Confesso que sou leitor fanático do escritor inglês Graham Greene, de quem possuo todas as obras já publicadas no Brasil. Suas histórias são aparentemente profanas, nunca o novelista lhes dá aquela demão que orienta o tema num sentido edificante: vários de seus romances se lêem como histórias policiais. A técnica cinematográfica empresta aos sucessivos quadros incomparável poder de sugestão. Uma atmosfera opressiva paira sobre cada livro: o calor úmido do México, em "O Poder e a Glória"; a luxúria melancólica de Brighton, Inglaterra, em "O condenado"; o Expresso do Oriente, lançado através da Europa, em "O trem de Istambul", com o seu carregamento de destinos cômicos ou trágicos; a frialdade matemática de Estocolmo em "O agente confidencial; a nudez quente e putrefacta de Serra Leoa em "O fundo do problema".
Acabo de reler (ou treler) "O Poder e a Glória", em que Greene desenvolve o tema de que Deus atua no seio da decadência espiritual: segundo ele, quanto mais se faz sentir a ausência ou o silêncio de Deus entre nós, mais se descobre, na Fé, Sua presença e Sua ação, ainda que ocultas à nossa percepção.
Neste romance, que eu considero o melhor dos livros de Greene, do ponto de vista da religião e da Fé, o autor coloca magistralmente o tema em plena luz.
O padre, personagem central da história, é um padre pecador que, tendo ficado por orgulho no Estado de Tabasco, México, durante a perseguição do governo à prática do catolicismo no país, não consegue suportar a solidão e entrega-se ao alcoolismo. Certa noite, embriagado, envolve-se sexualmente com uma camponesa, vindo a ter dela uma filha, que Greene nos mostra já precocemente transviada, e numa cena dantesca, tentando fazer sexo com o próprio pai. (Lembra-me cena parecidíssima presente no livro de Georges Bernanos, "Diário de um pároco de aldeia").
O padre é atormentado pelos seus pecados, mas é também incapaz de um ato de contrição perfeita que, segundo a doutrina católica, poderia trazer-lhe o perdão de Deus; sonha então atravessar a fronteira, dirigir-se ao Estado vizinho, onde com certeza encontraria um outro sacerdote e se confessaria.
Dessa maneira, sozinho e pecador, o padre compreende melhor as pessoas que ouve em confissão e às quais ministra a Eucaristia, nos acasos de sua fuga. Embora constrangido e paralisado pela vergonha que sente ao intuir que os habitantes desse Estado perseguidor da religião talvez não venham a conhecer outro sacerdote, além do farrapo humano em que ele se tornou, ainda assim, perambulando de aldeia em aldeia, se torna um verdadeiro anjo de piedade para todos aqueles de quem se aproxima ou que precisam dele.
Ao mesmo tempo é um desses homens acossados que Greene não se cansa de descrever. Mas o tema alcança neste romance uma grandeza inigualável: o grande segredo da história é que o padre não é apenas acossado pela polícia, mas muito mais que isso, pela sua própria consciência machucada, ou melhor, pela própria presença de Deus que, átravés da perseguição contra o homem, continua a chamá-lo: deste modo seu destino se torna uma vocação, como nos mostra Paul Rostenne em profunda análise do romance.
O padre é fiel ao apêlo de Deus, respondendo-lhe com a realização de atos que a moral cristã chama de Caridade perfeita. No primeiro deles, o padre deixa de tomar o navio que o levaria à salvação, para atender a um menino, que lhe pedia para ir socorrer a mãe. No segundo, o padre dá a mula, que lhe permitiria fugir mais rapidamente, a um mestiço ferido para que ele fosse à vila mais próxima curar-se. No terceiro, que considero o mais belo de todos, ele atravessa de volta a fronteira com o mestiço, que o convence a ir atender um gangster moribundo que deseja receber os sacramentos da Igreja. Nesse atravessar a fronteira, de volta, o padre é capturado pela traição do mestiço.
Ele realiza estes atos de Caridade perfeita sem suspeitar que eles lhe serão salvadores. Sua morte por fuzilamento será aceita como um martírio verdadeiro. Embora sua atitude na manhã da execução seja humanamente lamentável - ele estava bêbado - é uma morte por Cristo; nessa mesma noite, um adolescente, que nutria profunda admiração pelo tenente que ordenou o fuzilamento, beija devotamente a mão ao novo sacerdote que chega à aldeia.
Uma vida perdida moralmente e cristãmente, conforme o julgamento de homens e de mulheres, revela-se desse modo habitada secretamente pela presença de Deus. Não só a desgraça está misteriosamente penetrada pela misericordiosa presença de Deus, mas também o homem pecador.
Aqui se abre o abismo que sempre separará os humanistas revolucionários ateus, da Cruz de Cristo. Alguns dias antes de sua execução, o padre em conversa com o tenente que o prendeu lhe explica por que é necessário nas revoluções atéias que os revolucionários sejam bons: se no começo da revolução os seus adeptos são idealistas e sinceros, logo eles serão subtituídos por outros mais radicais e maus; e então tudo recomeça como antes: voltam as injustiças, as fortunas ilegais, as crueldades, as prisões arbitrárias, a desconfiança geral, as delações. Pelo contrário, continua o padre, "ainda que todos os sacerdotes fossem como eu, covardes, bêbados, pecadores sexuais, isso nada alteraria, porque eles sempre poderão dar Deus aos homens e às mulheres".
É possível Deus aceitar assim o risco de ser dado a homens e mulheres pelas mãos de um pecador? É possível que Ele consinta em fazer depender a Sua presença eucarística, da garrafa de vinho que um soldado imundo e covarde esvazia em meio a risos de deboche? E eu respondo: é possível sim, pois sei que Deus, em Jesus de Nazaré, se entregou de tal modo aos Seus carrascos, que consentiu em ver assim humilhado o Seu poder. Quando o padre pecador vê esvaziar-se a única garrafa de vinho que ainda lhe permitiria celebrar a Missa naquela terra prometida à morte de Deus, seu coração, e também os nossos corações, se amarguram, pois comprendemos que nesse minuto Deus, em Cristo, morre uma vez mais pelos pecadores. Um sacerdote pecador é perseguido pelas estradas do México como se fosse um salteador. Pensamos na frase bíblica: -" Ele foi colocado entre os ímpios." Não nos iludamos: este sacerdote, ainda que pecador, é uma imagem de Cristo entre nós.
Quão grande é a humildade de Deus! E quão grande é também o Seu poder, em meio à fraqueza, pois que uma só palavra saída da boca de um padre pecador, faz desatar a imensa torrente do perdão divino!
O "Poder e a Glória", de Graham Greene, manifesta a força sobrenatural desse paradoxo. A única resposta às orgulhosas doutrinas atéias é o mistério de Deus crucificado, escondido num pouco de pão e num pouco de vinho.
Este livro de Greene nada mais é que um comentário das palavras divinas: NÃO JULGUEIS. Não julgueis o mundo que vos parece abandonado por Deus; ele está habitado por Deus. Não julgueis a humanidade que, aparentemente, matou a Deus; ela foi salva por Deus. Não julgueis a derrota de Deus, espezinhado em instituições oficiais ou públicas, que se entregam à cultura do mal; o poder e a glória de Deus estão ali presentes.
Ouçamos a verdade bíblica: - "Deus serve-se das coisas que não são, para salvar as coisas que são." Uma coisa que não era: a cruz. Sem ela, nós que seríamos nada. Assim é o mistério da Páscoa.
Por que perder a coragem diante do mal? Deus morreu? Mas depois RESSUSCITOU.
Nenhum comentário:
Postar um comentário