domingo, 3 de junho de 2012

O PROTESTANTISMO, AS BOAS OBRAS E EU


      O gênio religioso da pretensa Reforma Protestante (eu escrevi "pretensa" porque a autêntica reforma religiosa não foi a realizada pelo protestantismo do século XVI, mas a realizada pelo Concílio Vaticano II no século XX),  a meu ver, sempre esteve em luta com o problema da justificação, em toda a sua profundidade e mistério.
      O grande problema cristão é a conversão de homem e mulher e sua restauração à Graça de Deus em Cristo. E essa questão, em sua forma mais simples, é a conversão dos maus e pecadores a Cristo. Mas o protestantismo, com Lutero,  levantou essa mesma questão em sua forma mais radical com a pergunta: e quanto à conversão muito mais difícil e problemática dos piedosos e dos bons?
      Esta pergunta tem muita razão de ser: é relativamente fácil converter o pecador, mas os bons frequentemente são inconvertíveis, simplesmente porque não veem nenhuma necessidade de conversão.
      Assim, o gênio do protestantismo focalizou, desde o início, as ambiguidades contidas no "ser bom" e "ser salvo" ou "pertencer a Cristo."
      Com efeito, converter-se a Cristo não é apenas converter-se de hábitos maus a hábitos bons. É ser nova criatura, tornando-se um homem ou uma mulher inteiramente novos em Cristo e em Seu Espírito.
      Evidentemente, as obras e os hábitos do homem e da mulher novos devem corresponder à sua maneira de ser. Nada há de não católico nisso, muito pelo contrário. Contudo, as perspectivas católicas, ao insistir nas boas obras, levam por vezes a negligenciar o novo ser, isto é, a vida nova em Cristo, a vida no Espírito.
      E quando o protestantismo é infiel a seu dom, começa por diminuir mesmo o "novo ser" e a profundeza radical da conversão, por dar ênfase à pura Graça e ao dom do perdão de Cristo. (Por isso, permanecemos essencialmente maus). Ou então mais tarde, esquecendo a seriedade da necessidade de converter os bons, cai na autocomplacência satisfeita de uma bondade um tanto superficial, tal como uma cordialidade "social", um companheirismo do aperto de mão, do testemunho tagarela de banalidades morais, e semelhantes, quase sempre num biblicismo vazio e inconsequente. (Nisso, é claro, os protestantes são muitas vezes ultrapassados pelas frivolidades mais vulgares dos "bons católicos".)
       É aqui que a "sola fides" - só a Fé -  tão querida dos protestantes, pode dar provas de ser perigosa, pois a Fé que nos justifica não é uma Fé qualquer, ou mesmo uma Fé que se sente justificada por si mesma. Por fim, uma Fé insuficiente não é Fé em Cristo e obediência à Sua palavra, mas apenas questão de crer que cremos porque somos aceitos aos olhos de outros crentes como nós.
      O que importa então, nesse caso, seria  cultivar essa  qualidade de aceitação num meio sócio-religioso e, assim, mesmo obras objetivamente injustas podem ser tomadas por virtuosas e cristãs, uma vez que são aprovadas pelos que, no lugar, são considerados  "bons"... Daí, o grande problema é a salvação daqueles que, sendo bons, pensam não ter mais necessidade de salvação, e imaginam que sua urgente tarefa é tornar, muitos outros, "bons" como eles!
      Os que são fiéis à graça originária do protestantismo são precisamente os que veem toda a profundeza, como Lutero viu, que a "bondade" dos bons pode, em realidade, ser o maior desastre religioso para uma comunidade cristã, e que o problema crucial é a conversão dos bons a Cristo.
      Como católico que sou, confesso minha firme adesão, é claro, ao que minha Igreja ensina sobre a Justificação e a Graça. Ninguém pode ser justificado por uma Fé que não realiza as obras do amor, pois o amor é o testemunho e a evidência do "novo ser" em Cristo. Mas precisamente esse amor é, em primeiro lugar, obra de Cristo em mim, não simplesmente algo que tem origem em minha vontade, e é em seguida aprovado e recompensado por Deus.
      É a Fé que abre meu coração a Cristo e a Seu Espírito, para que Ele possa trabalhar em mim. Nenhuma boa obra minha pode receber o nome de "amor", no sentido cristão, se não vem de Cristo. Ora, os "bons" são tentados a crer na sua própria bondade e capacidade de amar. Enquanto isso, aquele ou aquela, que compreende a sua própria pobreza e seu nada, está muito mais apto ou apta a se entregar inteiramente ao dom do amor que, ele e ela sabem, não pode vir de algo de dentro deles, mas unicamente da misericórdia de Deus.
      É com isso na mente que é preciso considerar as ambiguidades que há em "fazer o bem", sabendo que, quando alguém está firmemente convencido da sua própria correção e bondade, pode, sem pestanejar, perpetrar o mais espantoso mal. Afinal, foram os bons, os corretos, os perfeitos cumpridores da Lei, que mataram na cruz o inocente Jesus de Nazaré.
      E mais tarde, em época de Cristandade, e em nome outra vez de Jesus de Nazaré, esses mesmos "bons"  sacrificaram, nas fogueiras "purificadoras" da Inquisição, milhares de crentes, considerados não tão bons como os "bons" que os sacrificaram.
      Seria isto o que muitos chamam de "ironia da história"?
    (PS: dedico esta matéria a meu filho Carlos porque, tenho certeza, ele não se enquadra em nenhuma das definições de "bom"  contidas no texto). 

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