quinta-feira, 28 de abril de 2016

O IMPERIOSO CHAMADO DE DEUS



                   Como sou leitor um tanto quanto desvairado, quando não tenho um bom livro à mão para ler, chego até ao despautério de ler papéis de embrulho e panfletos de supermercado...
                   Seria muito bom para mim ler com boa vontade um dos meus autores prediletos, como Jacques Maritain, Karl Adam, Romano Guardini, Rainer Maria Rilke, Leonardo Boff. Mas ser-me-ia sumamente melhor ler São Tomás de Aquino em sua "Suma Teológica", Santo Agostinho em suas "Confissões". Mas, melhor do que tudo, seria ler a Bíblia Sagrada, depois de rezar um simples "Pai-Nosso", pedindo a Deus o socorro da Fé, da Esperança e da Caridade.
                   Se eu apenas quisesse ler tudo, ler mais e mais ainda, e ficar apenas ruminando o que li, não me converteria para Deus. Num certo ponto de minhas leituras, num determinado momento de minha vida, foi-me preciso escolher. Tive a convicção de que não ganharia a Fé pelo aperfeiçoamento de minha capacidade de ler. Nem ganharia  a Esperança e a Caridade pela ginástica metódica do meu nervo lúdico: essas realidades são dons de Deus, que tenho de pedir continuamente na prece, o que de antemão já me é dado pela providência de Deus.
                   E não me basta apenas pensar e querer: tenho de pedir falando, levando meu corpo, minha voz viva ao ouvido consagrado. Tenho de entrar na objetividade de Deus. Depois do encontro, em que Deus e toda a Comunhão dos Santos me ajudou, me chamou, me procurou, é a vez dele, desse ajudado, desse chamado. É então a minha vez de jogar, cabe-me agora fazer o lance decisivo de minha vida.
                   É Deus quem me chama e me ajuda, mas de repente eu fico numa situação inaudita, porque é minha obrigação responder. Quase se pode dizer que nesse instante incrível há um silêncio de Deus. Todos os anjos e santos de minha devoção se calam. Há um silêncio, uma espera, um frêmito de impaciência, em que somente ecoa, no fundo de minha alma, esse chamado que exige de mim uma resposta livre e consciente.
                   E nesse silêncio augusto e terrível, eu me sinto subitamente só,  terrivelmente livre e inundado pela misericórdia de Deus. Estou só e livre, e nesse instante tenho de fazer um pequeno ato, uma insignificância, um ato de penitência, um gesto de amor, uma coisa de nada, mas que tem a espantosa capacidade de penetrar no coração de Deus.
                   É então que eu me converto, ou melhor, é Deus que me converte para Ele, retoma um diálogo interrompido por minha culpa, faz desaparecer hesitações e receios infundados, porque Ele já me deu a Sua Palavra,  e A deu como Corpo e continua me dando como um Pão.
                   A Caridade de Deus entra pelos fundamentos de minha vida, desce à simplicidade de meus melhores desejos, converte-me com a Palavra, nutre-me com um Pão, reúne-me num Corpo.
                    A Graça de Deus habita em mim e eu me considero então o mais feliz dos mortais.


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Aroldo Teixeira de Almeida é bacharel em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital paulista.




           

segunda-feira, 25 de abril de 2016

ERA UM BOM MENINO...



             Uma tarde, andando ali pela Itupava depois de rodar vários quarteirões da XV de Novembro em visita a livrarias, vi  pelo reflexo duma vitrina um cidadão alto, magro, boné cobrindo os ralos cabelos mal penteados, com alguns embrulhos nas mãos. Como ia desprevenido, não pensando em nada, quase que o cumprimentei, respeitosamente, por ele me parecer mais velho do que eu.
             Mas logo percebi, assustado, que era eu mesmo que levava dois livros comprados há pouco, e sob os ombros encurvados, o ridículo de levar, também, os meus sofríveis oitenta anos.
             Sabia perfeitamente que chegara a essa malfadada idade, e tinha também uma consciência nítida da figura feia que fazia meu aspecto. Da idade sabia, de um modo repetido, constante, pelo habitual joguinho de gracejos a propósito dos oitenta anos, por parte de minha mulher e da neta adolescente. Na verdade, até hoje não atinei com a razão de certas idades serem consideradas sob o ângulo da gozação e da pilhéria.
            Quando temos um ano, todo o mundo nos acha encantadores e os adultos trocam risinhos cheios de cumplicidade por causa dessa ocorrência fenomenal. Lembro que na adolescência, em Barbosa Ferraz, andei encontrando novamente gozações em torno de meus modos desengonçados e sobretudo por causa de meus pobres ensaios de namoros com uma ou outra colega de ginásio.
             Agora, aos oitenta, mais uma vez sou atingido pela pilhéria em torno de minha careca crescendo cada vez mais dia após dia. Logicamente deveriam todos piscar o olho para o velhote, que está passando, sem dúvida alguma, pela mais interessante das transições!...
             Eu tinha, pois, consciência vigilante de meus muitos anos. Sabia-os hora por hora, minuto por minuto. Trabalhei no magistério estadual durante trinta anos, enfrentando má educação de molecões filhinhos de papai. Em casa, para mulher e filhos, como no ônibus, no barbeiro, nos armazém, em toda parte eu carregava a idade, já considerada provecta. Estava impregnado dela até o incômodo.
             Qual era então o motivo daquele espanto ao ver minha imagem na vitrina? Consultei-me atentamente. Não procurava a mágoa pela idade, mas a enigmática razão de não ser ela uma coisa realmente de meu íntimo, de não ter pegado, de não convencer. Queria a explicação, não da tristeza, que seria fácil, mas do espanto.
             Procurei investigar os momentos imediatos antes do susto.  Voltei atrás; repeti a experiência; tornei a passar diante da vitrina assobiando baixinho, mas só vi então a mesma  imagem já familiar, tendo nos olhos um ardor inquieto de investigação.
            Dias depois, numa experiência diferente, encontrei a chave do meu problema. Ia descendo uma rua do meu bairro, pensando no que ia fazer no centro.  Não me lembro agora o que era, mas descia a rua meio apressado quando, numa casa clara e com jardim na frente, abriu-se uma janela e do alto veio uma voz moça:
            - Carlinhos, vem prá dentro, olha o mormaço!
            Então recebi impetuosamente a lembrança de minha meninice em Poços de Caldas. Era um dia quente também; havia no ar morno uma repetição misteriosa, qualquer coisa sutil que me enchia o peito de ar novo e antigo. Uma janela se abrira com aquele ruído e do alto viera uma voz de mãe ainda moça:
            - Aroldo, olha o mormaço!
            Sei que o mormaço acabou ficando ausente de minha memória, porque hoje, neste outono cheio de sol, ninguém mais pensa nesse gênio morno e um pouco malfazejo que fazia as crianças de meu tempo largarem correndo seus brinquedos no chão, e obedecerem à voz da mãe!...
            Quem não terá encontrado cem vezes a sua infância assim? De fato, me parece que a infância ainda dorme dentro de mim, enrolada como uma espiral de mola, e salta de repente, e assusta, e fere, e dói, quando vejo, num reflexo da vitrina, um senhor já de idade, alto, magro, já um tanto careca.
            Vem-me então a vontade de gritar bem alto, para os passantes, meio envergonhado, que aquele lamentável adulto, encurvado, não sou eu. Tenho ímpetos também de perguntar aos transeuntes por onde anda aquele menino da longínqua Barbosa Ferraz.
             Onde está ele? Quem o viu? Era um bom menino...

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Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado de Português e Francês do Quadro Próprio do Magistério Paranaense.

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sexta-feira, 22 de abril de 2016

A MAIOR DAS VIRTUDES = A CARIDADE


         Inclino piedosamente meus ouvidos às palavras do Apóstolo Paulo sobre a Caridade de Deus. Para quem não sabe, está lá na Primeira Carta aos Coríntios, capítulo XIII, e eu trago aqui apenas duas linhas, que muito me impressionaram:

         _ "Se eu distribuir meus bens para alimento dos pobres; se entregar meu corpo às chamas, se não tenho Caridade, tudo isto de nada me aproveita".

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          Não há engano, benévolo leitor:
          O Apóstolo disse realmente que de nada lhe serviria distribuir todos os bens para sustento dos pobres se não tivesse ele Caridade. Essa palavra separa claramente a filantropia, a bondade natural de que o mundo tanto se gloria, quanto cansa de se gloriar em outras coisas  -  da verdadeira Caridade, que é o amor do próximo em Deus e por Deus.
           Tudo o que se escreveu e que se escreve até hoje, e mais o que se diz sobre a bondade, perde
precisão, desmancha-se num humanitarismo fácil e otimista, quando esquecemos que essa virtude, a Caridade, é dom de Deus e fonte verdadeira de todo amor.
           O perfume do vinho, que degusto toda semana, não me dessedenta; o cheiro das fornadas frescas do pão caseiro que minha mulher amassa e assa também semanalmente,  não consegue me saciar totalmente.
           O fato é que agora, pela Caridade de Deus, eu sei onde se encontra realmente o pão e o vinho, e sei também que não basta anotar um endereço e pensar nele, à noite, com olhos úmidos de enternecimento.
           Quem ouviu a boa notícia da Fé e a promessa da Esperança, não poderá beber e comer da notícia e da promessa: tem de ir, tem de caminhar, tem de chegar à casa da reconciliação, tem de atravessar a soleira de uma porta. E junto do altar conhecerá que Deus faz ainda maior caso que eu da Palavra, do Pão e do Corpo, e que Ele me entregará tudo, como entregou Seu próprio Filho na Cruz.
            Ousado é o homem, ousada é a mulher, que se aproximam daquela pedra, porto ou recife; ousado é o homem, ousada é a mulher, que pedem tanto e tanto aceitam. Porque é terrível a Caridade de Deus escondida no Seu Corpo que recebo na Eucaristia. Essa Caridade de Deus que desceu até mim, na forma de uma Palavra, escondida num Pão, o clímax da História; e diante dessa Palavra tornada Pão,  tudo o mais é supérfluo e dispensável.
             Lembro-me bem até hoje dos meus tempos de colégio, quando zangar-se com um colega era deixar de lhe falar, até que passasse a eventual mágoa.  Mas também me lembro dos dias da reconciliação e do sabor esquisito das primeiras conversas depois de feitas as pazes. E fazer as pazes, fazer o primeiro gesto, eu hesitava, ou por orgulho, ou por incerteza, por não saber o que responderia o outro, e se de sua parte houvesse recusa, ainda maior do que antes seria o rancor.
            Hoje, com a Graça de Deus e a inspiração do Espírito Santo, nós todos, cristãos participantes do Banquete Sagrado, ousamos, um por um, em fila, em caravana, agora irmãos, ousamos nos aproximar do mistério extraordinário da partilha do Pão e do Vinho, revigorando em nossos corações a Caridade de nosso Deus.

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Aroldo Teixeira de almeida é bacharel em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital paulista.


            
   
    
          

terça-feira, 19 de abril de 2016

MINHA ORAÇÃO DE TODOS OS DIAS


 Senhor Jesus:

Quando chegar minha última hora, e eu estiver morrendo e me decidindo por Vós, concedei-me a graça de um rápido amadurecimento humano e divino nessa hora derradeira, para que, acrisolado como o ouro no cadinho, eu possa desabrochar totalmente em Vós. Amém.

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A ESPIRITUALIDADE DO ENGAJAMENTO









            Atualmente, os mistérios da natureza se nos manifestam  -  e me refiro particularmente a mim mesmo  -  de maneira completamente nova, seja na forma de ameaça ou de promessa.
            Como cristão-católico e leigo que sou, sinto, cada vez mais, a necessidade de que todos nós nos abramos ao mundo  e ao seu desenvolvimento integral.  Tenho a convicção de que em nossa vida prática o pensamento religioso tende a conquistar uma posição que, de um lado, esteja radicado na Fé sobrenatural e, de outro lado, na realidade deste nosso mundo em contínua mudança.
             Nesta perspectiva, penso ser necessário que nos empenhemos com todo o nosso esforço no sentido de descobrir uma espiritualidade leiga, isto é, uma espiritualidade que possa realmente ser vivida por homem e mulher que trabalham de manhã à noite no meio secular, uma espiritualidade de engajamento cristão, na qual se possa reconhecer a realidade divina, na transparência dos acontecimentos históricos do Universo.
            Este mundo, no qual vivemos, tem um valor salvífico para nós. Em outros termos, trata-se de unificar a Fé sobrenatural e a responsabilidade frente ao mundo, e compatibilizar o trabalho profano com o serviço divino, ou seja, de nos santificarmos no engajamento ao mundo.
            Não tenho nenhuma dúvida de que também o cristão  -  bem como o não-cristão e até o ateu confesso  -  deverá investir todas as forças e energias de sua inteligência para acelerar o desenvolvimento transformador do mundo. Todo o investimento da inteligência precisará ter como meta a maior humanização do mundo, dentro da máxima responsabilidade cristã.
            Sei perfeitamente que hoje o desenvolvimento técnico já atingiu tamanho grau de intensidade, que se tornou inevitável certa crise periódica. E se nesta hora de crise eu negasse minha colaboração de cristão,  seria infiel a Cristo meu Senhor.
            Há pessimistas que pensam que as nossas condições de trabalho sacrificam cada vez mais a dignidade da pessoa humana. Pensam eles que neste mundo tecnizado será difícil encontrar espaço para a alegria e para o desenvolvimento pessoal, e explicam: se homem e mulher forem vítimas da mecanização, da automatização, neste caso também está em perigo o de se sujeitarem a sempre maior uniformização, a qual ameaçaria a própria individualidade da pessoa humana.
            Em outras palavras, homem e mulher correriam o grande perigo de serem dominados pela técnica, em vez serem os seus dominadores.
            Estou seguro, porém, de que há indícios de um futuro melhor, no qual a máquina, o computador, servirá totalmente ao homem e à mulher, aliviando-lhes sempre mais o peso do trabalho braçal e diminuindo suas horas de serviço no decorrer do dia. Em consequência, homem e mulher poderão empregar o tempo e as energias poupadas para aumentar a esfera de sua própria liberdade.
            E eu me pergunto pelo sentido do trabalho humano ao qual todos nós estamos sujeitos. Costumo ouvir que devo realizar meu trabalho com espírito de penitência. Mas, se eu for sincero, sinto-me um tanto mal quando meu trabalho me é apresentado unicamente sob o aspecto de penitência e castigo, em certas pregações em nossos templos..
            Tenho profunda convicção de que meu trabalho não deverá ser visto por mim apenas e unicamente à sombra da cruz.  Mas também, e com muito mais força, deverão ser vistos e acolhidos à luz dos mistérios da criação, da encarnação, da ressurreição e da parusia do Senhor Jesus. Isto porque a unidade dinâmica da criação redimida reclama o meu engajamento consciente.
            O desenvolvimento do Universo exige uma solidariedade humana de tipo universal, solidariedade sem barreiras raciais ou de classes de qualquer espécie. Tanto o medo angustioso de perecer, como a esperança de sobrevivência coletiva, contribuem para que possamos desenvolver uma maior temperatura social, resultando numa maior socialização, de que já falava o saudoso Papa João XXIII.
            Neste processo, meu trabalho deixa de ter só o sentido de ganhar o pão de todos os dias. Por uma reflexão crítica, eu tenho que ver nele, sempre mais, o seu valor humano, pois o respeito à pessoa que trabalha, no seu ato de dominar a Terra com toda a responsabilidade, ajuda a que homem e mulher realizem em si mesmos a imagem e semelhança de Deus Criador. Deus os criou com potências espirituais, destinadas a investigar os mistérios do Universo, de inventar novas possibilidades para sua atuação, pois Deus não Se contentou com uma Criação acabada desde o começo dos tempos.
            De certa maneira, Deus Criador prolonga Sua atividade criadora através do homem e da mulher em todo o tempo, não sendo eles, porém, concorrentes do Criador, já pelo fato de a atividade deles encontrar limites nas próprias leis da Natureza.
            Entretanto, diante de suas tarefas no mundo, homem e mulher cristãos, de nenhuma forma, poderão cruzar os braços, porque o sucesso ou o fracasso de um novo mundo, de um mundo mais humanizado e cristão, dependerá sempre das energias espirituais investidas em nosso engajamento, como co-criadores que somos,  com  o nosso Deus Criador.

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Aroldo Teixeira de Almeida é bacharel em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital paulista.

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sexta-feira, 15 de abril de 2016

CONFISSÃO DE UM BLOGUEIRO



            Na minha modesta condição de blogueiro católico, tenho observado e até sentido na pele um fenômeno curioso a respeito das objeções que se costumam levantar contra a minha igreja, a Igreja Católica, já com mais de dois mil anos de existência.
            Creio sinceramente que, a respeito dessas objeções, o descrente tem razão. Diz ele, por exemplo, que a Igreja é intolerante. E ele tem carradas de razão.  Ela é, sim, intolerante, e muito mais do que imagina o descrente. Diz ele, ainda, que a Igreja perdeu o prestígio no mundo, e realmente Ela o perdeu desde o dia da crucificação de Jesus.
             Que a moral católica é moral de escravos; concordo, desde quando nossos sacerdotes, no ritual da ordenação, abaixam a cabeça para receber a tonsura que, todos sabem, é o sinal dos escravos. Muitos dizem maldosamente que os católicos são camelos: e eu, católico que sou, me ajoelho para que o Senhor Jesus disponha de minhas corcovas de humílimo camelo, como e quando Ele quiser...
             Que o homem, o Cristão, é apenas aquilo que come; e eu respondo que o Cristão Católico  tem a suprema ventura de comer o Corpo de Deus, na Eucaristia, para se tornar realmente aquilo que come...
             Atacam o ritualismo católico, dizendo que nossos rituais não passam de teatro de crianças, e eu me confesso contentíssimo com essa descoberta, porque sei que o ritual católico é feérico como um teatro de crianças, pela completa ausência do elemento sensacional, como são os contos de fada, lidos intensamente na minha infância. Neles, existe verdadeira catarse e alegria, depois que as crianças sabem exatamente o que vai acontecer no capítulo seguinte.
            Lembro-me perfeitamente: na primeira vez em que a fada transforma o vestido sujo da "gata borralheira" num outro mais bonito, da cor do céu com todas as suas estrelas, eu fiquei tão espantado, como se isso fosse a coisa mais sensacional do mundo.
            Isto porque eu era criança, e a criança sente um verdadeiro deleite na espera dum acontecimento tão banal, como eu sentia com a chegada de meu pai em casa, na hora do jantar, depois de fechada a sua barbearia.
            Passada a adolescência, perdi este senso, o gosto de brincar com a esperança em Deus e, com isso, fiquei com  a sensação de ter-me tornado o mais infeliz dos mortais.
            Voltando às linhas acima, em que falei do ritual cristão, concordo com o descrente, quando ele diz que o ritual católico é realmente um teatro só para crianças. Pois  é preciso ser como as crianças, para aceitar o sentido profundo das cenas muito simples e das palavras decoradas. A palavra decorada do ritual quer dizer palavra do coração, palavra gravada, guardada, para ser depois pronunciada no diálogo da boa vontade, quando nos apresentamos diante da Eucaristia cheios de contentamento, carregando essas palavras em nosso coração, e já sabendo de antemão as muitas outras que haveriam de vir.
            Em outros tempos, estudante de Filosofia e Teologia em São Paulo, andei em rodas muito estranhas, hesitando entre a sociedade sem classes, marxista, não sabendo se deveria levantar a mão direita dura como um dardo, ou a esquerda com o punho fechado em sinal de revolta contra as perversões do capitalismo.
            E agora, diante do sacerdote que me apresenta a Hóstia Consagrada, levanto as mãos como as orantes antigas, cantando as palavras decoradas: - "Suscipe me, Domine, secundum misericordiam tuam" -  (Recebei-me, Senhor, segundo a Tua misericórdia).
            E aí está, benévolo leitor, como acaba esta estória, um tanto quanto estranha, estando eu ainda desarrumado de corpo e alma, considerando-me porém, ao gosto das novelas policiais  que tanto aprecio, cheio de felicidade, como um humilde prisioneiro de Deus.

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Aroldo Teixeira de Almeida é bacharel em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital paulista.
             

terça-feira, 12 de abril de 2016

O DELÍRIO DE UMA QUEDA NA AVENIDA



            Dia atrás, andando eu ali pela XV de Novembro, bem diante de mim uma senhora já idosa caiu na calçada, com um ruído surdo e impróprio de um joelho batendo no calçamento. Ajudei-a  levantar-se, já que  eu era, no momento, o mais próximo dela.
             A senhora levantou-se, gemendo e olhando em volta, com certo espanto, talvez pela coisa tão insólita que parecia ter sido a sua queda vergonhosa.
             Com o afastamento da senhora, a praça pareceu-me subitamente parada e o tempo vencido por aquele inesperado encontro.  Tive a repentina intuição de que eu existia, eu era alguém, com o testemunho da senhora que me segurava no braço, procurando equilibrar-se. Parecia-me que entre nós se estabelecera um pacto, uma espécie  de delírio, que entraria eternidade a dentro.
              Mas a impressão foi logo desfeita e a eternidade se evaporou em poucos segundos. O movimento costumeiro da praça recomeçou, enquanto a senhora sumiu na esquina. Levava o seu segredo e o depoimento do meu; guardaria ela alguns dias uma mancha roxa no joelho; explicaria às filhas e às netas, com abundantes pormenores, como havia caído, e na sua estória confusa de velha, eu estaria associado como um cavalheiro alto, magro e um tanto quanto careca, mas de boa sina.
              Talvez, com o decorrer do tempo, eu passaria a ser uma sombra apenas, careca e com pesados óculos de grau. E quando a velha morresse, com toda certeza levaria consigo o último vestígio daquela cena inusitada; e depois ninguém mais saberia que naquela tarde, na movimentada Rua XV, zona central de Curitiba, nós dois nos tínhamos encontrado, eu e a capengante senhora.
             Continuando meu caminho, depois do infausto acontecimento, parecia-me que eu estivera metido em um engenho, lixado, mastigado, triturado, aos bocadinhos, pelos percalços não previstos da vida. Cada um de nós tem suas raias, e a avenida  só me respondia com o fluxo de gente, com o movimento perpétuo da cidade grande, com o gracejo das vitrinas, com a ironia fatigant das roupas e dos embrulhos e, com tudo isso na mente, eu voltei para casa revolvendo pensamentos sombrios e sem sentido aparente.
             E então  -  eu dizia para mim mesmo, num frenesi inexplicável   -  será melhor expor ao vento dos séculos o peito nu, rasgar as roupas, rasgar a carne, descobrir o próprio coração. E por que não, ser chama viva?  De que me adiantaria agasalhar carvões ardentes de consumo lento e cotidiano? É melhor, mesmo, ser chama viva que se veja de longe, e que crepite alto com a festa e a glória dos incêndios!

sábado, 9 de abril de 2016

MUITO MAIOR É A CARIDADE



           Nesta tarde de sábado, véspera do domingo, "Dia do Senhor", inclino meus ouvidos às palavras de Paulo sobre a Caridade de Deus. Está na primeira carta aos Coríntios, capítulo XIII:

            - "Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver Caridade, sou como bronze que ressoa ou como címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia, ainda que conheça todos os mistérios, que possua toda a ciência; ainda mesmo que tenha toda a Fé, capaz de transportar montanhas, se não tiver Caridade, não sou nada. Se eu distribuir meus bens para alimento dos pobres; se entregar meus corpo às chamas, se não tenho Caridade, tudo isto de nada me aproveita".

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            Não há engano, benévolo leitor: a Caridade é paciente, é boa; a Caridade não é invejosa, não se ufana, não se ensoberbece; nada faz que não convenha, não busca seus próprios interesses, não se irrita, não se ofende, não folga com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.
            A Bíblia Sagrada nos garante que a Caridade jamais passará. Trata-se de profecias? Elas terão fim. De línguas? Elas cessarão. De ciência? Ela chegará a seu termo. Isto porque em parte conhecemos e em parte profetizamos. Ora, quando vier o que é perfeito, o que é parte, apenas, então passará.
            E Paulo exemplifica:

            - "Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, julgava como criança. Desde que me tornei adulto, abandonei as coisas de crianças. Agora, vejo como que em um espelho, de um modo obscuro; então, verei face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei como sou conhecido. Agora permanecem essas três realidades: a Fé, a Esperança e a Caridade. Mas a maior é a Caridade."

            Não há engano, benévolo leitor: o Apóstolo disse realmente que de nada lhe serviria distribuir todos os bens para sustento dos pobres, se não tivesse Caridade. Esta palavra é claramente diferente da filantropia, a bondade natural de que o mundo se gloria, quando cansa de se gloriar por outras coisas, da verdadeira Caridade que é o amor do próximo em Deus e por Deus.
            Tudo o que escrevi linhas acima, e mais o que se costuma dizer sobre a bondade, perde precisão, desmancha-se num humanitarismo fácil e otimista, quando me esqueço que esta virtude, a Caridade, é dom de Deus e fonte verdadeira de todo amor.
            Gosto de vinho, e hoje mesmo, no almoço, degustei uma bela taça. Mas sei, perfeitamente, que o perfume do vinho não dessedenta. Na padaria, o cheiro quente das fornadas de pão não sacia. Se agora eu disser que  sei onde se encontram realmente o pão e o vinho, não bastar rabiscar num caderninho e pensar neles, à noite, com olhos úmidos de enternecimento.
            Do mesmo modo, quem ouviu a boa notícia da Fé e a promessa da Esperança, não poderá beber e comer da notícia e da promessa; tem que ir, tem de pôr-se a caminho, tem de procurar e chegar à casa da reconciliação, tem de atravessar a soleira de uma porta.
            Feito isto, junto do altar conhecerá que Deus faz ainda maior caso que nós da Palavra, do Pão e do Corpo, e que nos entrega tudo, como entregou Seu próprio Filho por nós na Cruz.

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            Ousado e feliz é o homem ou a mulher que se aproxima daquela pedra, porto ou recife; ousado e feliz é o homem ou a mulher que pede tanto e tanto aceita.  Porque  é terrível a Caridade de Deus escondida no Pão que Ele nos dá na Eucaristia.

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Aroldo Teixeira de Almeida é bacharel em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital Paulista.



quinta-feira, 7 de abril de 2016

CARTA DE UM VIRTUAL SUICIDA (ficção)



            Senhor Juiz:


            Não culpe ninguém pela minha morte, peço-lhe encarecidamente. O caso é que não tenho outro remédio, a não ser a morte, livremente procurada por mim mesmo. Os motivos, Vossa Excelência os verá em seguida:


                                                  *************************
                                              

            "Tive o supremo desgosto de casar com uma viúva, que tinha uma filha. Se eu tivesse sabido da existência dessa filha, certamente eu não teria casado com a viúva. Mas o destino quis o contrário, e por causa desse ingrato destino, é que me despeço desta vida.
            Meu pai, sem culpa pessoal alguma, aumentou meu infortúnio. Ele também era viúvo, e namorou minha enteada, filha da viúva com quem me casei, e acabou casando-se ele  com essa enteada. 
            Com isso, minha esposa tornou-se sogra do meu pai e, por sua vez, minha enteada tornou-se minha mãe, e meu pai, ao mesmo tempo, tornou-se meu genro.
            Algum tempo depois minha madrasta, que ao mesmo tempo é minha filha, deu à luz um menino, que é meu irmão e neto de minha esposa, de forma que agora eu me tornei avô do meu irmão.
            Com o passar dos meses, minha esposa deu à luz um menino, que era, por sua vez,  irmão de minha mãe e neto de minha esposa, e com isso  eu sou avô de meu irmão.
            Mais tarde minha esposa deu à luz outro menino, que ficou sendo irmão de minha mãe, cunhado de meu pai e tio do meu irmão, pois era filho de minha enteada e de meu pai.
            Assim, minha esposa se tornou sogra de sua própria filha, sendo eu o pai de minha própria mãe.
            Por outro lado, meu pai e minha esposa são meus filhos;  meu pai e seus filhos são meus irmãos; minha esposa é minha avó, já que é mãe de meu pai. Consequentemente, eu sou sogro do meu próprio avô."

                                                      **************************

            Senhor Juiz:
            
            Despeço-me da vida e do mundo, porque não sei mais quem eu sou...

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quarta-feira, 6 de abril de 2016

UM CASO DE TEMPOS ATRÁS


              O caso que vou contar é um caso insignificante   -  talvez nem seja um caso  -  mas vou contá-lo assim mesmo, apesar de começar pelo meio e acabar sem fim.
             Eu morava na pequena cidade de Barbosa Ferraz e estudava Língua Portuguesa  e Literatura na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Jandaia do Sul, interior do Paraná. O Teobaldo, que também lá estudava, era um companheiro frequente de nossas noitadas, quando matávamos as aulas, e íamos beber cerveja num boteco das imediações.
            O Teobaldo tinha entrado facilmente em nosso grupo, sem que nenhum de nós pudesse explicar com clareza a sua origem. Sua principal atuação no grupo  consistia em rir quando dizíamos alguma coisa engraçada, e nos apoiar nas eventuais pendengas que aconteciam frequentemente, depois de duas ou três cervejas, não nos importando o rótulo.
            Creio que o vi pela primeira vez na lanchonete da Faculdade, e depois passamos a vê-lo quase toda noite. Às vezes, no ardor de nossas discussões "acadêmicas", aproveitando algum silêncio para acender cigarros, ele tentava dizer alguma coisa de sua lavra, mas quando nós o encarávamos com os cigarros já acesos e olhares impacientes, ele ficava vermelho,  engrolava uma desculpa e acabava encolhendo-se no seu mutismo já conhecido.
            Uma vez ou outra dávamos ao Teobaldo um encargo fácil, e púnhamos a mão em seu ombro como que procurando ajudá-lo. -. Ele então se envaidecia, e no seu rosto de fuinha brilhava um certo ar de contentamento.
            Em nossa turma, de que fazia parte, mas sempre quieto, não dizendo palavra, ele se contentava em oferecer um de seus "Cigarros Macedônia" para quem se dignava aceitá-lo.
            Não sei que fim levou o companheiro Teobaldo. Nunca mais o vi, depois que terminei a Faculdade. Talvez até já esteja morto. Terá levado para o outro mundo, quem sabe, o gosto de servir.
            Ora, uma noite, enquanto um de nosso grupo repetia certa anedota já ouvida mil vezes, notei uma aliança que dançava na magreza ossuda do dedo do Teobaldo. Pensei logo, maldosamente, que seria muito enfadonho para sua mulher viver indissoluvelmente com ele. Imaginei-lhe a casa; adivinhei-lhe a mulher de quem não tínhamos a menor notícia.
            Seria lá pelo lado do Jabaquara a casa do Teobaldo. Se ele tivesse filho, esse filho seria assim mesmo, magro, com aqueles olhos compridos e meigos, e teria certamente aquele jeito meio retorcido de rir. E a imaginação corria solta: nos domingos Teobaldo iria à Missa, pois se dizia muito religioso. Em casa, vestiria um "short" de listras azuis e andaria à toa, distribuindo conselhos para os filhos, se os tivesse. À noite, depois do jantar, o filho mais novo pularia nos seus joelhos, e com um brilho no olhar, diria à mamãe que, quando crescesse, queria ser como o papai...
           E eu continuava a dar rédeas à minha maldosa imaginação: como devia, mesmo, ser enfadonho viver sempre, todos os dias, jantar, dormir, acordar ao lado do Teobaldo!
           De repente, não sei por que cargas d´água  -  talvez coisa de algum diabo brincalhão  -   me veio à cabeça a pior das situações: ser eu o próprio Teobaldo!...
           Valha-me Deus!!!

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Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense e bacharel em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital paulista.
                                             
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sexta-feira, 1 de abril de 2016

O DESCONCERTO DO MUNDO



   
               
               Desde os meus tempos de estudante da Língua Portuguesa na Faculdade de Ciências e Letras de Jandaia do Sul, tive por hábito ler regularmente o meu poeta predileto, o príncipe dos poetas portugueses, Luís de Camões, tanto na épica, com os "Lusíadas", quanto na beleza inigualável de sua "Lírica". E guardo ainda, de memória, esta famosa estrofe da oitava 3;


                                           "Quem pode ser no mundo tão quieto,
                                             Ou quem terá tão livre o pensamento;
                                             Quem tão exp´rimentado e tão discreto,
                                             Tão fora, enfim, do humano entendimento
                                             Que, ou com público efeito, ou com secreto,
                                             Lhe não revolva e espante o sentimento,
                                             Deixando o seu juízo quase incerto,
                                             Ver e notar do mundo o desconcerto?"

               Que desejará o Poeta dizer com esse estranho "desconcerto" , que tantas vezes reaparece em muitíssimas partes de sua "Lírica"?
               Parece-me que ele quer, evidentemente, queixar-se de alguma coisa, ou de muitas. Ora, um dos riscos que se corre, quando se escolhe essa espécie de tom menor para dizer mal do mundo e da vida, é o de cair num pessimismo de convenção, pouco verdadeiro, que tanto pode ser atribuído aos maus humores do autor, como à falta de assunto. Falo por experiência própria...
             É sempre fácil dizer sentenciosamente que a vida é breve, e que os prestígios e aplausos do mundo são enganadores. Mas também ao leitor é fácil defender-se dessa débil agressão fechando o livro, e tudo fica na mesma, como se nada tenha sido escrito e nada lido.
             Outro risco que se corre é o de ser lido com a atenção que se costuma dar aos maldizentes, e até com a secreta volúpia que muitos encontram no elogio do mal.
             Com algum talento, até eu no meu blog consigo enganar o eventual leitor que, aliás, tenho quase a certeza  -  pois também sou leitor  -  gosta de ser enganado deste modo, e que encontra uma especial satisfação diante do universal espetáculo da imbecilidade humana.
             Dê-se ao leitor uma enxurrada de delitos, misérias, mentiras, baixezas, em frases bem cuidadas, e se poderá ver que ele se estica na sua poltrona, relaxa os menores músculos e, assim disposto, se entrega à delícia sem par de contemplar a miséria do espetáculo humano, assistido de um camarote propiciado pela Literatura...
             Muita coisa tem sido escrita nessa pauta da lamentação, com maior ou menor talento, e dessas engenhosas difamações de homem e de mulher, do mundo e da vida em geral  - e consequentemente de Deus  -  e o resultado é a presença de muita filosofia perversa que reforça a desordem denunciada, ou em que o escrevinhador se deleita.
            Nessa perspectiva, o espetáculo do desconcerto do mundo se torna opaco, e a inteligência que nele se compraz, julgando ter atingido a suprema compreensão, fecha-se sobre si mesma com um fúnebre e funesto contentamento!
            E me lembro, desta outra  lamentação ainda de Camões:

                                  "Já me desenganei que, de queixar-me,
                                    Não se encontra remédio; mas quem sofre,
                                    Forçado lhe é gritar e, se a dor é grande, 
                                    Gritarei...


           Gritando eu também, termino este meu texto com a convicção de que não pode ser convencional, nem pode deixar de ser verdadeiro esse recado de dores que vem de longe, através dos poetas autênticos e geniais, e essa dor que celebram parece ser uma dor do Universo expressa por boca humana. E digo mais: parece ser uma dor primeira que remonta até às origens deste mundo criado por Deus! Mas degradado pelo próprio homem!