sexta-feira, 7 de junho de 2013

RELENDO GRAHAM GREENE


          Confesso de público que sou leitor fanático do escritor inglês Graham Greene. Possuo em minha estante todas as suas obras já publicadas no Brasil. Suas histórias são aparentemente profanas,  nunca o novelista lhes dá aquele tratamento que orienta o tema num sentido edificante, religioso. Vários de seus romances podem ser lidos  como se leem simples estórias policiais.
         A técnica cinematográfica dá aos sucessivos quadros de suas narrativas incomparável poder de sugestão, aspecto em que ele é mestre imune a qualquer imitação. Rememorando: uma atmosfera opressiva paira sobre cada livro seu que vem a público: o calor úmido e asfixiante do México, no soberbo "O poder e a glória"; a luxúria melancólica de Brighton, Inglaterra, em "O condenado"; o Expresso do Oriente, lançado através da Europa, em "O trem de Istambul", com o seu carregamento de destinos cômicos, mas quase sempre trágicos;  a frialdade matemática de Estocolmo, em "O agente confidencial"; a nudez quente e putrefacta de Serra Leoa, no admirável "O fundo do problema".
            Acabo de reler (ou treler?) "O poder e a glória", em que Greene desenvolve o tema de que Deus atua no seio da decadência espiritual:  quanto mais se aprofunda a ausência de Deus aqui em baixo, na Terra, mais se descobre, na Fé, Sua presença e ação.
            Neste romance, creio que é o melhor de Greene,  o autor coloca o tema em plena luz.  Do ponto de vista da religião e da Fé, repito, eu o considero o mais importante e decisivo livro de Greene.
            O padre, personagem central da história, é um padre pecador, tendo ficado por orgulho no Estado de Tabasco, durante a perseguição do governo do México à prática do catolicismo no país, não consegue suportar a solidão, e cai no alcoolismo. Numa noite, após uma embriaguez, viola seu voto de castidade e comete um pecado sexual com certa camponesa, vindo a ter dela uma filha. E a menina, gerada no pecado, mais tarde, numa cena inesquecível, tenta sexualmente o próprio pai.
          O pobre homem, não sabendo resistir aos apelos do sexo, é obcecado pelos seus pecados que considera mortais. Incapaz de um ato de contrição perfeita, que segundo a doutrina católica, lhe traria o perdão de Deus, ele sonha poder atravessar a fronteira do Estado vizinho, onde poderia encontrar um sacerdote e confessar o seu pecado, o que até aquele momento não conseguiu realizar.
          Vendo-se sozinho, e sentindo-se pecador como o comum de seus paroquianos, o padre passa a compreender melhor as pessoas que ouve em confissão e às quais dá a comunhão sacramental, ao acaso de sua fuga. Embora paralisado de vergonha à idéia de que os habitantes desse Estado perseguidor não conseguirão conhecer outro sacerdote, além do farrapo humano que ele arrasta atrás de si de aldeia em aldeia, quando na verdade é um verdadeiro anjo de piedade para todos aqueles de quem se aproxima.
            Ao mesmo tempo é um desses homens acossados, que Greene não se cansa de descrever. O tema alcança aqui uma soberana grandeza: o primeiro achado do enredo está com efeito em que este homem, padre, não é apenas acossado pela polícia, mas principalmente pela sua própria consciência, ou melhor, pelo próprio Deus que, através da caça ao homem, continua a chamá-lo. Deste modo seu destino torna-se uma vocação.
           O padre responde ao apelo de Deus realizando três atos de perfeita Caridade: o primeiro, quando deixa de tomar o navio que o salvaria, para acompanhar um menino que lhe suplica  ir ajudar a mãe em perigo de morte; o segundo, quando cede ao mestiço a mula, que lhe permitiria fugir; o terceiro gesto, o mais belo de todos, leva-o a passar de novo a fronteira com o mestiço que lhe faz crer que um gangster moribundo deseja receber os sacramentos da Igreja.
           Também aqui é sem o suspeitar que o padre trânsfuga realiza estes atos salvadores: até ao fim, estará certo da condenação por Deus pelos  seus pecados.  Na realidade, sua morte por fuzilamento será aceita como um martírio; embora sua atitude, na manhã da execução, seja humanamente lamentável - ele está bêbado -  é uma morte por Cristo: nessa mesma noite, um rapaz que admirava em segredo o policial ateu que executa o fuzilamento do padre, beija devotamente a mão do novo sacerdote que chega à aldeia.
         Uma vida perdida, moralmente e cristãmente, conforme o julgamento de homens e de mulheres, mas que se revela habitada pela presença de Deus. Não só a desgraça está misteriosamente penetrada pela misericordiosa presença de Deus, mas também, e principalmente, o pecador.
        Aqui se cava o abismo que sempre separará os humanistas revolucionários, da cruz de Cristo. Alguns dias antes da sua execução, o padre explica ao tenente que o prendeu: nas revoluções atéias, é necessário que os revolucionários sejam bons; se às vezes, no começo, são idealistas sinceros, os seus sucessores serão certamente maus, e então tudo recomeça: injustiças, fortunas ilegais, crueldades, prisões arbitrárias, desconfianças, delações. "Pelo contrário - continua o padre - ainda que todos os sacerdotes fossem como eu, covardes, bêbados, pecadores sexuais, isso nada alteraria em profundidade, porque  eles sempre poderão dar Deus, na Eucaristia, a homens e mulheres".
         É possível Deus aceitar assim o risco de ser dado a homens e mulheres pelas mãos de um pecador? É possível que Ele consinta em fazer depender a Sua presença eucarística da garrafa de vinho que um soldado imundo e covarde esvazie em meio a risos avinhados? É possível sim, mostra-nos o romancista: Deus entregou-se de tal modo aos humanos, que consente em ver assim humilhado o Seu poder: quando o padre pecador vê esvaziar-se a única garrafa de vinho que possui, a única que lhe permitiria ainda celebrar a Missa naquela terra prometida à morte de Deus. Seu coração, e também os nossos corações, se amarguram, pois compreendemos que nesse minuto Deus, em Cristo, morre uma vez mais pelos pecadores.
      Um sacerdote culpado é perseguido como se fosse um salteador de estradas. Pensamos na frase bíblica: _ "Ele foi confundido com os ímpios." - Não sejamos iludidos: este sacerdote pecador é uma imagem de Cristo crucificado entre nós. 
     Quanta humildade de Deus1 E quanto poder também, em meio à fraqueza, pois que uma só palavra, ainda que saída da boca de um padre pecador, desata a imensa torrente do perdão divino. "O poder e a glória", de Graham Greene, manifesta a força sobrenatural desse paradoxo. A única resposta às orgulhosas aleivosias atéias é o mistério de Deus crucificado, escondido num pouco de pão e num pouco de vinho.
      Este livro de Graham Greene nada mais é  que um comentário das palavras divinas: - NÃO JULGUEIS. - Não julgueis o mundo que vos parece abandonado por Deus: ele está habitado por Deus. Não julgueis a humanidade que, aparentemente, matou Deus: ela foi salva por Deus. Não julgueis a derrota de Deus, espezinhado em instituições que se entregam ao cultivo do mal: o poder e a glória de Deus estão ali presentes.
      Ouçamos o apóstolo Paulo: - "Deus serve-se das coisas que não são, para salvar as coisas que não são". Uma coisa que não era: a cruz. Sem ela, nós é que seríamos nada. Assim é o mistério da Páscoa.
       Por que perder a coragem diante do mal? Deus morreu? Mas depois RESSUSCITOU!
   

      


              



              ALEIVOSIAS

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