quinta-feira, 13 de novembro de 2014

LIBERTAÇÃO


                                  (para minha filha Raquel, "in memoriam"):



                                                        "...e foi assim
                                                        que naquela madrugada de um outono quente
                                                        a alma vibrante da Raquel
                                                        aprumou-se ereta
                                                        colocou-se no ponto de extrema tensão
                                                        do arco de sua vida


                                                                       mirou com mil cuidados
                                                                       o seu alvo
                                                                       e flechou verticalmente
                                                                       o Céu
                                                                       em busca do Infinito"


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                                                               G Ê N E S I S

         
            No princípio era o Artista. E o Artista criou a Poesia.
            Depois criou o Céu e a Terra, com todos os seres que neles existem, para a glória da Poesia. Criou o Sol e a Lua. Criou as estrelas e as nuvens. Criou as fontes, o regato, o rio e o mar. Criou o beija-flor, o sabiá e o rouxinol. Criou o ar e o vento, para que neles voasse a Poesia sob a roupagem de sons musicais. E criou também a borboleta, a cigarra, a neve e o orvalho.
            Poderoso é o Artista!
            É como uma chama viva sobre cinzas esvoaçantes. É como uma torre altaneira em meio às águas marulhentas. Suas mãos, porém, são delicadas como as roupagens da neblina, pois souberam modelar as sublimes formas da Poesia.
            Estes foram os primeiros quatro dias da Criação.
            E o sol expulsou a lua, a aurora estendeu seus loiros cabelos por sobre a fímbria do horizonte, as borboletas cruzaram o ar, e os ninhos arrulharam nas copas das árvores.
            E o Artista, ainda com flores selváticas nos braços, ainda com os cabelos molhados pelo orvalho dos vales primitivos, saiu para contemplar a obra de suas mãos.
            E viu que tudo era bom. Somente a Poesia estava triste e melancólica no meio da Criação.
            O Artista, vendo-a triste, perguntou-lhe:
            - "Que tens tu, que te escondes envergonhada entre as obras que criei para ti? Dei-te um mundo de maravilhas sem fim: criei para ti a terra e o mar, as vagas do oceano e o murmúrio das fontes, a rosa e a violeta. Minhas mãos espalham nos ares flocos de neve alvinitente para que neles tu faças o teu sólio. Por que então não reinas sobre o mundo?"
            Respondendo ao seu Criador, a Poesia sussurrou que estava triste porque nada no mundo a amava. Nem o leão, nem o urso, nem a girafa, nem o boi, nem o cavalo, nem a fonte, nem a cascata. Nada havia sobre a terra que a amasse e a celebrasse.
            O Artista sorriu, e seu sorriso abalou os alicerces do mundo e as colunas que sustentam os sete céus. E falou assim:
            - Vou criar um ente à minha imagem e semelhança, que te ame como eu. Serás glorificada até os confins da Terra; teus adoradores se multiplicarão como as areias do mar e as estrelas do firmamento.
            Isto dizendo, tomou do cinzel e de um bloco de mármore. No alto do bloco abriu duas cavidades parecidas com os seus olhos divinos; mais abaixo outra igual à sua boca; desenhou as orelhas, afilou o nariz, esculpiu o tronco, os braços e as pernas.
            Afastou-se dois passos, colocou as mãos nos quadris, e admirou o seu trabalho. Achando que era bom, assoprou sobre ele o seu espírito divino, e surgiu o homem.
            Vendo, porém, que não era bom para o homem estar só, o Artista arrancou-lhe do lado um pedaço de sua carne, assoprou também sobre ele, e nasceu a mulher.
            E o homem e a mulher prostraram-se diante do Artista e o adoraram.
            E o Artista lhes disse:
            Eis que eu vos trouxe à vida unicamente para servirdes à Poesia. Vós devereis amá-la e servi-la fielmente. Ela é a senhora da criação inteira: dos pássaros, dos montes, da água das cachoeiras, da dança das folhas, do sol e da chuva, do arco-íris, do dia e da noite, do orvalho das madrugadas e do sussurro das brisas, das borboletas e das cigarras. Este é um mandamento eterno que eu vos dou e aos vossos filhos e filhas para todo o sempre.
           Este foi o quinto dia do trabalho do Artista. E ele viu que tudo era bom.
           Passado muito tempo, os filhos e as filhas dos homens e das mulheres tiveram outros filhos e filhas. E disseram entre si:
           O Artista nos criou para o serviço da Poesia. Para amá-la e servi-la em todos os dias de nossa vida. Vamos, pois, tomemos as arrecadas de ouro das orelhas de nossas donzelas, de nossos filhos e de nossas filhas, e façamos instrumentos musicais para o louvor da Poesia.
          E assim foi feito. Vieram outros também, e com a rima e o ritmo trazidos das terras de Ofir e de Golconda, teceram ricas vestimentas para a Poesia. E ela passou a reinar sobre o mundo. Seus súditos eram, pela multidão, inumeráveis como a areia das praias. E eles comiam, bebiam do seu vinho, fruto da uva, e se alegravam e cantavam, porque era poderosa a sua Rainha. Ela possuía sobre o seu domínio todos os homens e mulheres dos quatro cantos da Terra, desde os confins do país dos orientais, até a fronteira do ocidente.
         E os tempos correram. Como a Poesia se entristecesse, enfarada com o glória que tinha, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres:
          - Eis que nossa Rainha  está dominada pela tristeza. Vamos, pois, e façamos novas coisas que lhe restaurem a alegria. Edifiquemos um altar, e sobre ele ofereçamos-lhe incenso e sacrifícios, com os frutos da terra.
          Mas eis que o Artista lhes apareceu numa nuvem de fogo, entre relâmpagos e trovões. E lhes falou assim:
          - Ouvi, homens, e ouvi também vós, mulheres e crianças. Ide até aos mais distantes rincões da terra, colhei em vasos de alabastro os sorrisos da Poesia, do tempo em que ainda havia sorriso em seus lábios, e eu a farei novamente feliz.
         E assim foi feito. Vieram os filhos dos homens e as filhas das mulheres, e puseram mãos à obra, obedecendo às ordens do Artista. Recolhiam os sorrisos da Poesia nos raios do luar, nas gotas do orvalho, na tepidez dos ninhos, na brancura alcandorada das geleiras eternas, ou na pureza das crianças, ou na felicidade dos esposos.
         Todos trabalharam, todos obedeceram à voz poderosa do Artista. Colheram os sorrisos da Poesia em vasos de alabastro e entregaram ao Artista, para que ele tornasse novamente a Poesia feliz como nos tempos passados.
          E o Artista tomou os sorrisos da Poesia em suas mãos, abençoou-os, assoprou sobre eles o seu espírito divino, e transformou-os no Poeta. E disse ao Poeta:
          - Eis que os filhos dos homens e das mulheres não souberam amar a Poesia como eu lhes ordenei em mandamento solene. Por isso te criei, ó Poeta, e tu serás o seu único sacerdote em toda a face da Terra. Vai, pois, e faz dela novamente a rainha da Criação.
          Foi assim que nasceu o Poeta dos sorrisos da Poesia, pelas mãos fecundas do Artista. E este foi o último dia da Criação, e o Artista descansou de seu trabalho.
          A Poesia iluminou o mundo com a sua luz, quer durante o dia, quer durante a noite, quando o Sol vai repousar por trás das grandes árvores do acaso.
          Ela tudo alegra, tudo vivifica, torna mais linda a Terra. Sem ela nada haveria: nem o sol, nem a lua, nem o vento, nem o mar, nem a chuva benfazeja, nem o homem, nem a mulher. Nada haveria sobre a Terra, exceto o Artista, que a tirou de seu cérebro onipotente, pois a Poesia é o pensamento sublime do Artista que desabrochou na Terra e no Céu, criados ambos para a sua glória.
          Grande é o Artista!
          Grande e eterno é o Artista, criador sublime da sublime Poesia!
          A Ele a honra e a glória, por todos os séculos dos séculos, na voz de todos os Poetas!


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