segunda-feira, 25 de abril de 2016

ERA UM BOM MENINO...



             Uma tarde, andando ali pela Itupava depois de rodar vários quarteirões da XV de Novembro em visita a livrarias, vi  pelo reflexo duma vitrina um cidadão alto, magro, boné cobrindo os ralos cabelos mal penteados, com alguns embrulhos nas mãos. Como ia desprevenido, não pensando em nada, quase que o cumprimentei, respeitosamente, por ele me parecer mais velho do que eu.
             Mas logo percebi, assustado, que era eu mesmo que levava dois livros comprados há pouco, e sob os ombros encurvados, o ridículo de levar, também, os meus sofríveis oitenta anos.
             Sabia perfeitamente que chegara a essa malfadada idade, e tinha também uma consciência nítida da figura feia que fazia meu aspecto. Da idade sabia, de um modo repetido, constante, pelo habitual joguinho de gracejos a propósito dos oitenta anos, por parte de minha mulher e da neta adolescente. Na verdade, até hoje não atinei com a razão de certas idades serem consideradas sob o ângulo da gozação e da pilhéria.
            Quando temos um ano, todo o mundo nos acha encantadores e os adultos trocam risinhos cheios de cumplicidade por causa dessa ocorrência fenomenal. Lembro que na adolescência, em Barbosa Ferraz, andei encontrando novamente gozações em torno de meus modos desengonçados e sobretudo por causa de meus pobres ensaios de namoros com uma ou outra colega de ginásio.
             Agora, aos oitenta, mais uma vez sou atingido pela pilhéria em torno de minha careca crescendo cada vez mais dia após dia. Logicamente deveriam todos piscar o olho para o velhote, que está passando, sem dúvida alguma, pela mais interessante das transições!...
             Eu tinha, pois, consciência vigilante de meus muitos anos. Sabia-os hora por hora, minuto por minuto. Trabalhei no magistério estadual durante trinta anos, enfrentando má educação de molecões filhinhos de papai. Em casa, para mulher e filhos, como no ônibus, no barbeiro, nos armazém, em toda parte eu carregava a idade, já considerada provecta. Estava impregnado dela até o incômodo.
             Qual era então o motivo daquele espanto ao ver minha imagem na vitrina? Consultei-me atentamente. Não procurava a mágoa pela idade, mas a enigmática razão de não ser ela uma coisa realmente de meu íntimo, de não ter pegado, de não convencer. Queria a explicação, não da tristeza, que seria fácil, mas do espanto.
             Procurei investigar os momentos imediatos antes do susto.  Voltei atrás; repeti a experiência; tornei a passar diante da vitrina assobiando baixinho, mas só vi então a mesma  imagem já familiar, tendo nos olhos um ardor inquieto de investigação.
            Dias depois, numa experiência diferente, encontrei a chave do meu problema. Ia descendo uma rua do meu bairro, pensando no que ia fazer no centro.  Não me lembro agora o que era, mas descia a rua meio apressado quando, numa casa clara e com jardim na frente, abriu-se uma janela e do alto veio uma voz moça:
            - Carlinhos, vem prá dentro, olha o mormaço!
            Então recebi impetuosamente a lembrança de minha meninice em Poços de Caldas. Era um dia quente também; havia no ar morno uma repetição misteriosa, qualquer coisa sutil que me enchia o peito de ar novo e antigo. Uma janela se abrira com aquele ruído e do alto viera uma voz de mãe ainda moça:
            - Aroldo, olha o mormaço!
            Sei que o mormaço acabou ficando ausente de minha memória, porque hoje, neste outono cheio de sol, ninguém mais pensa nesse gênio morno e um pouco malfazejo que fazia as crianças de meu tempo largarem correndo seus brinquedos no chão, e obedecerem à voz da mãe!...
            Quem não terá encontrado cem vezes a sua infância assim? De fato, me parece que a infância ainda dorme dentro de mim, enrolada como uma espiral de mola, e salta de repente, e assusta, e fere, e dói, quando vejo, num reflexo da vitrina, um senhor já de idade, alto, magro, já um tanto careca.
            Vem-me então a vontade de gritar bem alto, para os passantes, meio envergonhado, que aquele lamentável adulto, encurvado, não sou eu. Tenho ímpetos também de perguntar aos transeuntes por onde anda aquele menino da longínqua Barbosa Ferraz.
             Onde está ele? Quem o viu? Era um bom menino...

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Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado de Português e Francês do Quadro Próprio do Magistério Paranaense.

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