sexta-feira, 3 de junho de 2016

ONDE ESTÁ O HOMEM ESTÁ O GEMIDO...



            A literatura aparece na história da humanidade muito depois da pintura, diz-me a história da arte. Mas logo que aparece, nos primeiros documentos escritos na Babilônia, no Egito, no Extremo Oriente, com a literatura surge também a reclamação pré-histórica, a queixa acumulada, represada, o gemido que ficara escondido nas belas figuras de animais e guerreiros,  gravadas em pedra pelo homem primitivo.
            Daí, pode-se dizer, sem risco de erro, que onde está o homem, como também onde está a mulher, está também o gemido... Não o gemido genérico do ser vivo e sensível, não o gemido do animal ferido que sente a terra entreabrir-se para devorá-lo; mas o gemido do homem e da mulher, isto é, o gemido da alma erguida que pede aos deuses explicações, e que espera ver entreabrir-se o céu até então insensível e distante.
            Lendo os livros de autores antiquíssimos, como Homero e Virgílio, homem e mulher ouviram a ninfa Samitu dizer a Gilgamesh, o herói sumeriano, que os deuses criaram a humanidade; e, com a humanidade, instituíram a morte para homem e mulher, e guardaram a vida nas suas próprias mãos.
            E ainda, nessa alvorada da História, o clamor se alastra: na Pérsia de Zoroastro homem e mulher não passam de joguete na luta lendária do deus Arimã contra Ormuzd, o deus do mal contra o deus do bem, que acabarão por infiltrar seu dualismo maniqueu no nascente mundo cristão.
            Na Índia os sábios ensinam a lição do aniquilamento físico e mental, porque tudo é ilusão. O mal é um sonho mau, como o bem é uma miragem vã: "Como se o rei da ilusão fosse vitorioso contra outro rei da ilusão."
            Mais tarde, como que em ricochete, Hamlet dirá "sonho de uma sombra"; e eis que surge Çakia-Muni, no seu famoso "Sermão de Benares", que encontrei no livro do brasileiro Gustavo Corção, "O desconcerto do Mundo":
            - "Eis aqui, ó monges, a verdade santa da dor: a doença é dor. A morte é dor. A velhice é dor. A união com tudo o que amamos e a desunião do que amamos também é dor. Não alcançar o que se deseja é dor. Em resumo, há cinco objetos de apego que são dor. É a sede de existência, que conduz de renascimento em renascimento, acompanhada do prazer e da concupiscência que aqui e ali encontra um gosto. E eis aqui, ó monges, a verdade santa sobre a supressão da dor: é a extinção dessa sede pelo aniquilamento completo do desejo."
            E bem mais perto de nós, estudando o grego antigo na Faculdade de Filosofia e Letras, ouvi o resmungo mal humorado do poeta Hesíodo: - "O homem não é senão calamidade..."
            Tudo isso, e mil vezes mais do que foi dito e escrito no mundo pagão, que não via portas de salvação para homem e mulher, por incrível que pareça fui surpreendido pela poderosa lamentação do povo eleito, como li no "Eclesiastes":
             "Para mim, a obra que se faz sob o sol é má, pois tudo é vaidade e perseguição do vento."
             E o mesmo livro, considerando as opressões que se praticam no mundo, diz que ninguém   nos consola. E conclui, com maior pessimismo:
             - "Cheguei à conclusão de que os mortos são mais felizes do que os vivos que ainda são vivos. Mas ainda mais felizes são os que nunca existiram."
             Assim vem, de todos os cantos do mundo, século após século, esse longo gemido, emendado, continuado, transmitido como uma tradição de amargura. E pergunto: poderá alguém ainda me dizer  que esse tom é puramente literário, é fabricado em série por ser o mais fácil? Poderá ver em algum daqueles vetustos livros de consolação a nódoa do pedantismo ou da vulgaridade? 
              Mas tenho a certeza de que esse fato não tira a significação e o valor daquele outro. Por mais fácil que pareça o tom que maldiz  do mundo e da vida, ainda é forçoso reconhecer que esse tom se encontra nas obras mais apuradas dos mais altos espíritos da antiguidade clássica.
              Quero frisar bem a contrafacção e a explicação tipicamente cristã sobre o que venho expondo até o momento:
              O desacordo, a inconformidade, a incongruência entre homem e mulher, com o mundo do sofrimento e da dor, explica-se pela miséria de homem e de mulher, mas em parte maior e principal se explica pela glória de ambos. Não é por falta de órgãos ou de membros que homem e mulher se lamentam de um principal sofrimento: é por excesso!
             Homem e mulher, com toda a sua pequenez de verme ou de caniço, como já disse Pascal nos seus "Pensamentos", são sim um "caniço pensante".  Um ser que tem em si, no centro, no diâmetro de sua alma, já aqui e agora, dimensões de eternidades. E como se não bastasse tal estatura para desequilibrá-lo  no mundo, é ele ainda um ser imitado pela Pessoa divina que Se fez carne, e que veio nos trazer um convite para uma festa no Céu, na intimidade de Deus.
             Seguindo ainda Pascal, eu digo que não é bom falar da miséria humana sem lembrar sua miséria pessoal. Ora, o mundo, num de seus mais acabrunhantes desconcertos, vem falando demais da miséria humana; e até para corrigir esta ou aquela especial miséria, agrava as outras.
              Eu, na minha insignificância,  não posso pretender, sem uma loucura maior do que a que sempre tenho, que estas pobres linhas que digito possam neutralizar os desconcertos do mundo. Mas posso descrevê-las com o espírito de quem traz uma pequena contribuição pessoal, como o faço neste momento.

                                                                   *************

Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense, e bacharel em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital paulista.
           
              
              



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