quarta-feira, 21 de setembro de 2011

VIAGEM AO REDOR DA BÍBLIA

    A Sagrada Escritura, e eu o creio, é um tesouro inesgotável de experiências profundas e de sublimes intuições religiosas. Esse tesouro, porém, chega até nós vinda de uma cultura há vários séculos de deistância, nascida de uma sensibilidade milenarmente distinta e responde a perguntas ou necessidades concretas que já não são, de foma alguma, as nossas.
    A Bíblia é de fato, para o crente, palavra de Deus, pois nela se expressa tudo aquilo que Ele quis nos manifestar, mas sempre e necessariamente, nas e com palavras humanas, por meio das quais consegue expressar-se. E estas palavras humanas, apesar de serem autêntica manifestação de Deus, trazem a marca de seu tempo e lugar. Traduzem a manifestação de Deus que chega até nós, é verdade, mas nos modos limitados de uma subjetividade, de uma sociedade, de um tempo e de uma cultura bem determinada. Assim, os moldes conceituais da Bíblia Sagrada, os marcos de referência de seus significados simbólicos dos quais lança mão, ou desapareceram ou, em muitos casos, perderam sua transparência para a cultura atual.
    A verdade é que os textos da Escritura se apresentam marcados pela época de sua elaboraação, a tal ponto que dificilmente podemos entender como esses documentos tão longínquos ainda podem falar-nos hoje. O que se disse naquela época tão distante, com as palavras, as imagens e os símbolos que os hagiógrafos tinham então ao seu alcance, cumpre-nos expressá-los hoje com nossos meios atuais e a partir de nossa nova situação. Mas temos de fazê-lo de maneira que através das palavras antigas e de uma sadia inculturação, a mesma realidade possa ser falada também na linguagem atual.
    Não podemos permanecer enclausurados na repetição por assim dizer mecânica de um passado morto, mas devemos abrir-nos para a recriação autêntica de uma experiência que há de ser tão atual como a refletida nos textos tradicionais e que exige de nós seja traduzida em palavras vivas que falem à nossa compreensão, e alimentem as possibilidades de nossa vida e de nossa história, nos tempos em que vivemos. Gostemos ou não, temos que pagar nosso tributo à pós-modernidade e aos sinais dos tempos, como gostava de dizer o Papa João XXIII.
    Atualmente nenhum estudioso sério da Bíblia admite que ela seja resultado de um ditado  divino ao hagiógrafo, ou que ela tenha caído do céu como um meteorito, como ainda se pensa em alguns setores da ecumene religiosa. A crítica bíblica tem mostrado cada vez com maior clareza que a Bíblia foi gestada aos poucos, no longo acontecer da História, através de intenso trabalho de reflexão religiosa a qual, por meio da experiência de sempre novas situações, vai descobrindo novos aspectos da presença de Deus no mundo. Ou seja, através dessas experiências, o hagiógrafo descobre o que Deus está tentando nos manifestar, não através de ditados ou de intervencionismos físicos, mas da capacidade significativa que adquirem certas situações específicas pessoais ou históricas. Por exemplo:na beleza e esplendor do céu, o salmista intui a glória do Criador; no sentimento de rebelião contra a opressão egípcia, Moisés desvenda que Deus se compadece dos oprimidos e quer a sua libertação. No seu amor e no sentimento profundo que o leva a perdoar sua esposa adúltera, o profeta Oséias descobre o perdão e o amor incondicional de Deus, apesar de toda a infidelidade humana.
    É preciso também que tenhamos sempre em conta que os autores bíblicos, a seu tempo e a seu modo, por não terem chegado ainda a uma concepção mais exata da face de Deus, podiam declarar a Seu respeito palavras e ações que muitas vezes não eram na verdade nem palavras nem ações de Deus. Eles simplesmente supunham que Deus nesse momento falava ou agia ssim, mas muito diferente era o modo com Deus falava ou agia na realidade. Exemplificando: em vários trechos do Êxodo, dos Números, de Josué ou dos Juízes, o autor ou autores desses livros colocam na boca de Deus a ordem terrível para exterminar a ferro e fogo povoações e povos inimigos inteiros, sem reparar em anciãos, enfermos, mulheres e crianças.
    Um exemplo entre muitos outros: o segundo Livro dos Reis nos apresenta a revolução de Jeú e a matança que levou a efeito como algo querido e mandado por Javé (2Rs 9-10). Entretanto, um século mais tarde o profeta Oséias condenou energicamente em nome do próprio Javé aquele derramamento de sangue que aconteceu na terra de Jezrael (Os 1-4). Ou pense-se ainda nos castigos coletivos "até a terceira ou quarta gerações", ou arbitrárias, como o do filho do sumo sacerdote que queria salvar de uma queda a Arca da Aliança, mas foi fulminado porque a tocou. "Davi teve medo do Senhor naquele dia",  diz-nos o 2Sm 6,9.
    Qualquer pessoa de bom senso perceberá claramente que tais fatos relacionados pela Bíblia correspondem não à vontade divina, mas à mentalidade do tempo: naquela época, interpretavam  que isso era o que Deus queria, e por essa razão atribuiram-no a Ele. Mais tarde, após longo e penoso processo de reflexão e de aprofundamento na intelecção da real natureza de Deus, a própria Bíblia deixa de pensar assim, e naturalmente ninguém hoje nega que isso é inconcebível, e que com toda certeza Jesus de Nazaré jamais diria uma coisa dessas.
    Conclusão: conforme o contexto, não nos é lícito interpretar como palavra de Deus  o que é palavra dos homens. Os desejos de vingança de Jeremias ou do salmo 137 (136), por exemplo. A verdade é que uma palavra de Deus pura, não contaminada por distorções humanas em diferentes medidas, não existe. Pelo contrário, a recepção, a compreensão e a interpretação devem ser intrínsecas à própria palavra revelada, como nos ensina uma sadia exegese.
    Em consequência, não aceito uma leitura literalista ou fundamentalista da Bíblia, isto é, tomar ao pé da letra  o que nela está contido, sem uma segura exegese histórico-crítica de seu conteúdo. Muitas denominações "evangélicas" fazem isto, e acabam resvalando para os maiores absurdos. Vários setores do catolicismo também o fazem, inclusive boa parte do Catecismo da Igreja Católica e a comunidade Canção Nova,  sem esquecer, é claro, a maioria das pregações nos púlpitos de nossas igrejas. Por causa dessa leitura fundamentalista da Bíblia, há muitas verdades que os cristãos, católicos e protestantes, afirmam, mas no íntimo chegam a não crer nelas. São demasiadas as palavras da Bíblia que dizem aceitar, mas suspeitando que alguma coisa não deve ser bem assim como está lá.
    Atualmente, diante dos progressos da pesquisa e da hermenêutica bíblica, nem o mais conservador dos teólogos pode - embora o pretendesse - levar ao pé da letra a estrela de Belém, ou a fuga para o Egito, ou a ascensão física de Jesus atravessando as nuvens para chegar ao Céu. Como dificilmente poderá crer na milagrosa entrada de uma legião de demônios numa vara de porcos, nem da moeda na boca do peixe para pagar o imposto devido aos romanos.
    Mais alguns exemplos pinçados aqui e ali, durante minhas leituras dos textos sagrados, ou lidos   em publições religiosas:
    - Quem é capaz de pensar que Deus castigou durante miênios a milhões e milhões de seres humanos por um pecado pretensamente atribuído a nossos primeiros pais, quando nenhuma pessoa decente é capaz de maltratar uma criança, por maior que seja o crime que seu pai ou mãe tenha praticado?
    - "Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina de acordo com Santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer, a herdar um pecado de um ancestral remoto?" (Dawkins, "Deus, um delírio").
    - Qual a mãe que poderia crer de verdade que sua pequenina criatura recém-nascida, diante da qual seu coração se desfaz em ternura, está em pecado,  possuída pelo demônio e condenada a nunca fruir da visão beatífica se morrer antes de ser batizada?  Esta postura fundamentalista é devida em grande parte a santo Agostinho, que foi o sistematizador da dotrina do pecado original. Aliás, além da ênfase no pecado original, nenhum teólogo importante até Lutero enfatizou mais o pecado do que Agostinho. A própria Reforma  Luterana, tão libertadora em outros aspectos, agravou a situação nesse ponto, insistindo na corrupção essencial da natureza humana e carregando as consciências com o enorme peso de responsabilidade por todo o mal que há no mundo. Felizmente, a nova Liturgia do Batismo, após o Concílio Vaticano II, abandonou aquela exdrúxula fórmula usada até tempos atrás, quando o sacerdote, depois de soprar três vezes sobre o rosto da criança a ser batizada, bradava com voz enfática: - "Sai dela, ó espírito imundo, e dá lugar ao Espírito Santo Paráclito..."
    - Em que cabeça cabe que Deus pudesse exigir  a morte violenta de seu filho feito homem, Jesus de Nazaré, para resgatar os pecados da humanidade, como lemos em muitos manuais de devoção em uso por aí? Creio que esta maneira de falar "pode levar a imagens grotescas de Deus como um tirano sanguinário, que exige a morte de um filho inocente para apaziguar Sua ira, imagens da morte de Jesus como um caso supremo de crueldade divina contra o filho."  (Loewe, Introdução à Cristologia).
    - É aceitável a monstruosidade de um Deus que, chamado Pai pelos cristãos, tenha exigido a outro pai, Abraão, que Lhe sacrificasse seu filho único e querido, Isaac, como prova de obediência? Comentando estes casos, o teólogo Joseph Ratzinger, (hoje Papa Bento XVI), em "Introdução ao Cristianismo", pg. 208, escreve: - "Diante  da atitude expressa em certas práticas religiosas impõe-se,
praticamente, a convivção de que a Fé cristã na cruz se baseia na imagem de um Deus que, em Sua justiça intransigente, exige o sacrifício de um ser humano, o sacrifício do próprio filho. Aterrorizados, muitos viram as costas a uma justiça que, com sua ira sinistra, torna implausível a mensagem do amor."
    - Quem pensaria hoje em louvar a Deus dizendo que Ele é um guerreiro que "se cobriu de glória afundando no mar cavalo e cavaleiro",  como se reza diariamente na Liturgia das Horas?
    - Quem veria hoje como um gesto de fidelidade e religiosidade profunda no cunmprimento de um voto que, no caso de Jefté, no Livro dos Juízes, implicava em sacrificar a Javé sua filha inocente?
    A respeito do pecado de Adão ser transmitido a toda a sua descendência, o teólogo luterano, Pannenberg, em sua Teologia Sistemática II, tem colocações muito oportunas que faço questão de citar: -"Foi rejeitada para a sensibilidade ética a afirmação de que Deus teria imputado o pecado de Adão a seus descendentes como culpa, ainda antes que eles tivessem cometido, de sua parte, qualquer ato mau. Este princípio, ao imputar aos filhos de Adão o pecado de seu ancestral, parece inconciliável com a fé na justiça de Deus e em seu amor que perdoa."
    - Pode conceber-se que um Deus que é amor, na ousada afirmação do evangelista João, se dedique a castigar  com tormentos inauditos e por toda a eternidade, no assim dito inferno, a um ser humano que muitas vezes, em momentos de fraqueza, tenha cometido uma ação que os moralistas chamam de pecado mortal?  E sem falar que o teólogo oficial da Igreja até tempos atrás, Tomás de Aquino, tenha afirmado na sua Suma Teológica (questão XCIV, art. III), que a contemplação dos tormentos padecidos pelos condenados, "aumenta o gozo dos bem-aventurados" no Céu? 
    - E por falar em céu, repito, é ainda possível tomar ao pé da letra a narrativa da ascensão física de Jeus ao céu, dizendo que Ele subiu,  já que Jesus não podia subir ao céu, pela simples razão de que não existe um lugar  lá no alto aonde subir?
    - Se Deus é tão bom e misericordioso e quer salvar a todos os seres humanos, por que aguardar tanto,  até a chegada de Jesus de Nazaré, deixando abandonados por séculos e séculos a todos os antepassados? É a pergunta que o filósofo pagão, Celso, fez aos apologetas cristãos de seu tempo.
    Estes são apenas alguns exemplos do modo de falar dos cristãos, mas que não tem mais lugar hoje em dia, diante de uma leitura crítica e consciente da Bíblia. Nesta leitura é de fundamental importância, como já foi lembrado, que se faça uma distinção urgentíssima entre aquilo que os autores bíblicos  pensavam em seu tempo,  e aquilo que nós, aprendendo com eles, devemos  pensar nos dias de hoje.
      E termino este estudo com duas frases para nossa reflexão no dia a dia:
    - Diga-me como é o seu Deus, e eu lhe direi como é sua visão do mundo e da vida; diga-me sua visão do mundo e da vida, e eu lhe direi como é o seu Deus.
    - É Deus um juiz que incute medo, legislador que dita e impõe deveres..., ou Pai que inspira confiança e promove a vida? Em suma: vive-se a religião como um peso, ou uma libertação?  

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