não é uma noção abstrata, mas uma Pessoa, a do Verbo feito carne, Jesus, que quer dizer "Salvador".
            Lembremo-nos que afirmações abstratas jamais converteram alguém. Somente o anúncio da Boa Nova, que é Jesus Cristo, pode tocar e levar os corações à metanoia, à conversão.
            Mas quem conhece realmente a Jesus Cristo? Escrevem-se livros para se falar do Cristianismo. E eles são escritos para estabelecer algumas balizas de salvação. Ao final, porém, se verifica que quase nada se disse de Jesus. Ele é o "Chefe que deve conduzir à Vida" (Heb 2,10). Não há salvação em nenhum outro, senão em Jesus Cristo.
            Ele é nossa esperança, nossa paciente expectativa, que nos concede ao mesmo tempo a força para esperar. É aquele que nos faz ouvir num estremecimento de alegria as palavras do Apóstolo Paulo, que um comentarista de televisão lia no início da peregrinação de Paulo VI à Terra Santa:
            - "A nossa salvação está agora mais próxima do que quando abraçamos a Fé. A noite vai muito avançada, e já se aproxima o dia" (Rom 13,11-12).
            -"Sentinela, o que diz a noite?" - canta Isaías, "o evangelista do Antigo Testamento".
            -"E tu, menino, serás chamado Profeta do Altíssimo; pois precederás o Senhor para lhe preparar os caminhos, para dar ao Seu povo a ciência da salvação pela remissão dos pecados."
            Estas palavras de Zacarias, em São Lucas, eu as faço minhas, pois apenas desejo uma coisa:
que os eventuais leitores deste blog possam representar, ainda que seja um só, a voz de um João Batista a "dar ao povo a ciência da salvação."
            -"Custos, quid de nocte?"

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Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado de Português e Francês, do Quadro Próprio do Magistério do Paraná.