segunda-feira, 13 de junho de 2016

EU... E O OUTRO!

        
           "Rose, oh heiner Widerspruch , Lust; Niemands Schalaf zu sein unter soviel Lidern!"
           "Rosa, ó pura contradição, alegria de ser o sono de ninguém, sob tantas Pálpebras"
          
             (Epitáfio de Rainer Maria Rilke, poeta tcheco de minha predileção, encontrado no seu livro "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge", publicado após sua morte, em 2 de janeiro de 1927).
          

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           Um fato, que de vez em quando me intriga: o problema do "outro
Por mais habilidoso e intelectual que eu pretenda ser, o "outro" me persegue. Ele vem a mim,
bate em minha porta, viola meus olhos e ouvidos, segura meu braço quando digito este texto. O fato é que, goste ou não, eu quero esse outro, esse próximo, com proximidade, tenho fome, sou pobre que não me sustento com generalidades e generosidades, porque tenho pressa de pão.
           Considero-me pobre do outro, como se o sangue de minhas veias não me bastasse e fosse urgente trocá-lo, numa transfusão quente e viva, de coração para coração.
           Preciso do outro, para o fazer comum, mas muito mais para o uso comum, da palavra e do trigo. Preciso do outro, para construir cidades e para ouvir um disco. Para ler livros escritos, e para ter leitor que leia meus pobres blogs. Para tudo; e para nada.
           Para andar no mesmo caminho, à toa; para estar ao meu lado em silêncio. Pelo calor da proximidade, pelo conforto da compreensão. Preciso da esmola do "outro"; da esmola viva, dele mesmo, como ele é, outro mas próximo.
           Quando vou andando nas ruas e avenidas de Curitiba, no meio  da acabrunhante solidão das ruas, e vejo surgir de repente entre ombros e cabeças alheias a velha face conhecida, a boa face amiga, o tempo para e meu sangue se aquece. É bom ver o rosto do amigo, da amiga; então já não estou só. Antigo susto que desde a infância me persegue, medo de escuro e de solidão, se desfaz quando encontro o amigo, quando encontro a amiga.
            Sou pobre, fundamentalmente pobre, de carne e de espírito. Pobre como criancinhas que morreriam de fome e de medo, se o mundo não fosse para elas um jardim cheio de mãos estendidas.
            O adolescente, por ter crescido um palmo em um ano, se gloria de ser um obelisco solitário perambulando num deserto. Sua grandeza e sua virilidade consistem em andar só, em arrumar-se, em bastar-se. Repugnam-lhe as mãos que o amparam porque se completa com sua própria mão.
            Muita gente fica a vida inteira nessa idade, envelhece numa adolescência orgulhosa, falando alto que não precisa de muletas,  não precisa do outro, de ninguém,  por ser o mais livre dos homens, o mais independente, autor de seus próprios dias, tutor de todo o universo!
            Bendita seja a nossa pobreza, e benditos os ombros que encontramos para nos servir de
muletas!
            E é por isso que, mesmo no seio da família mais feliz e mais completa, ainda falta alguém. Falta o hóspede. E é por isso que toda a gente de casa se alegra quando o hóspede bate à porta. Benvindo seja! O pai de família se levanta com vivacidade, vai ao encontro do esperado, com a mão estendida, num gesto de dar e receber, num gesto de mendigo e de rei!

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            Mas a vida é triste. A experiência banal de cada dia nos enche de decepções. Uma dolorosa desproporção parece existir entre a nossa natureza e nossos maiores anseios. O ser dança diante da inteligência; a idade pesa; o próximo decepciona e trai.
             Nossos três sentidos tateiam à procura de um objeto. Onde está ele, esse "Outro," cuja presença velada nos agita? Por que nos escondeu Ele a sua face?

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Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense e bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, SP.


     

terça-feira, 7 de junho de 2016

QUEM PENSA NÃO CASA...



            Sempre achei este provérbio um tanto quanto imbecil, mas há muita gente que gosta de citá-lo, e como há gente para todos os gostos, dou a mão à palmatória e boto o danado do provérbio como título do blog de hoje, e cada qual se divirta como lhe aprouver...
            - "Quem pensa não casa". Pois é, o fato é que não pensei, e por isso estou casado até hoje, já lá vão mais de cinquenta anos!!!
            Muita gente costuma ver nesse provérbio um encorajamento para se ficar, durante a vida inteira, fechado numa prudência burguesa. "Pensar", nesse caso, quer dizer: calcular despesas, prever doenças, avaliar a liberdade perdida em confronto com os novos encargos contraídos.
            Quem pensar assim com certeza não casará; resta-lhe a sabedoria negativa do provérbio para consolo próprio. Não casa, mas pensa. É livre e pensa; é uma espécie de livre pensador.
             Atrás desse sentido comodista, o provérbio encerra uma advertência e sugere que é melhor casar do que ficar pensando. Quando um sujeito - e falo principalmente de mim - nos caprichos da vida, encontra determinada moça que acha de seu feitio e que lhe corresponde, tem essa alternativa: escolher ou pensar. O escolher é precedido, evidentemente, já que somos seres racionais, de um certo tempo para pensar. É de toda prudência que se conviva com a moça, que se converse, que se observem umas tantas coisas antes de decidir a escolha, ou de cair no abismo...
              No meu caso particular, a tarefa nunca me pareceu fácil. A moça pretendida se escondia atrás de certas manobras que, no dizer de muitos estudiosos do assunto, lhe moram nas glândulas...
              O pretendente a marido pode estar certo de que ela mudará enormemente; não é assim como ela se ri agora, que ela vai rir depois de casada; não é disso que chora hoje, que mais tarde vá chorar. Seus gestos e modos serão diferentes, sua forma física, tão atraente hoje, se alterará, e sua própria voz, que tanto agrada hoje, será mais alta e mais dura no futuro cotidiano.
               Mas, num certo ponto do eventual namoro, é preciso decidir. Ou escolhe esta, deixando de lado todas as outras, e se entregará somente a esta, correndo todos os riscos, aguentando todas as consequências, jurando desde já, no seu coração apaixonado, aguentá-las pelo resto da vida, tendo confiança pelo pouco que sabe sobre ela, trocando generosamente o pouco pelo muito,  empenhando a vida inteira em cima de alguns meses que já passaram; ou então, é melhor não casar, e ficar pensando, pensando... E se pensa, não casa.
               Não é por nada não. É que não pode passar a vida inteira pensando. Sondando, sopesando, excogitando... Conheci diversos casos de amigos meus, cujos tristes namoros duraram mais de vinte anos... Por que isso?
               Porque o noivo pensava, pensava... E num caso desses, em vez de festa de núpcias, houve luto e cemitério... Porque o noivo morreu pensando!...
               Que a terra lhe seja leve!

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(Dedico este texto a todos quantos, nesta minha Curitiba, estão por aí, pensando... pensando... Caso ou não caso???).

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sexta-feira, 3 de junho de 2016

ONDE ESTÁ O HOMEM ESTÁ O GEMIDO...



            A literatura aparece na história da humanidade muito depois da pintura, diz-me a história da arte. Mas logo que aparece, nos primeiros documentos escritos na Babilônia, no Egito, no Extremo Oriente, com a literatura surge também a reclamação pré-histórica, a queixa acumulada, represada, o gemido que ficara escondido nas belas figuras de animais e guerreiros,  gravadas em pedra pelo homem primitivo.
            Daí, pode-se dizer, sem risco de erro, que onde está o homem, como também onde está a mulher, está também o gemido... Não o gemido genérico do ser vivo e sensível, não o gemido do animal ferido que sente a terra entreabrir-se para devorá-lo; mas o gemido do homem e da mulher, isto é, o gemido da alma erguida que pede aos deuses explicações, e que espera ver entreabrir-se o céu até então insensível e distante.
            Lendo os livros de autores antiquíssimos, como Homero e Virgílio, homem e mulher ouviram a ninfa Samitu dizer a Gilgamesh, o herói sumeriano, que os deuses criaram a humanidade; e, com a humanidade, instituíram a morte para homem e mulher, e guardaram a vida nas suas próprias mãos.
            E ainda, nessa alvorada da História, o clamor se alastra: na Pérsia de Zoroastro homem e mulher não passam de joguete na luta lendária do deus Arimã contra Ormuzd, o deus do mal contra o deus do bem, que acabarão por infiltrar seu dualismo maniqueu no nascente mundo cristão.
            Na Índia os sábios ensinam a lição do aniquilamento físico e mental, porque tudo é ilusão. O mal é um sonho mau, como o bem é uma miragem vã: "Como se o rei da ilusão fosse vitorioso contra outro rei da ilusão."
            Mais tarde, como que em ricochete, Hamlet dirá "sonho de uma sombra"; e eis que surge Çakia-Muni, no seu famoso "Sermão de Benares", que encontrei no livro do brasileiro Gustavo Corção, "O desconcerto do Mundo":
            - "Eis aqui, ó monges, a verdade santa da dor: a doença é dor. A morte é dor. A velhice é dor. A união com tudo o que amamos e a desunião do que amamos também é dor. Não alcançar o que se deseja é dor. Em resumo, há cinco objetos de apego que são dor. É a sede de existência, que conduz de renascimento em renascimento, acompanhada do prazer e da concupiscência que aqui e ali encontra um gosto. E eis aqui, ó monges, a verdade santa sobre a supressão da dor: é a extinção dessa sede pelo aniquilamento completo do desejo."
            E bem mais perto de nós, estudando o grego antigo na Faculdade de Filosofia e Letras, ouvi o resmungo mal humorado do poeta Hesíodo: - "O homem não é senão calamidade..."
            Tudo isso, e mil vezes mais do que foi dito e escrito no mundo pagão, que não via portas de salvação para homem e mulher, por incrível que pareça fui surpreendido pela poderosa lamentação do povo eleito, como li no "Eclesiastes":
             "Para mim, a obra que se faz sob o sol é má, pois tudo é vaidade e perseguição do vento."
             E o mesmo livro, considerando as opressões que se praticam no mundo, diz que ninguém   nos consola. E conclui, com maior pessimismo:
             - "Cheguei à conclusão de que os mortos são mais felizes do que os vivos que ainda são vivos. Mas ainda mais felizes são os que nunca existiram."
             Assim vem, de todos os cantos do mundo, século após século, esse longo gemido, emendado, continuado, transmitido como uma tradição de amargura. E pergunto: poderá alguém ainda me dizer  que esse tom é puramente literário, é fabricado em série por ser o mais fácil? Poderá ver em algum daqueles vetustos livros de consolação a nódoa do pedantismo ou da vulgaridade? 
              Mas tenho a certeza de que esse fato não tira a significação e o valor daquele outro. Por mais fácil que pareça o tom que maldiz  do mundo e da vida, ainda é forçoso reconhecer que esse tom se encontra nas obras mais apuradas dos mais altos espíritos da antiguidade clássica.
              Quero frisar bem a contrafacção e a explicação tipicamente cristã sobre o que venho expondo até o momento:
              O desacordo, a inconformidade, a incongruência entre homem e mulher, com o mundo do sofrimento e da dor, explica-se pela miséria de homem e de mulher, mas em parte maior e principal se explica pela glória de ambos. Não é por falta de órgãos ou de membros que homem e mulher se lamentam de um principal sofrimento: é por excesso!
             Homem e mulher, com toda a sua pequenez de verme ou de caniço, como já disse Pascal nos seus "Pensamentos", são sim um "caniço pensante".  Um ser que tem em si, no centro, no diâmetro de sua alma, já aqui e agora, dimensões de eternidades. E como se não bastasse tal estatura para desequilibrá-lo  no mundo, é ele ainda um ser imitado pela Pessoa divina que Se fez carne, e que veio nos trazer um convite para uma festa no Céu, na intimidade de Deus.
             Seguindo ainda Pascal, eu digo que não é bom falar da miséria humana sem lembrar sua miséria pessoal. Ora, o mundo, num de seus mais acabrunhantes desconcertos, vem falando demais da miséria humana; e até para corrigir esta ou aquela especial miséria, agrava as outras.
              Eu, na minha insignificância,  não posso pretender, sem uma loucura maior do que a que sempre tenho, que estas pobres linhas que digito possam neutralizar os desconcertos do mundo. Mas posso descrevê-las com o espírito de quem traz uma pequena contribuição pessoal, como o faço neste momento.

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Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense, e bacharel em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital paulista.