terça-feira, 12 de abril de 2016

O DELÍRIO DE UMA QUEDA NA AVENIDA



            Dia atrás, andando eu ali pela XV de Novembro, bem diante de mim uma senhora já idosa caiu na calçada, com um ruído surdo e impróprio de um joelho batendo no calçamento. Ajudei-a  levantar-se, já que  eu era, no momento, o mais próximo dela.
             A senhora levantou-se, gemendo e olhando em volta, com certo espanto, talvez pela coisa tão insólita que parecia ter sido a sua queda vergonhosa.
             Com o afastamento da senhora, a praça pareceu-me subitamente parada e o tempo vencido por aquele inesperado encontro.  Tive a repentina intuição de que eu existia, eu era alguém, com o testemunho da senhora que me segurava no braço, procurando equilibrar-se. Parecia-me que entre nós se estabelecera um pacto, uma espécie  de delírio, que entraria eternidade a dentro.
              Mas a impressão foi logo desfeita e a eternidade se evaporou em poucos segundos. O movimento costumeiro da praça recomeçou, enquanto a senhora sumiu na esquina. Levava o seu segredo e o depoimento do meu; guardaria ela alguns dias uma mancha roxa no joelho; explicaria às filhas e às netas, com abundantes pormenores, como havia caído, e na sua estória confusa de velha, eu estaria associado como um cavalheiro alto, magro e um tanto quanto careca, mas de boa sina.
              Talvez, com o decorrer do tempo, eu passaria a ser uma sombra apenas, careca e com pesados óculos de grau. E quando a velha morresse, com toda certeza levaria consigo o último vestígio daquela cena inusitada; e depois ninguém mais saberia que naquela tarde, na movimentada Rua XV, zona central de Curitiba, nós dois nos tínhamos encontrado, eu e a capengante senhora.
             Continuando meu caminho, depois do infausto acontecimento, parecia-me que eu estivera metido em um engenho, lixado, mastigado, triturado, aos bocadinhos, pelos percalços não previstos da vida. Cada um de nós tem suas raias, e a avenida  só me respondia com o fluxo de gente, com o movimento perpétuo da cidade grande, com o gracejo das vitrinas, com a ironia fatigant das roupas e dos embrulhos e, com tudo isso na mente, eu voltei para casa revolvendo pensamentos sombrios e sem sentido aparente.
             E então  -  eu dizia para mim mesmo, num frenesi inexplicável   -  será melhor expor ao vento dos séculos o peito nu, rasgar as roupas, rasgar a carne, descobrir o próprio coração. E por que não, ser chama viva?  De que me adiantaria agasalhar carvões ardentes de consumo lento e cotidiano? É melhor, mesmo, ser chama viva que se veja de longe, e que crepite alto com a festa e a glória dos incêndios!

Nenhum comentário:

Postar um comentário