O GUARANI
Lembro-me muito bem que fechei comovido este belo romance indianista de José de Alencar, que foi a alegria dos meus anos de ginásio. Naqueles anos felizes, sem bombas atômicas, sem satélites artificiais, sem invasão de marcianos, sem batons que não deixam marcas, sem as "viagens" perigosas dos "baseados", sem o malaventurado mensalão, minha imaginação ainda se perdia no labirinto de tantas situações complicadas que encontrava nos livros de aventura.
Winnetou, de Karl May; o detetive infalível Nick Carter; os tiros certeiros de Búffalo Bill; as intrigas de Arsène Lupin; a barriga e o charme de Charlie Chan, e centenas de outros heróis eram meu passatempo favorito nas horas de folga dos estudos e do trabalho.
Colocando-me em seus lugares, pratiquei mirabolantes avanturas, arrostando os mais terríveis perigos. Ora disfarçado de "arqueiro verde" em plena Londres, com as minhas flechas de ponta de aço vivia a abalar os nervos do multimilionário e sequestrador de mulheres, Abbe Belamy, em sua imponente mansão no Garre Castle. Outras vezes, já agora Henry Merrivale, detetive particular, tentava decifrar o mistério das dez xícaras de chá colocadas ao lado de um homem baleado dentro de um quarto hermeticamente fechado e com a chave de lado de dentro da portta. Não raro, desta vez travestido de Winnetou, valente cacique dos apaches mescalleros, saía rodeado de guerreiros para enfrentar o gorducho Tangua, nos campos de caça dos kiowas.
Quase sempre os inimigos índios, ao me verem brandindo o meu bem afiado "tomawhak", tremiam nas bases e se propunham imediatamente a fumar comigo o "calumet" da paz. Minha maior preferência, porém, era mesmo aparecer na pele de "Mão de Ferro", valente explorador do selvagem oeste americano, e sair em perseguição de Santer, assassino da belíssima ínidia "Olhos Negros", desde o deserto do Novo México até as montanhas do Grande Urso.
Como todos esses livros, também O Guarani foi atirado no porão do desprezo. Com o nascer do primeiros dezesseis fios do bigode adolescente, achei que já era tempo de conhecer algo mais atraente e sensível a respeito da vida, principalmente o relacionamento entre homem e mulher. O romantismo e o idealismo de Alencar não mais me seduziam. Cronin, Maurice Dekobra, Paul Bourget, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Walter Scott e outros semelhantes mereceram minha preferência nos anos de adolescente.
A verdade é que também estes foram postos de lado mais tarde, quando estranhos pruridos em meu metabolismo me fizeram procurar outro tipo de literatura, e aí tomei conhecimento com o realismo de Júlio Ribeiro, Zola, Balzac, Flaubert, chegando depois até Tólstoi, Dostoievsky, e às Mil e Uma Noites, sem esquecer a incomparável Françoise Sagan.
Mas eis que agora, forçado a ficar em casa, sob o ataque violento de uma crise de bronquite, me volta às mãos "O Guarani". Tento lê-lo com o mesmo prazer do passado quando não o deixava um instante sequer: em casa, no caminho do ginásio, em plena aula de matemática, que detestava. Nos intervalos das aulas, enquanto os demais colegas trocavam caneladas na quadra de esportes, ou paqueravam as garotas nos bancos do pátios, ou iam espionar as meninas que trocavam as roupas da ginástica, pelas frinchas das portas dos vestiários, eu não fazia nada disso.
Eu ia era surpreender Cecília no pequeno jardim na casa do "Paquequer", fingindo ser o cavalheiro que lhe oferecia uma flor com a ponta dos dedos, ajoelhado a seus pés. Ou então, encarnando Peri, nobre guerreiro goitacás e guardião da donzela, eu seguia por entre as brenhas fechadas e espinhentas a pista dos perversos conspiradores, o ex-frade Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões.
Os vários episódios do "Guarani" empolgavam-me tanto, que me faziam esquecer de tudo mais. Lembro-me que certo dia, no percurso para o ginásio, caminhava devagar, lendo o romance, completamente enlevado e absorto. Sendo ainda um pouco cedo para o início das aulas, sentei-me a um banco da praça para terminar o capítulo mais sensacional:
Os ferozes índios aimorés, agrupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinza, faziam preparativos para desfechar um ataque decisivo. Preparavam setas inflamáveis para incendiar o castelo de Dom Antônio de Mariz. De repente o herói, Peri, altivo, nobre, radiante de coragem invencível, caiu sobre eles com uma grande espada, sozinho, em face de duzentos selvagens ferozes e sedentos de sangue.
Ansioso por ver o desfecho da cena sublime e vigorosa, mergulhei decididamente na leitura, totalmente absorto e, quando finalmente dei por mim, as aulas já estavam perdidas e voltei para casa.
O "Guarani" me submergia num mar de sonhos e de ilusões. A nobreza e a coragem de Peri e de Dom Antônio, o espírito cavalheiresco de Álvaro, a ingenuidade e beleza de Cecília, a paixão violenta de Isabel, tudo no livro como que me inebriava.
Agora, já muitos anos passados, relendo o livro na minha enfermidade, tento fazê-lo com a gravidade de quem já estudou e passou por outras e diversas experiências de vida. Procuro me tornar menino de doze anos outra vez, para reviver, se possível, todos aqueles sonhos que outrora me embalaram a adolescência.
E fecho o livro no mesmo ponto em que um dia também o fechei, para pensar no que poderia ter acontecido a Cecília e a Peri, sentados o olho da palmeira, sobre as águas frementes do Rio Paraíba:
- "A palmeira, arrastada pela torrente impetuosa, fugia... E sumiu-se no horizonte."
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