terça-feira, 10 de abril de 2012

O CRISTÃO E O SEU CORPO

      Não raras vezes, ainda hoje, ouvimos a pergunta: o Cristianismo é hostil ao corpo? Esta pergunta tem sua razão de ser, porque na história do pensamento ocidental nem sempre se teve consciência da dignidade orgânica "corpo-alma" do homem e da mulher. Duas concepções do ser humano caracterizam o pensamento ocidental: a materialista e a platônica. A última, de origem grega, manifesta um dualismo extremado na filosofia de Platão e menos na de Aristóteles, e tem influenciado certas formas da ascese cristã.
      No platonismo o corpo é a prisão da alma ou a sepultura do espírito. E quando a ascese cristã trocou homem e mulher bíblicos com a idéia do cárcere platônico, logo surgiram as mais desastrosas consequências. O próprio Platão já atribuíra um menor valor à dimensão corpórea humana. Com isso, na variante do néoplatonismo, o dualismo oriental também penetrou na ascese cristã. Nessa visão dualista o mundo é criação de um espírito mau, sendo, por isso, também radicalmente mau. Assim compreendemos o porquê no século III e IV o maniqueísmo desprezasse toda a matéria, apegando-se apenas ao puro espiritualismo.
      É claro que tais escolas espiritualísticas, abstraindo das necessidades reais da vida concreta, na teoria exigiam dos seus discípulos coisas impossíveis. Por isso, na vida prática, muitas vezes caíam num materialismo desenfreado. Justificavam as suas orgias porque sendo o corpo e a alma, o espírito e a matéria, princípios em si tão contraditórios, não se poderiam influenciar mutuamente. Situando corpo e alma em dois patamares diferentes, descobriu-se uma fórmula adequada para justificar a vida mais desenfreada, uma vida com teoria idealista, porém prática na materialista; aplaudiam uns as orgias mais bestiais, enquanto outros proibiam o uso do vinho, da carne, do matrimônio, e daí por diante.
      O apóstolo Paulo já lutara contra esses extremismos maniqueistas na comunidade de Corinto, em cujo porto marítimo não só havia o comércio de bens materiais entre o Oriente e o Ocidente, mas também a troca de idéias. Ao lado dos laxistas, que gozavam o sexo à maneira da comida e da bebida diárias, o apóstolo combateu igualmente os rigoristas cristãos, que desprezavam o matrimônio, por o julgarem uma prática pecaminosa.
      Conta-nos a História que também Tertuliano apostatou da fé cristã, porque não concordava com o "laxismo" do Papa Calixto, que readmitia pecadores convertidos, na comunidade eclesial. E o grande filósofo e teólogo Orígenes foi tão fiel discípulo de Platão que, reverenciando a hostilidade ao corpo, castrou-se a si mesmo.
      Talvez o caso de Orígenes exemplifique melhor a penetração maléfica do dualismo platônico na ascese cristã. Mas, ao mesmo tempo, mostra também a resposta decisiva da autoridade eclesiástica e a prontidão com que desde os primórdios a Igreja lutou contra tais idéias extremistas.
      O grande organizador do monaquismo ocidental, São Basílio, combateu conscientemente esses exageros advindos do menosprezo moral do corpo. Consciente das suas consequências nefastas, deixou-se guiar por uma visão mais harmoniosa do corpo humano. Enquanto seus contemporâneos Antônio e Pacômio apenas permitiam uma refeição diária, que consistia em vegetais e raizes, e exigiam abstinência total de carne e vinho, sono curto, vestes pobres e sujas de seus monges, São Bento concedia duas refeições diárias e, aos que exerciam trabalhos pesados, até mais. Além disso, tolerou o uso do vinho e da carne. Ademais, exigia que em viagens e aos domingos os monges vestissem roupa boa, que se banhassem regularmente, e que dormissem bem para melhor louvar a Deus no ofício santo.
      Verdadeiramente, o Cristianismo bem vivido nos ensina que a graça batismal santifica nosso corpo até as suas últimas fibras, tanto assim que podemos exclamar com o apóstolo Paulo: - "Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?"
      O cristão realiza-se tanto mais e melhor, quanto mais, a exemplo de Jesus de Nazaré, nos Evangelhos, conseguir harmonizar em si mesmo a dimensão física e a espiritual, individual e social de sua personalidade, de maneira integral e inseparável. 

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