quinta-feira, 26 de abril de 2012

JULIEN GREEN, TESTEMUNHA DO INVISÍVEL

      76 anos, aposentado, boa saúde e paz com o mundo, não tendo outra tarefa para fazer senão cuidar de minha neta Isabela, entrando  na adolescência, resta-me um tempo enorme que dedico à leitura, e isto eu o faço procurando os melhores autores da literatura brasileira e estrangeira. A cada dois meses leio um autor diferente, estudando-lhe a vida e a produção literária. Neste ano de 2012, dediquei janeiro e fevereiro para a leitura de Georges Bernanos, romancista francês, e publiquei neste blog  um texto sobre ele, chamando-o de "profeta da alegria". Março e abril ficou por conta de Julien Green, escritor americano que escreveu seus principais livros em francês, e faleceu em Paris, em 98.
      Nestes dois meses estou lendo, com alegria e emoção, o seu esplêndido Journal, em que Green  narra seus dramas pessoais, desde a juventude, em que teve a veleidade de entrar para um mosteiro e tornar-se monge contemplativo, até a idade adulta, quando perdeu a Fé e mergulhou numa vida carnal desenfreada. Mas a graça de Deus foi mais forte e não o abandonou nunca. Finalmente, já enfastiado dessa vida vazia, voltou à crença antiga, conversão esta confessada em páginas brilhantes do Journal.
      A parte mais emocionante do Journal, para mim, é aquela em que ele fala dos rastros de Deus sempre encontrados em seu caminho, mesmo nos tempos de descrença. Na verdade, Deus nunca abandonou o filho pródigo. O Journal permite balizar o itinerário da graça no decorrer dos anos de apostasia.
      Aparentemente, nada acontece, e Green parece afastar-se cada vez mais de Deus. Deixa de ler a Bíblia, que em outros tempos foi a sua leitura diária. A religião quase não o preocupa; se antes costumava entregar-se à oração, agora a deixou de vez.
      O que me admira nele é que, após a sua volta à Fé e à prática religiosa,  Green nos deixou, no Journal, livro III, que estou lendo nesta semana, textos maravilhosos sobre a prece, que então se tornou o seu alimento, o seu pão de todo dia, como ele mesmo confessa. Para ele, a oração, este mundo da palavra divina, só pode ser alcançado pela sua prática constante. Fala repetidas vezes dessa realidade quase divina, que deveria ser a respiração de nossa alma:
      - "A verdadeira ordem está baseada na oração; o resto não passa de desordem, mais ou menos bem disfarçada." (J. III, 11).
      Só a prece nos consola das felicidades que não conseguimos manter vivas em nossa vida:
      - "Horas há em que me sinto prestes a soçobrar à simples lembrança de tudo que a vida me ofereceu outrora, e que logo me retirou. Esta fome que trazemos em nós, basta às vezes uma simples oração atentamente recitada, para lhe aplacar as ânsias, para apagar todo o desejo de nosso coração." (J. III, 1). 
      Para Green, a oração não é, portanto, petição de favores temporais. É antes de mais nada apaziguamento de desejos doentios, purificação do interior mais íntimo da alma. Mesmo quando tudo parece perdido, e principalmente então, ela nos revela ser Deus melhor que todas as felicidades humanas:
      - "Por sombria que se torne a vida, é necessário não interromper a cadeia da oração, pois é a oração que resolve tudo, mesmo quando a casa parece perdida." (J. III, 41).
      Ela resolve tudo, "porque não há paz senão na prece."(III, 55). Essa paz não é uma auto-sugestão, mas um abandono à vontade de Deus:
      - "A finalidade da prece é menos obter o que pedimos do que tornarmo-nos outros. Seria preciso ir mais longe e dizer que pedir alguma coisa a Deus nos transforma, pouco a pouco, em pessoas capazes de renunciar às vezes até ao que pedimos." (J. III, 80).
       Esta frase, no meu entender, devia ser conhecida por todos os que não obtiveram o que pediam. Tornar-se outro, ser capaz de renunciar ao que se pede, é penetrar na Fé verdadeira; é preciso recorrer a Deus por se tratar de Deus, e não porque nos interesse, ou por qualquer outro motivo, mesmo sublime. Este Deus, busca-O nossa alma quase sem o saber. A oração é, portanto, uma realidade sagrada:
      - "Folheando livros sobre a oração, pensei comigo mesmo que o melhor livro sobre a prece deve ser lido de joelhos, de mãos postas e olhos fechados." (J. III, 182).
      Outra frase admirável deste capítulo: o verdadeiro livro "sobre" a oração é o próprio Deus. A oração leva-nos ao conhecimento místico de Deus.
      É na paciência da Fé que a claridade mística se revela pouco a pouco; é também no amor, - segredo da religião mas também seu paradoxo,  porque se trata de amar um Ser invisível, - que se abre a porta do Reino divino.
      Amar até morrer de amor por alguém de quem nunca vimos o rosto nem ouvimos a voz, é todo o Cristianismo. Um homem fica de pé diante de uma janela a ver cair a chuva, e de repente manifesta-se nele uma alegria que não tem definição na linguagem humana. No mais profundo deste minuto singular, envolve-o uma tranquilidade misteriosa, que nenhuma preocupação temporal perturba: eis aí o refúgio, aliás o único, pois o Paraíso outra coisa não é, senão amar a Deus, e não há outro Inferno que o de não estar com Deus. (J. III, 61).
      É preciso procurar Deus onde Ele está, no silêncio:
      - "É no silêncio que Deus habita. Lá é a Sua morada, e não no vento, nem no tremor de terra, nem decerto no ruído de palavras que fazemos continuamente, mas no íntimo de nós mesmos, lá onde já não alcançam as vozes do mundo." (J. III, 280). 
      Finalizando a leitura deste capítulo terceiro, um dos mais preciosos do Journal, a evocação do profeta Elias no monte Horeb, quando Deus lhe fala "num doce frêmito" e o profeta tapa o rosto para O ouvir, é um resumo de toda a autêntica e admirável doutrina de Julien Green sobre a vida religiosa, que culmina na  mística, apanágio de todos os santos.
      É por isso que considero Julien Green  "testemunha do invisível".

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