segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

NÓS NOS ACOSTUMAMOS...



          Dizem-me, os que sabem mais do que eu, que o tempo cura todas as feridas, e com o tempo a gente se acostuma até com aquelas feridas que mais dóem em nossa alma.
          A sós comigo mesmo, comecei a refletir sobre essa  opinião que ouvi de uma senhora, minha vizinha, e cheguei também à conclusão de que nos acostumamos a tudo com relativa facilidade.
          Sei que a gente se acostuma a andar na rua e ver caras conhecidas ou mostruários de lojas, como já me acostumei a revirar bancas de revistas e folhear jornais, buscando notícias ou anúncios que talvez me interessem.
           A gente também se acostuma com esse clima brincalhão de Curitiba, que está sempre fazendo das suas, dando-nos sol quando precisamos de chuva, ou dando-nos até medonhos temporais quando nosso desejo era um tempo tranquilo e ensolarado, para o veraneio nas praias.
           Há também a poluição e a violência de Curitiba, com a qual se acaba acostumando, as janelas de casa sempre fechadas, os portões sempre trancados a cadeado, pelo também costumado receio de eventuais larápios. Com as janelas sempre fechadas, logo nos acostumamos a nem mais abrir as cortinas.
           E porque não abrimos as cortinas, logo nos acostumamos a acender mais cedo as luzes, beneficiando a insaciável COPEL. À medida que se acostuma a isso, esquecemos o ar puro, esquecemos a amplidão do olhar por sobre a exuberância da Natureza.
           Acostumamo-nos a acordar de manhã cedo, tomar café às pressas, porque temos de levar os filhos ao colégio. Na rua, a gente se acostuma a não sorrir para as pessoas, até sabendo que não vamos receber um sorriso de volta.
           No meu caso pessoal, até já me acostumei a não cumprimentar o motoqueiro que me traz o jornal diário, aliás, também sem receber um "bom dia" seu, imerso que ele está em seu trabalho diurno.
            Muita gente se acostuma a não ouvir os passarinhos nas árvores ao redor de casa, a não ouvir os arrulhos dos pombos no telhado; a ter medo da hidrofobia no cão doméstico, ou até a não possuir uma planta ou uma flor dentro de casa.
            A gente se acostuma quase sempre para preservar a pele, para evitar feridas e sangramentos emocionais, para poupar os dissabores do dia a dia. Aos poucos, de tanto acostumar, nos acostumamos conosco mesmos, com os nossos egoísmos e rancores, a ponto de não mais sabermos desfrutar das alegrias da vida com nossos vizinhos e amigos.
            A gente se acostuma com muitas coisas para não sofrer. Em doses pequenas fingindo não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
            Mas, será também verdade que o tempo nos fará acostumarmo-nos com a ausência de uma pessoa muito querida, como sempre foi e como sempre será minha querida e falecida filha Raquel?

                                                     ******************

Aos seis heroicos leitores deste meu blog os meus sinceros votos de venturoso ano entrante...

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

CAPITU - A MENINA DE OLHOS DE RESSACA

         
       Capitu, a menina de olhos de ressaca, criação imortal de Machado de Assis, no "Dom Casmurro", livro meu de cabeceira, que leio por inteiro pelo menos uma vez por ano.
        A lembrança foi motivada, hoje, por estas palavras do José Carlos Fernandes, cronista da "Gazeta do Povo", às sextas-feiras:
            - "Fiz o test drive - discutimos com a mulherada a traição de Capitu. Upa-lelê."
             E eu não me contenho e apostrofo o JCF com estas palavras:
        - Prezado José, Você acredita mesmo que a menina dos olhos de ressaca traiu o velho Machado? Deveras? Aguardo, ansioso, resposta pela sua coluna na Gazeta.
            É verdade que Machado de Assis acusa Capitu do crime de traição. Isto não seria fruto de sua mente doentia e perversa? E eu fico me perguntando: por que será que o Machado foi assim tão cruel com a Capitu, uma das suas mais belas criaturas? Sempre ouvi dizer que ele, apesar de ser considerado o maior escritor brasileiro de sua época, era um sujeito meio casmurro, cínico, perverso mesmo, mas nunca pude imaginar que fosse Capitu quem deveria sofrer as malvadezas dele.
            Pobre Capitu! Não me chamo Bentinho, não morei nunca no casarão da "Matacavalos", mas não perdoarei ao Machado o que ele fez com Você, nem a esquecerei jamais! Quantas vezes ainda hoje, nas balbúrdias da vida curitibana, no silêncio do estudo, na concentração da prece, ou nos gestos do amor, eu me vejo de repente ensimesmado, distraído, pensando em Você, conversando com Você, nós dois sentados à beira do poço, na chácara do velho Pádua!
           Parece-me vê-la novamente, aquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita meio desbotado, os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, o riso claro, espontâneo e alegre. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças negras, com as pontas atadas uma à outra, a descer-lhe pelas costas, à moda do tempo...
           Ainda me lembro daquele dia em que, ao entrar na sala de visitas, ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. E ali, trêmulo, com medo de um espirro, ouvi o José Dias contar a minha mãe muita coisa de nós dois, que andávamos pelos cantos, aos segredinhos, e que, se pegássemos de namoro, então é que seria a dificuldade para me botarem no seminário, promessa de minha mãe.
               (PS: a bem da verdade, devo dizer que mais tarde, por outras circunstâncias, fui parar mesmo no seminário, aliás, em três deles, o de Ribeirão Preto, o de Campinas, e o Central do Ipiranga, em São Paulo e, não sei se por vingança ou por conveniência dos deuses, o fato é que, apesar de passar onze anos em três seminários diferentes, nunca consegui chegar a ser padre... apesar de que, na época, eu o desejasse...).
             Fugi da varanda. Ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca a fora. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:
           - "Sempre juntos... aos segredinhos... se eles pegam de namoro..."
           Ah! Capitu, naquele tempo tudo isso eram apenas travessuras de crianças, ainda não sabíamos analisar o que nos ia pelo coração. Você se lembra do dia em que eu a surpreendi no quintal escrevendo no muro com a ponta de um prego?
           Eu quis ver de perto e dei um passo. Você agarrou-me, mas, ou por temor que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e tapou o escrito com o corpo. Foi o mesmo que atiçar em mim o desejo de ler o que era. Dei um pulo, e antes que Você raspasse o muro, li dois nomes abertos ao prego, e esses nomes eram os nossos!
           Voltei-me para Você: Você tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, diria o velho Machado. Na verdade, eu e Você não falamos nada, o muro falou por nós. Daí então, Capitu, poderíamos ter sido muito felizes. Mas mamãe tinha feito promessa de botar-me para padre. E não havia jeito de tirar-lhe isso da cabeça, pois até o vigário da paróquia estava a seu favor.
            Você preferia tudo ao seminário. Até fugir Você me propôs, ou então ligar uma canoa a outra, fazer uma ponte de canoas até Roma, e lá pedir ao Papa dispensa da promessa. Nada lhe parecia difícil, pois Você era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, muito mais mulher do que eu era homem.
            E o tempo correu. Alguns meses antes de partir para o seminário, fui visita-la em sua casa. Encontrei-a na varanda, penteando os cabelos. Tomei o pente de suas mãos, desmanchei-lhe os cabelos, e eu mesmo quis penteá-los. E o fiz muito devagar, demoradamente, com carinho, desmanchando e penteando de novo, indefinidamente, como se quisesse segurar o tempo!
            Você refletia. A reflexão não era coisa rara em Você, mas nesse dia era uma reflexão toda especial. Você pensava em algum último e desesperado recurso para me livrar do seminário. Fiquei tão comovido com a sua dedicação, que corri à janela e comprei duas cocadas de um moleque que passava. Tive de comê-las sozinho, Você recusou. Percebi que em meio à crise, eu ainda achava tempo para cocadas, ao passo que Você não quis saber delas, e quanto Você gostava de doces!
            E o moleque foi cantando rua a fora o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância:
            - "Chora, menina, chora; chora porque não tem vintém!"
            Como se vê, Capitu, Você aos quatorze anos tinha já idéias atrevidas. Mas apesar delas. apesar do juramento que fizemos certa tarde à beira do poço de que um dia nos casaríamos, apesar dos mil Pai-nossos e das mil Ave-Marias que prometi aos céus, minha mãe me botou no seminário!
            E a nossa despedida, Capitu, Você se lembra? Foi de tardezinha, debaixo do caramanchão, e ali ficamos não sei quanto tempo, somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades!
            Vieram depois as lutas. Eu não queria saber do seminário. Os padres lustrosos e enfatuados me enfaravam. Enjoava-me o cheiro do incenso. Enfastiavam-me as longas rezas. A carolice dos companheiros dava-me nos nervos. E inventava planos para sair. E Monsenhor Cabral não deixava. O José Dias, cúmplice, não descobria logo a maneira mais honrosa de safar-me. Mamãe continuava esperançosa de ainda me ver um dia dizendo Missa. E Você lá na sua janela, pensando... pensando... E como sofremos nesse tempo, Capitu!
            Depois... depois... Ah, Machado de Assis, o que é que Você foi fazer da minha Capitu de olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada?

                                                          *******************
            ... e fecho o livro no ponto em que um dia o deixei, para chorar a traição de Capitu. E, chorando sua traição, sinto vontade de chorar também a morte da minha juventude, que jamais há de voltar!...
                                                       
                                                          *******************

       

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A PRECE NOSSA DE TODO DIA

           Quando fizermos nossa prece de todo dia, que nossos olhos se abram e comecemos com urgência a superar o próprio egoísmo, sair de nós mesmos e nos dedicarmos a atenuar, ao preço de qualquer sacrifício, a pobreza, a indigência, o abandono de todos quantos nos rodeiam, seja na família, seja na vida social.
            Que não deixemos para amanhã: comecemos, hoje, agora, sem arrebatamentos passageiros; com firmeza, decisão e pertinácia. Quando fizermos nossa prece de todo dia, que nossos olhos se abram e comecemos pela urgência de superar o próprio egoísmo, sair de nós mesmos e nos dedicarmos, ao preço de qualquer sacrifício, à busca por uma vida sem violência, sem malquerenças, sem desavenças, sem arrebatamentos passageiros, mas com decisão, firmeza e pertinácia.
            Que olhemos em volta para descobrir irmãos e irmãs, marcados pela mesma vocação de dizer adeus ao comodismo e de marcar encontro com todos os que têm fome de verdade e juraram dedicar a vida tentando abrir, através da Justiça e do Amor, caminhos seguros para a Paz!
             Que não percamos tempo em discutir lideranças e privilégios: o importante para nós seja unir-nos e caminhar, firmes, para o nosso objetivo, lembrados de que o tempo corre contra nós!
             Que demos o melhor de nós mesmos à imperiosa missão, através da qual, eu o espero com sinceridade, missão de procurar a Paz, o Amor e a Convivência Fraterna, sem jamais cair na conivência com o mal.
              E por que não começar nossa jornada diária com Fé e Esperança, rezando a prece de Francisco de Assis, fazendo que ela seja o ideal de nossa vida, e concretizando-a em cada um dos atos de nosso dia?
                              Senhor, fazei de mim um instrumento de Vossa Paz
                              Para onde houver ódio, que eu leve o Amor
                              Para onde há ofensas, que eu leve o Perdão
                              Para onde há discórdia que eu leve a União
                              Para onde há erro, que eu leve a Verdade
                              Para onde há dúvida que eu leve a Fé
                                                    
                                                           Para onde há desespero que eu leve a Esperança
                                                           Para onde há trevas que eu leve a Luz
                                                           Para onde há tristeza que eu leve a Alegria
                                                          
                              Ó Mestre
                              Que eu prefira consolar do que ser consolado
                              Compreender do que ser compreendido
                              Amar do que ser amado

                                                         Porque
                                                         É dando que se recebe
                                                         É no auto-esquecimento que se pode ser encontrado
                                                         É perdoando que se é perdoado
                                                         É morrendo que se ressuscita
                                                         Para a Vida Eterna
                                                         Amém!

                              

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Qual sua preferência: CÉU OU INFERNO?


          "Sempre gostei muito de piadas e estórias sobre Céu e Inferno" - diz o colunista da "Folha", Paulo Briguet. E eu, com licença dele, participo da mesma preferência.
          Uma amiga muito querida certo dia me contou uma anedota - não sei se de sua autoria ou do já citado Briguet - que transcrevo aqui pelo preço que me custou.
           Certo brasileiro foi condenado ao Inferno e, com muita má vontade, lá chegou e foi recebido pelo anfitrião, Satanás. E contra toda a sua expectativa, e para sua grande surpresa, o Inferno nada tinha daquilo que o pastor de sua igreja costumava falar em seus sermões. O fato é que o Inferno se lhe revelou como um lugar agradabilíssimo.
           Belas mulheres o abraçaram à sua chegada, encontrou velhos amigos, pôde servir-se de uísque e cerveja à vontade, música dançante e outras diversões de primeira qualidade.
           Após 24 horas de deliciosa farra no Inferno, o destino o levou para o Céu. Belas paisagens; corais angélicos regidos por João Sebastião Bach, um clima de paz e serenidade, para surpresa sua. Mas, azar seu, era brasileiro e, como de costume, estava de ressaca.
           Ao fim do dia, envergonhado do vexame, o brasileiro confessou a São Pedro que gostou mesmo é do Inferno, e lhe pediu que o despachasse para lá. E assim foi feito.
           Na sua chegada ao Inferno, foi recebido com alegria pelo Diabo em pessoa, que o levou cordialmente para as chamas, onde elas estavam mais ardentes. As belas mulheres e os muitos amigos tinham desaparecido. Não havia mais mulheres, nem amigos, nem uísque escocês. Só havia trevas e ranger de dentes, como tinha lido na sua Bíblia, quando ainda vivo.
           -"Mas ontem estava tudo muito diferente!" - queixou-se ele, já meio tostado pelas  chamas, ao Diabo.
           - "Só que ontem nós estávamos em campanha política no Brasil. E agora já  estamos em pleno mandato! - respondeu-lhe Satanás.
           Aí, então, o infeliz brasileiro condenado lembrou-se que era eleitor do PT...
                                                           *******************

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

"...chegou o tempo de dar presentes"


            Pois é, saio pelas praças e vejo intensa movimentação de pessoas, alto-falantes me azucrinando os ouvidos com suas propagandas em alto som, como se o estardalhaço atraísse compradores, muita gente já carregando sacolas, as lojas multicoloridas e tentadoras, abertas para aqueles que têm a compulsão de comprar.
           É que a folhinha, enfim, começa a marcar o tempo de dar presentes. Presentes para a esposa ou para o esposo, para os filhos, para os parentes, para os amigos e, em certos meios, para todos aqueles que podem abrir-nos uma porta para o êxito social ou profissional.
           Eu, confesso, ainda não entrei nessa ciranda, e até agora não senti nenhuma tentação de entrar. Mas o vizinho do condomínio ao lado me disse que já comprou. A vizinha da direita diz à minha mulher que também já comprou. É praxe. É costume. É de bom tom fazer tudo o que a tv e a mídia escrita e falada mandam e impõem. É tempo de a gente mostrar que está inserido na moda, além de que é sempre bom mostrar que se é pessoa fina e bem educada.
           Gosto de ver como se trocam cumprimentos efusivos, que se dão tapinhas amigáveis nas costas, que se permutam gentilezas e presentes, que se ouvem risos de satisfação e incontidos gritinhos de prazer, em meio a todo um misto de sofisticação e artificialismo, numa sociedade sofisticada, artificial e egoísta.
           Sociedade egoísta, sim. Pois não é Natal? E Natal não é a festa dEle? - "Ele veio para o que era seu, e os seus não O receberam." Foi o que já testemunhou o evangelista João.
           Não há lugar para ele na hospedaria. Negam-Lhe um lugar à mesa, entre a alegria dos filhos dos homens e das mulheres.
           Com que eloquência fácil seria possível ampliar esta frase desoladora! Não há lugar para Ele. Nem na família, nem na escola, nem na fábrica, na política, no judiciário, nas instituições públicas, no mercado financeiro, nem no fundo das almas pecadoras.
           No entanto, Ele não faz acepções de pessoas e vem para todos. Chegada a plenitude dos tempos, ele toma carne de homem, nasce de mulher, veste-se de pobre e bate a cada porta, pedindo um lugar à mesa. Escorraçam-nO, lançam-no para fora, pois a festa precisa continuar. Aí está a orquestra a todo volume já esquentando o salão; as champanhas e champanhotas espoucando em todas as mesas; o uísque importado ou falsificado amenizando o gelo dos corações e desfazendo naturais inibições.
          Que Ele apareça outro dia. Será que Ele não percebe que Sua presença nesta hora festiva não vem facilitar as coisas? Será que Ele não vê que está nos constrangendo, nos inibindo, nos tirando a espontaneidade tão necessária para este evento social?
           Não; é melhor mesmo que Ele se vá. Talvez O recebamos numa ocasião mais oportuna.
           E Ele continua Sua solitária jornada noite a dentro. Ele sabe que o mundo, apesar de sua aparência festiva e multicolorida, cheio de luzes e lantejoulas, é um mundo muito, muito doente. Doente do coração, doente da alma, doente de inafetividade, doente de desamor.
           Ele sabe que os mesmos homens e mulheres que agora O  escorraçam, amanhã pronunciarão Seu santo nome, por derrisão, na tentativa de justificar uma ordem social, política e econômica, que dizem ser uma ordem cristã.
           Outros, colocarão o símbolo de Sua vitória, a Cruz, nos lugares onde o pobre é escarnecido pela filantropia mecânica e legalizada, ou onde a Justiça e o Direito são vilipendiados pela força do dinheiro, da corrupção, ou dos interesses inconfessáveis.
           Mas Ele não desanima nem desiste. Prossegue imperturbável a Sua peregrinação, pois sabe que outros, muitíssimos outros, aqui e em todo o mundo, não hesitam em jejuar, passar uma noite em oração, privar-se até do necessário para repartir seu pão com o irmão faminto, na esperança talvez utópica de abrir um espaço para Ele, entre os homens e mulheres que agora O rejeitam.
           Ele sabe que entre as pessoas com que cruza pelas praças e ruas - nos seus rostos convencionais e tristes, nos seus gestos automatizados, nos seus sorrisos amordaçados, no olhar que se desvia, na palavra que se engole - Ele sabe que aí poderá haver ainda fé e boas ações. A seara hoje parece resumir-se num cipoal de espinhos, mas Ele, ceifeiro celeste, um dia percorrerá de novo os campos, e recolherá o punhado de trigo bom que puder conseguir entre as urtigas.
           É que Ele conta e julga de modo diferente de nós.
           E é nesta jubilosa esperança que todos nós, homens e mulheres deste mundo carente de Fé, Esperança e Caridade, colocamos e aguardamos nossa salvação.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

SONHOS DE UMA TARDE DE VERÃO



          Ele a encontrou à sombra de florido flamboyant, no jardim da cidadezinha. Não sei se esse encontro lhe trouxe alguma transformação para o futuro. O que posso afirmar, com certeza, é que nos rápidos momentos passados juntos, ela lhe proporcionou instantes de indizível felicidade.
 
                                                  *****************************
 
          Jovem camponês, filho de pequeno proprietário rural que teve seu sítio leiloado para cobrir dívidas de financiamento bancário, ao rapaz não sobrou outra alternativa a não ser deixar a enxada e o arado e vir tentar a sorte na cidade grande. Chegou há três semanas, com algum dinheiro no bolso de brim barato e um incêndio de boas intenções na cabeça.
          As avenidas rumorosas, a agitação poliforme, o trânsito desenfreado, o imprevisto e o inesperado assaltando-o a cada esquina, os odores diferentes, as roupas desinibidas e insinuantes das mulheres - coisa que não existia na roça - o maravilhoso das vitrines e dos logradouros urbanos, a cidade inteira alucina-o numa alegria deslumbrada.
          Na sua ingenuidade de recém-chegado, julga fáceis todas as coisas, abertos à sua frente todos os caminhos. Nesta ilusão perigosa, procura emprego com as mais fagueiras esperanças.
          Vê, porém, frustrados todos os seus anseios. Ou porque sua aparência não fosse lá bastante convidativa, ou porque a vida está mesmo apertada, o certo é que não conseguiu nenhuma colocação.
          Assim correm as semanas, as refeições vão-se encolhendo até se transformarem em míseros sanduíches de pão com mortadela, enquanto a cara da dona da pensão vai-se fechando a cada dia que passa. Situação trágica!
          Nesse dia o moço resolve dar o milésimo giro pela zona comercial, a ver se tem mais sorte desta vez. Aventura-se por um supermercado. Fala com o gerente. Oferece os seus serviços. O gerente não o conhece. O candidato não tem referências. Ademais, o salário mínimo subiu, os consumidores retraíram-se, a recessão bate à porta, a crise na Argentina assusta todo mundo: é necessário cortar na carne e, com isso, irá para a rua meia dúzia de funcionários. Voltasse outro dia. Talvez até lá surgisse alguma novidade.
          Desengano maldito!
          O pobre atira-se a todas as casas comerciais. Todas elas têm gente demais. Todas dizem que a tal política econômica do Governo acirrou a concorrência com os produtos importados da China, estão operando no vermelho, e que por isso são obrigados a comprimir despesas, não precisam de mais vendedores.
          Oficinas, bares, lojas de confecções, postos de gasolina, até mesmo um motel, tudo a mesma desculpa: não há vagas.
          E pelas calçadas rescaldantes, frustrado, arrependido de ter vindo para a cidade, caminha o infeliz na sua lentidão desiludida, coração opresso, até que cansado da busca infrutífera, se atira nos braços acolhedores de um banco de jardim.
          Foi então que ela chegou.
          E chegou faceira, cativante, ostentando suas graças e donaires na sedução irresistível das formas bem feitas. Como era linda! Encantadora mesmo! Se o rapaz estivesse a par da linguagem das novelas da televisão, diria que ela estava tentadora. Não conhecia essa linguagem, por isso se limitou a contemplá-la, embevecido, em muda admiração, pois nunca na sua vida ele viu uma beleza igual.
          E a borboleta - pois era uma linda borboleta, dessas grandes e douradas - atraída pelo perfume de rubicunda rosa, voava e tornava a voar, descompromissada, fazendo brilhar ao sol as suas asas de cetim. O divorciado da sorte deixa-se estar a namorá-la, na plácida modorra de um faquir. E então, aos seus olhos incrédulos, por entre as translúcidas asas da borboleta a voar, parece-lhe surgir tênue fumaça, que pouco a pouco se vai adensando até formar um rosto... e esse rosto é o seu!
          Nessa fantástica miragem, vê-se o rapaz transformado em grande ricaço, a exibir o fausto e a ostentação de uma situação privilegiada. A cada volteio da insinuante borboleta, mais e mais o rapaz se aprofunda no seu êxtase. É agora dono de rico palacete num condomínio fechado, centro de reunião de suntuosas festas da fina flor da sociedade local.
          Suas emoções crepitam. Passam-se minutos que lhe parecem séculos, neste deslumbramento de riquezas nunca jamais possuídas. Diante dele espelham-se, realizados, todos os seus mais ardentes desejos, e ele se vê na companhia de outros rapazes, de muitas e muitas moças maravilhosas, simpático, atraente, e com aquele ar desdenhoso e delirante da abastança regalada.
          As translúcidas asas da borboleta dourada transformam-se para o rapaz que sonha num televisor gigantesco, onde as imagens festivas do mundo se sucedem sem parar. O mundo está delirante, as pessoas cada vez mais belas e encantadoras, a cidade sempre mais cheia de magia, e ele entre tudo isto. Que delícia! Como é bom viver!
          O rapaz sonha. Está no auge de sua felicidade, com todos os seus desejos satisfeitos, apaixonado por todas as mulheres, possuidor de todas as comodidades da vida, fluindo todos os prazeres e luxos que só o dinheiro proporciona, quando um estudante, que enforcara a chata aula de Matemática, também avista as fulgurações da borboleta dourada!...
          Na ânsia de colher novo espécime para sua coleção, corre para ela, persegue-a, alcança-a, dá-lhe com o livro, derruba-a na grama verde do jardim. E, com ela, derruba também as falazes quimeras do infortunado sonhador!
 
                                                  ******************************
 
          O pobre moço vê destruída, de um golpe, toda a sua felicidade.
          Já agora o tortura o aguilhão da fome. Procura algumas moedas esquecidas no bolso. Nada. Vazio. E, melancólico, frustrado mais uma vez, roendo dolorosamente as unhas maltratadas, ergue os olhos para o horizonte longínquo, procurando, quem sabe, uma outra borboleta dourada que venha lhe trazer, por mais alguns instantes, outros retalhos de mentira à sua vida inútil e miserável!...

O MISTÉRIO DAS MÃOS



          Você alguma vez já fez uma pausa no seu dia-dia para pensar no mistério das mãos?...
           Elas se prestam a mil gestos e ações, e prouvera a Deus que todos esses gestos e ações sejam altamente construtivos, grandes e belos.
           Mãos postas, acompanhando preces ao Pai de todos os pais: e eu penso, de modo especial, em mãozinhas de crianças, que a jovem mão junta uma à outra, enquanto o filhinho ou a filhinha aprendem a rezar. Penso também, lembrando-me de minha velha mãe há tempos falecida, que estava sempre com as mãos postas, apesar de trêmulas pela idade, a rezar pelos filhos ausentes, perdidos pelos caminhos do mundo...
           Mãos de cirurgiões, que salvam vidas, não raro com extrema habilidade... Basta lembrar a perícia com que cirurgiões manejam cérebros e corações...
           Mãos calosas de trabalhadores braçais, quase sempre tão mal remuneradas.
          Mãos ágeis de datilógrafas nos meus tempos que já lá vão, e hoje mãos afinadíssimas de ágeis secretárias no manuseio de complicados computadores.
          Mãos de músicos - oh que saudades das tardes de retretas num coreto perto de minha casa nas noites de sábado e de domingo - que transportavam a mim e aos meus para além do espaço e do tempo, na pequenina cidade de Caldas, interior de Minas Gerais...
          Mãos que semeiam: sementes que serão alimento e sementes de Amor, de Esperança e de Paz.
          Mãos de pintores e de escritores, que fazem tudo para não trair os sonhos de beleza que estavam no pensamento e no coração do artista.
          Mãos de linotipistas que compõem o jornal com uma síntese do dia que estamos vivendo. Mãos de técnicos de rádio, de televisão e de cinema, que nos permitem viver, na hora, os grandes acontecimentos de qualquer parte deste nosso vasto mundo.
          Mãos que acariciam: mãos de mães, mãos de namorados, mãos de esposos...
          Seria facílimo continuar. Mas acho que é importante lembrar que as nossas mãos, capazes de tantas grandezas e tanta beleza sabem, também, distribuir desolação e morte.
          Observe ao seu redor, e verá mãos que se fecham, egoístas e avaras. Há mãos de terroristas, em várias partes do mundo, que chegam ao extremo de incendiar cidades, de arrasar, de ferir, de matar, de decapitar, como a televisão não se cansa de nos mostrar.
          Há mãos preguiçosas, especialistas em jogar em cima dos outros o trabalho que a elas mesmas lhes cabia fazer...
          Há mãos que roubam de ricos e até de pobres. E, muito triste, há mãos que sequestram pessoas, que as mantêm em cárcere, para exigências de dinheiro em resgate...
          Há mãos que metralham, jogam bombas arrasadoras, que queimam criaturas vivas, e ainda aquelas bombas em mãos das grandes potências mundiais, capazes de exterminar totalmente a vida sobre a nossa Terra.
          Ó Cristo, em Tua Encarnação, em Tua Vida Mortal, usaste Tuas Mãos de modo admirável! Dizem-nos os Evangelhos que Elas passaram fazendo o Bem!
           Que nossas mãos, à imitação das Tuas, sejam semeadoras de Tranquilidade, de Esperança, de Amor e de Paz!

sábado, 22 de novembro de 2014

PARTIR... CAMINHAR...



            Partir é, antes de tudo, sair de si. Romper a casca de egoísmo que tende a nos aprisionar dentro do próprio eu.
            Partir é não rodar, permanentemente, em torno de si, numa atitude de quem, na prática do dia-a-dia, se constitui no centro do Mundo e da vida.
            Partir é não rodar apenas em volta dos problemas das instituições ou centros sociais a que se pertence. Por mais importantes que elas sejam para nós, muito maior é a Humanidade, a quem nos cabe servir.
            Partir, mais do que devorar estradas, cruzar mares ou atingir velocidades supersônicas em modernas aeronaves, é abrir-se aos outros, aos nossos irmãos, descobri-los, ir-lhes ao encontro.
            Abrir-se às idéias, inclusive às contrárias, demonstra fôlego de bom caminheiro.
            Feliz de quem entende e vive este pensamento que, em certa reunião, tempos passados, eu ouvi do saudoso Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara:
            - "Se Você discorda de mim, não importa: com isso, Você me enriquece."
            Ter ao próprio lado quem só sabe dizer Amém, que concorda sempre com tudo, de antemão e
incondicionalmente, não é ter um companheiro, mas, sim, uma sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e não fira a Caridade fraterna, que ela seja fruto de uma visão diferente, a partir de ângulos novos. e que importa de fato, para nós, em enriquecimento.
             Sei que é possível caminhar sozinho. Mas o bom caminheiro sabe que a grande caminhada é a Vida, e esta supõe companheiros. "Companheiro" - lembra-me a etimologia da palavra - é aquele que come comigo o mesmo pão.
             Feliz de quem se sente em perene caminhada, e sempre vê, no próximo, um eventual e desejável companheiro de jornada.
             O bom caminheiro, no meu entender, é aquele que se preocupa com os companheiros desencorajados, sem ânimo, sem Esperança...
             Aquele que adivinha o instante em que o companheiro de jornada e de vida se acha a poucos palmos do desespero. Aquele que o apanha onde se encontra. Deixa que ele desabafe e, com inteligência, com habilidade, - sobretudo com amor - o leva a recobrar ânimo, a voltar a ter gosto na caminhada...
             Marchar simplesmente por marchar não é ainda verdadeira caminhada, no sentido em que eu a entendo.
             Caminhar é ir em busca de metas, é prever um fim, uma chegada, um desembarque.
             Mas alerto que há caminhada e caminhada.
             Para mim, que sou cristão - e faço questão de testemunhá-lo  - é partir, caminhar, mas é principalmente mover-se e ajudar muitos outros também a se moverem no sentido de tudo fazer por um Mundo mais justo e mais humano.
             E termino este meu texto com palavras de Dom Hélder Câmara, o Arcebispo de Olinda e Recife que, nos meus tempos de estudante de Teologia, foi meu mestre e confessor:

                                     - "Se discordas de mim, tu me enriqueces
                                         Se és sincero e buscas a Verdade
                                         e tenta encontrá-La como podes,
                                         ganharei
                                         tendo a honestidade e a modéstia
                                         de completar com o teu
                                         o meu pensamento,
                                         de corrigir enganos
                                         de aprofundar a visão 

                                                             Estás cercado de ti mesmo por todos os lados
                                                             Para te livrares de ti mesmo
                                                             lança uma ponte
                                                             por cima do abismo de solidão
                                                             que o teu egoísmo criou
                                                             Trata de ver além de ti
                                                             busca ouvir alguém
                                                             e, sobretudo,
                                                             tenta o esforço DE amar
                                                             ao invés de simplesmente TE amar..."

                                                   *********************

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A PARÁBOLA DA ESPERANÇA


                   - "Amsterdam, sexta-feira, 26 de maio de 1944.
                   Mais de uma vez tenho-me perguntado se não teria sido preferível para todos nós não nos escondermos, e estar juntos a esta hora, do que passar toda esta miserável situação, sobretudo por causa dos nossos protetores que, pelo menos, não estariam em perigo. Mesmo que esta idéia nos faça recuar, amamos ainda a vida, não esquecemos a voz da natureza, esperamos, apesar e contra tudo."
                  Terça-feira, 6 de junho de 1944.
                  A mais bela coisa do desembarque dos aliados é a idéia de me tornar a  reunir a meus amigos. Tenho sentido a faca na garganta e, oprimidos há tanto tempo por esses horríveis nazistas, não podemos impedir-nos de estar impregnados de confiança, pensando na salvação de nossos amigos.
                 ...Margot diz que talvez eu possa enfim ir à escola em setembro ou outubro."

                                                           *********************

                 Até aqui o diário de Anne Frank, que era judia e teve de se esconder durante meses, nos fundos da loja de uma pequena casa holandesa, na segunda guerra mundial.
                 Foi num livro de imagens consagradas a Israel que encontrei o texto acabado de citar, e que mais tarde, li integralmente no "Diário de Anne Frank", então publicado. Nesse livro de imagens, em página inteira, vem a fotografia de uma menina, levando na mão estendida um pinheirinho, um dos seis milhões que a juventude plantou nos arredores de Jerusalém, floresta de mártires, floresta dos seis milhões de judeus mortos pelos nazistas, e que o deserto fez reviver.
                Essa menina parece pensar em Anne Frank, da qual um texto que li mais tarde me informou que ela não foi à escola, porque morreu num campo de concentração, em Bergen-Belsen.
                A cabeça da menina está ligeiramente voltada para quem olha; à sua direita vê-se o braço de um rapaz, levando também uma muda de pinheiro.
                Ela tem o corpo envolvido em roupas pesadas, por cima da calça masculina; apenas um leve lenço lhe feminiza o perfil. Suas feições são pueris e sérias, porque os jovens de sua geração cresceram depressa. Os lábios são pequenos e carnudos. Seus olhos é que nunca se esquecem: muito abertos, calmos e sombrios, olham.
               Ali está a esperança que nasce, inscrita num gesto, e cantada pelo profeta Ezequiel, quando disse:
               - "Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. Eis que eles dizem: Os nossos ossos secaram e pereceu nossa esperança... Assim diz o Senhor: Eis que eu abrirei as vossas sepulturas, e vos farei sair dos vossos túmulos, ó meu povo, e vos trarei à terra de Israel."
               Que terra de Israel Anne Frank encontrou neste mundo? Eis a pergunta que nos faz esta jovem judia, porque o povo de Israel, ontem como hoje, é a imagem mais nua, mais miserável e mais verdadeira, da condição de homens e de mulheres neste nosso mundo de contestações,  de violências e de terrorismos sem freio. É a pergunta também que nos fazem os milhões de pessoas que morreram, e ainda morrem, hoje, cativos e aflitos, em seus corpos ou em suas almas.
               - "Que fizestes das esperanças dos homens e das mulheres? Que fizestes do Senhor, esperança do mundo?"
               Nós vivemos numa época incomparável e grandiosa, porque rica em possibilidades e em perigos. Mas se ninguém for capaz de se colocar à altura das suas exigências, ela poderá converter-se na era mais miserável da história, marcando penoso retrocesso da humanidade.
               Entretanto, a Criação inteira espera; NOS espera.
               E estaremos nós prontos para apostar tudo pela salvação dos homens, das mulheres e principalmente das crianças do mundo inteiro?

                                                                  **************

Aroldo Teixeira de Almeida - bacharel em Teologia e Filosofia
Licenciado em Língua Portuguesa e Francesa, pela Pontifícia Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC
Professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense
Tem dois livros publicados: "Páginas Esparsas",  e "Capitu".

 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

LIBERTAÇÃO


                                  (para minha filha Raquel, "in memoriam"):



                                                        "...e foi assim
                                                        que naquela madrugada de um outono quente
                                                        a alma vibrante da Raquel
                                                        aprumou-se ereta
                                                        colocou-se no ponto de extrema tensão
                                                        do arco de sua vida


                                                                       mirou com mil cuidados
                                                                       o seu alvo
                                                                       e flechou verticalmente
                                                                       o Céu
                                                                       em busca do Infinito"


                                             **********************************************

                                                                     
                                                               G Ê N E S I S

         
            No princípio era o Artista. E o Artista criou a Poesia.
            Depois criou o Céu e a Terra, com todos os seres que neles existem, para a glória da Poesia. Criou o Sol e a Lua. Criou as estrelas e as nuvens. Criou as fontes, o regato, o rio e o mar. Criou o beija-flor, o sabiá e o rouxinol. Criou o ar e o vento, para que neles voasse a Poesia sob a roupagem de sons musicais. E criou também a borboleta, a cigarra, a neve e o orvalho.
            Poderoso é o Artista!
            É como uma chama viva sobre cinzas esvoaçantes. É como uma torre altaneira em meio às águas marulhentas. Suas mãos, porém, são delicadas como as roupagens da neblina, pois souberam modelar as sublimes formas da Poesia.
            Estes foram os primeiros quatro dias da Criação.
            E o sol expulsou a lua, a aurora estendeu seus loiros cabelos por sobre a fímbria do horizonte, as borboletas cruzaram o ar, e os ninhos arrulharam nas copas das árvores.
            E o Artista, ainda com flores selváticas nos braços, ainda com os cabelos molhados pelo orvalho dos vales primitivos, saiu para contemplar a obra de suas mãos.
            E viu que tudo era bom. Somente a Poesia estava triste e melancólica no meio da Criação.
            O Artista, vendo-a triste, perguntou-lhe:
            - "Que tens tu, que te escondes envergonhada entre as obras que criei para ti? Dei-te um mundo de maravilhas sem fim: criei para ti a terra e o mar, as vagas do oceano e o murmúrio das fontes, a rosa e a violeta. Minhas mãos espalham nos ares flocos de neve alvinitente para que neles tu faças o teu sólio. Por que então não reinas sobre o mundo?"
            Respondendo ao seu Criador, a Poesia sussurrou que estava triste porque nada no mundo a amava. Nem o leão, nem o urso, nem a girafa, nem o boi, nem o cavalo, nem a fonte, nem a cascata. Nada havia sobre a terra que a amasse e a celebrasse.
            O Artista sorriu, e seu sorriso abalou os alicerces do mundo e as colunas que sustentam os sete céus. E falou assim:
            - Vou criar um ente à minha imagem e semelhança, que te ame como eu. Serás glorificada até os confins da Terra; teus adoradores se multiplicarão como as areias do mar e as estrelas do firmamento.
            Isto dizendo, tomou do cinzel e de um bloco de mármore. No alto do bloco abriu duas cavidades parecidas com os seus olhos divinos; mais abaixo outra igual à sua boca; desenhou as orelhas, afilou o nariz, esculpiu o tronco, os braços e as pernas.
            Afastou-se dois passos, colocou as mãos nos quadris, e admirou o seu trabalho. Achando que era bom, assoprou sobre ele o seu espírito divino, e surgiu o homem.
            Vendo, porém, que não era bom para o homem estar só, o Artista arrancou-lhe do lado um pedaço de sua carne, assoprou também sobre ele, e nasceu a mulher.
            E o homem e a mulher prostraram-se diante do Artista e o adoraram.
            E o Artista lhes disse:
            Eis que eu vos trouxe à vida unicamente para servirdes à Poesia. Vós devereis amá-la e servi-la fielmente. Ela é a senhora da criação inteira: dos pássaros, dos montes, da água das cachoeiras, da dança das folhas, do sol e da chuva, do arco-íris, do dia e da noite, do orvalho das madrugadas e do sussurro das brisas, das borboletas e das cigarras. Este é um mandamento eterno que eu vos dou e aos vossos filhos e filhas para todo o sempre.
           Este foi o quinto dia do trabalho do Artista. E ele viu que tudo era bom.
           Passado muito tempo, os filhos e as filhas dos homens e das mulheres tiveram outros filhos e filhas. E disseram entre si:
           O Artista nos criou para o serviço da Poesia. Para amá-la e servi-la em todos os dias de nossa vida. Vamos, pois, tomemos as arrecadas de ouro das orelhas de nossas donzelas, de nossos filhos e de nossas filhas, e façamos instrumentos musicais para o louvor da Poesia.
          E assim foi feito. Vieram outros também, e com a rima e o ritmo trazidos das terras de Ofir e de Golconda, teceram ricas vestimentas para a Poesia. E ela passou a reinar sobre o mundo. Seus súditos eram, pela multidão, inumeráveis como a areia das praias. E eles comiam, bebiam do seu vinho, fruto da uva, e se alegravam e cantavam, porque era poderosa a sua Rainha. Ela possuía sobre o seu domínio todos os homens e mulheres dos quatro cantos da Terra, desde os confins do país dos orientais, até a fronteira do ocidente.
         E os tempos correram. Como a Poesia se entristecesse, enfarada com o glória que tinha, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres:
          - Eis que nossa Rainha  está dominada pela tristeza. Vamos, pois, e façamos novas coisas que lhe restaurem a alegria. Edifiquemos um altar, e sobre ele ofereçamos-lhe incenso e sacrifícios, com os frutos da terra.
          Mas eis que o Artista lhes apareceu numa nuvem de fogo, entre relâmpagos e trovões. E lhes falou assim:
          - Ouvi, homens, e ouvi também vós, mulheres e crianças. Ide até aos mais distantes rincões da terra, colhei em vasos de alabastro os sorrisos da Poesia, do tempo em que ainda havia sorriso em seus lábios, e eu a farei novamente feliz.
         E assim foi feito. Vieram os filhos dos homens e as filhas das mulheres, e puseram mãos à obra, obedecendo às ordens do Artista. Recolhiam os sorrisos da Poesia nos raios do luar, nas gotas do orvalho, na tepidez dos ninhos, na brancura alcandorada das geleiras eternas, ou na pureza das crianças, ou na felicidade dos esposos.
         Todos trabalharam, todos obedeceram à voz poderosa do Artista. Colheram os sorrisos da Poesia em vasos de alabastro e entregaram ao Artista, para que ele tornasse novamente a Poesia feliz como nos tempos passados.
          E o Artista tomou os sorrisos da Poesia em suas mãos, abençoou-os, assoprou sobre eles o seu espírito divino, e transformou-os no Poeta. E disse ao Poeta:
          - Eis que os filhos dos homens e das mulheres não souberam amar a Poesia como eu lhes ordenei em mandamento solene. Por isso te criei, ó Poeta, e tu serás o seu único sacerdote em toda a face da Terra. Vai, pois, e faz dela novamente a rainha da Criação.
          Foi assim que nasceu o Poeta dos sorrisos da Poesia, pelas mãos fecundas do Artista. E este foi o último dia da Criação, e o Artista descansou de seu trabalho.
          A Poesia iluminou o mundo com a sua luz, quer durante o dia, quer durante a noite, quando o Sol vai repousar por trás das grandes árvores do acaso.
          Ela tudo alegra, tudo vivifica, torna mais linda a Terra. Sem ela nada haveria: nem o sol, nem a lua, nem o vento, nem o mar, nem a chuva benfazeja, nem o homem, nem a mulher. Nada haveria sobre a Terra, exceto o Artista, que a tirou de seu cérebro onipotente, pois a Poesia é o pensamento sublime do Artista que desabrochou na Terra e no Céu, criados ambos para a sua glória.
          Grande é o Artista!
          Grande e eterno é o Artista, criador sublime da sublime Poesia!
          A Ele a honra e a glória, por todos os séculos dos séculos, na voz de todos os Poetas!


                                                              *****************
         
   
         

sábado, 8 de novembro de 2014

VINDE, SENHOR, JESUS!


            `As moças e rapazes dos subúrbios da Capital paulista, entre os quais vivi as férias de 1963, porque tinham Fé, e aos meus colegas universitários da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, para que a Fé que vivíamos seja sempre verdade e vida em Jesus Cristo.`

                                                                  ****************

            Uma verdade que está sempre em meu espírito:
            Os cristãos deste século querem pão, pão verdadeiro, que sacie; querem água, água verdadeira que lhes estanque a sede; querem luz, a luz da verdade, que nunca se apaga. Querem ouvir a Palavra Divina, simples, poderosa, indo até à junção do espírito e das medulas.
            Essa Palavra de Deus tem um nome: Jesus Cristo, Nosso Senhor.
            Lembro-me muito bem até hoje: na pequena capela da Parada Inglesa, em São Paulo eu, como estudante de Teologia na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, passava o domingo nessa comunidade, levando até ela, dentro de minhas limitações, a Palavra do Senhor.
            Apresentava o Evangelho de São Mateus e, à terceira aula, o número dos ouvintes duplicava, e alguns se diziam convertidos à Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. Falava-se em Jesus: bastava pensar nEle.
            Era uma experiência inesquecível: à terceira semana, o número de ouvintes duplicava; alguns se diziam convertidos.
            Nesse tempo restabeleceu-se a Vigília Pascal: a pequena capela ficava cheia, os fiéis cantavam, ajoelhavam-se, deixavam o respeito humano à porta; olham e vêem; rezam, ouvem a homilia, e saem da capela com a certeza de terem vivido um novo "batismo".
            A explicação é muito simples: falavam-lhes na ressurreição de Cristo, pediam-lhes que se associassem a ela, na Fé batismal. Aqueles homens e mulheres, moças e rapazes, acreditavam. Quase sem o saber. Diante da palavra que lhes falava de Cristo, eles se surpreendiam crentes. Falavam-lhes de Jesus Cristo. Bastava pensar nEle.
            Gostaria de lembrar que o centro deste blog é Jesus Cristo. É nEle que a Igreja pede que se creia. Em mais ninguém. Porém, com Ele, nEle, no Pai e no Espírito Santo.
            Também eu, nestes meus setenta e oito anos de vida, depois de muitas aventuras e rodeios, me convenci de que devia voltar para Ele. Com a Graça de Deus, tenho consciência de que voltei.
            E hoje, neste modesto blog, tenho como única finalidade  fazer repetir, a todos aqueles que chegarem até estas páginas, e isso no mais íntimo da alma: - "Vinde, Senhor Jesus."

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

"Custos, quid de nocte?" - Sentinela, o que diz a noite?



          A salvação eterna é vida, justiça e amor, o laço que une homens e mulheres entre si, na unidade, por ser obra comum.
          Quem assistiu ao soberbo filme "Hiroshima meu amor" testemunhou como os amantes, no quarto, todas as manhãs ouvem um homem que passa tossindo debaixo da janela. A felicidade pessoal que não se tivesse aberto para essa "janela de Hiroshima" ficaria estéril. Estamos juntos para o melhor e para o pior. Estamos ligados umbilicalmente a esta terra, situados, encarnados, e a salvação só pode ser a justiça e o amor Neste mundo.
           Este mundo? Os crentes sabem disto: para que ele seja o lugar da chegado do Reino, ele deve ser "transfigurado", deve tornar-se "novo céu e nova terra" (Is 66,22; Rom 8,18-22).
           Os incréus suspeitam que haja nessa transfiguração um escamotear, uma mistificação, que faz esquecer a terra dos homens e da mulheres. Mas Jesus é a salvação, pois Ele é o Salvador. Em última análise, a salvação não é uma noção abstrata, mas uma Pessoa, a do Verbo feito carne, Jesus, que quer dizer "Salvador".
            Lembremo-nos que afirmações abstratas jamais converteram alguém. Somente o anúncio da Boa Nova, que é Jesus Cristo, pode tocar e levar os corações à metanoia, à conversão.
            Mas quem conhece realmente a Jesus Cristo? Escrevem-se livros para se falar do Cristianismo. E eles são escritos para estabelecer algumas balizas de salvação. Ao final, porém, se verifica que quase nada se disse de Jesus. Ele é o "Chefe que deve conduzir à Vida" (Heb 2,10). Não há salvação em nenhum outro, senão em Jesus Cristo.
            Ele é nossa esperança, nossa paciente expectativa, que nos concede ao mesmo tempo a força para esperar. É aquele que nos faz ouvir num estremecimento de alegria as palavras do Apóstolo Paulo, que um comentarista de televisão lia no início da peregrinação de Paulo VI à Terra Santa:
            - "A nossa salvação está agora mais próxima do que quando abraçamos a Fé. A noite vai muito avançada, e já se aproxima o dia" (Rom 13,11-12).
            -"Sentinela, o que diz a noite?" - canta Isaías, "o evangelista do Antigo Testamento".
            -"E tu, menino, serás chamado Profeta do Altíssimo; pois precederás o Senhor para lhe preparar os caminhos, para dar ao Seu povo a ciência da salvação pela remissão dos pecados."
            Estas palavras de Zacarias, em São Lucas, eu as faço minhas, pois apenas desejo uma coisa:
que os eventuais leitores deste blog possam representar, ainda que seja um só, a voz de um João Batista a "dar ao povo a ciência da salvação."
            -"Custos, quid de nocte?"

                                                          *******************

Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado de Português e Francês, do Quadro Próprio do Magistério do Paraná.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

"...e por falar em macacos..."


            Folheando um caderno de recortes de jornais antigos, encontrei um que noticiava terem os americanos colocado um macaco no espaço... E, sem dar-me por isso, comecei a matutar com os  dois botões de minha cueca samba-canção:
            - Qual a finalidade de um macaco no espaço? O que o pobre animal iria fazer nas alturas a que  os gringos o enviaram?
            Diziam ainda os malfadados recortes que o macaco voou (?) pelo espaço a uma velocidade fabulosa, apertando botões, puxando alavancas, e comendo pílulas com sabor de banana. E o mais impressionante: o danado do bicho enviava sinais para a Terra com regularidade impecável, tal como fora ensinado pelos treinadores.
            Tenho a certeza de que o macaco não se queixou nem do clima nem da fome lá nas alturas. E muito menos sentiu-se culpado por ser obrigado a essa viagem esquisita e inesperada para ele. Pelo menos os jornais, o rádio e a televisão nada disseram de que ele tenha ou não se sentido culpado de alguma coisa, a não ser pelo furto de uma outra banana, ali na quitanda do português, quando ainda em terra.
            E por que cargas d'água um macaco se sentiria culpado por voar pelo espaço a fora, apertando botões, puxando alavancas e comendo pílulas com sabor de banana?
           Diz ainda o noticiário que ele não foi tampouco importunado por nenhum problema metafísico ou teológico que por acaso lhe tivesse atacado o espírito, enquanto passeava pela imensidão do espaço sideral...
           Aliás, eu acrescento, para os desavisados, que o aventureiro viajor astronauta também nunca teve sentimentos de culpa, mesmo quando fazia suas travessuras na Terra. Quem dera que nós humanos também nunca tivéssemos que purgar eventuais complexos de culpabilidade!
           E, se algum dia, por alguma travessura do destino, eu ou Você tivéssemos a ventura (ou a desgraça) de subirmos ao espaço, não nos sentiremos culpados de nada. Mesmo que chegasse à Lua ou a Marte, nunca me sentirei com qualquer culpa. Talvez um pouco em Marte, em virtude de seu nome, que poderia levar-me a querer explodir o mundo mas, trá-lá-lá! Deixemos de pensamentos fúnebres, pois a vida é bela!
           Mas, que coisa! Lá vem de novo o tal pensamento: se eu tivesse a veleidade de tentar explodir o mundo, teria realmente alguma culpa no cartório? Deveria confessar-me com o vigário?
           Tudo isto de que venho falando aconteceu no dia em que fiz 78 anos de idade. Apertar botões, puxar alavancas, engolir pílulas com sabor de banana... Vamos ser razoáveis: a Civilização Moderna se dignou agraciar meu aniversário com este feito maravilhoso: botar um macaco no espaço! E eu deveria ficar magoado com isso?
           Deixem-me aprender alguma coisa a mais em minha vida com esse malfadado animal: ele apertou botões. Puxou alavancas. Alimentou-se à base de frutas. Foi atirado demasiadamente longe, lá pelos espaços siderais. E não reclamou de nada. Macaco feliz!
           Não faz mal. Ele sentiu-se animalescamente feliz, repito. Foi pescado são e salvo pelos americanos, ali no Oceano Atlântico.
           E o noticiário do jornal me informa que o macaco, em agradecimento, apertou as mãos do pessoal da  gloriosa Marinha Americana que o resgatou do mar.
           Sim, é verdade, ele apertou as mãos dos americanos! Esta não é a melhor parte da história?
          
           

              

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O SILÊNCIO DE DEUS



            "...Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
            "...e Deus não disse absolutamente nada!"

                                                     ****************************

            Em certo sentido, homens e mulheres estão cercados por todos os lados pelo terrível e inexplicável silêncio de Deus.
            "Ah! Se rompesses os céus e descesses até nós! As montanhas se desmanchariam diante de Ti." (Isaías 63,19).
            Homem e mulher experimentam uma dificuldade quase insuperável no seu ansiado contato com Deus. Isto porque Deus, enquanto mistério indizível, não pode ser encontrado em nosso mundo; parece não poder entrar neste mundo com que temos de nos haver, pois que assim se tornaria o que Ele não é, a saber, uma realidade singular lado a lado com outra realidade que não Ele.
            Entretanto, para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir, este silêncio e este alheamento de Deus é aparente. Tempos atrás, comentando sabiamente o clamor do então Papa Bento XVI sobre barbaridades ocorridas na segunda guerra mundial,, o rabino judeu Sami Goldftein disse que o massacre de Auschwitz, na Polônia, foi obra da liberdade e do livre arbítrio do homem, incondicionalmente respeitados por Deus. E explica que Deus nunca esteve ausente, mas presente sempre na grande corrente de pessoas bondosas inspiradas por Ele e que em todo o mundo acorreram sem demora para socorrer e ajudar os judeus perseguidos e necessitados.
           Na verdade, para nós cristãos Deus nos fala sem cessar, nas páginas das Sagradas Escrituras, na beleza e esplendor da Natureza, no sorriso da infância despreocupada, nos acontecimentos bons do dia-a-dia.
           Deus desceu sobre a Terra na pessoa de Jesus Cristo e se fez um de nós. E a presença de Deus entre nós não é apenas uma presença figurada como na Arca da Aliança. É uma presença tão difundida e tangível, que nos envolve por todos os lados, como também envolve o Mundo. Presença que se tornou concreta e palpável na Encarnação: Deus se fez carne na pessoa de Seu Filho, levantou Sua tenda entre nós, entrando na História humana para dela não mais sair.
           Para nós, a vida histórica de Jesus é a revelação mais plena do Deus cristão, um Deus que se manifesta a nós e nós O acolhemos pela mediação de Jesus de Nazaré. Em Jesus, Deus Pai Se interessou de tal modo por nós que quis participar intimamente do nosso destino, e assim tornar-se o Deus próximo e familiar, o "Deus conosco", o "Emanuel" que conhecemos pelos Evangelhos.
           Não há silêncio de Deus. Nós é que sufocamos os apelos divinos com os nossos barulhos inúteis. Não há silêncio de Deus, e sim incapacidade humana para captar imediata e claramente a Sua voz. Voz que insiste, apesar de tudo, e que é experimentada quando alguém a recebe como dom pessoal e gratuito. Deus não Se mostra ou Se revela de modo arbitrário, mesquinho ou favoritista: revela-Se a todos e desde sempre na generosidade irrestrita do Seu amor gratuito e incondicional.
           Cumpre-nos então viver lado a lado com Ele, que não é um Deus distante e escondido por detrás das nuvens. Eis aí Sua casa no meio de nossas cidades, no meio de nós. É como um vizinho e amigo que mora em nossa vizinhança, em nosso bairro. É o grande companheiro, o camarada no sofrimento, o anti-mal por excelência, que ilumina o assombro do nosso existir e alimenta em nós a confiança mais radical na aventura da vida.
            É verdade que nas páginas da Bíblia Sagrada, começando por Jó: - "Pereça o dia em que nasci, que sobre ele não brilhe a luz" - continuada pela voz pungente do salmista - "Por que, Senhor, Tu me rejeitas, por que me escondes Teu rosto?" - Assumido dramaticamente por Jeremias nas suas "Lamentações": -"Clamar ou gritar nada vale. Ele está surdo à minha prece" - até culminar no angustiado grito de Jesus de Nazaré na cruz, este gemido secular perpassa por toda a Bíblia, num clamor contínuo e sem resposta:
            - "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Clamo de dia, e não respondes, grito de noite e não encontro repouso". (salmo 22).
            Nos Evangelhos  a tradição existencial do silêncio de Deus aparece de forma muito implícita  em dois momentos muito importantes da vida de Jesus de Nazaré: no horto das oliveiras e na cruz.
            Já em nossos tempos, visitando o campo de concentração de Auschwitz, onde milhão e meio de judeus foram mortos pelos nazistas, o Papa Bento XVI deixou-se levar pela emoção e lançou também ao mundo este brado que surpreendeu e comoveu a todos nós:
            - "Por que, ó Senhor Deus, o Senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava Deus naqueles dias? Por que ficou Ele em silêncio? Como pôde permitir esse massacre sem fim, essa vitória do mal?"
            E eu, parodiando a pungente pergunta do judeu-alemão Hans Jones da Europa do pós-guerra:
            -"Onde está Deus? Onde está Deus quando nos acontece uma desgraça ou nos sentimos mortalmente infelizes? Como se situa Ele em nossa vida e em nossa História, carregadas de violências e de crimes inomináveis?"
             Deixo aqui estes questionamentos para nossa reflexão, na busca de uma resposta o mais possível satisfatória e que nos convença definitivamente de que, nas palavras da menina judia Anne  Frank: - "Deus nunca nos abandonará!"

                                                              *********************

Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado de Português e Francês do Quadro Próprio do Magistério Paranaense e Bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora  da Assunção, da Capital paulista.