Sacerdote recém-ordenado e ainda inexperiente, mas cheio das mais sinceras intenções, fui à favela na tentativa de levar a mensagem de Jesus de Nazaré àqueles irmãos meus, que eu julgava pecadores irremediavelmente despojados da salvação divina, se não lhes fosse anunciada a boa nova dos Evangelhos. Eu me esquecia de que eles, crucificados como o Cristo, já viviam o inferno verdadeiro, muito mais candente e terrível do que o inferno aprendido no catecismo.
A favela, porém, desde o primeiro instante, transformou em pó os meus projetos de evangelizador, atracou-se comigo, atirou-me ao chão e violentou-me inexoravelmente, e eu me sujeitei a ela. Mostrou-me cruamente que o Cristo que eu pretendia levar-lhe era um cristo quimérico, estudado nas assépticas aulas de Teologia, um cristo-fantoche criado pela minha mente idealista, um cristo fabricado artificialmente na atmosfera irreal e alienada do seminário.
Despojado repentinamente de todas aquelas certezas inabaláveis que até então balizavam minha vida de sacerdote recém-ordenado, eu me vi nu e indefeso diante da realidade desumana da favela que me mostrou, como o clarão de um relâmpago, a face verdadeira do Cristo, encarnado em cada um daqueles deserdados da sorte que eu, do alto da minha suficiência filosófica e teológica, pretendia salvar. Ali estava o Cristo oculto atrás das mãos ágeis do pivete; ali estava o Cristo embaixo da maquiagem vulgar e escandalosa da menina-moça que vendia o corpo quase ainda impúbere a fim de comprar remédio para o irmãozinho doente que definhava no barraco; ali estava o Cristo disfarçado no traficante de drogas, que foi levado ao comércio infame pelo desemprego crônico e pela fome da mulher e de cinco filhos anêmicos, que pediam ao menos algumas migalhas de vida.
O choque foi tremendo para mim. O Cristo que encontrei na favela nada tinha daquele meigo e doce nazareno que os padres lustrosos e bem nutridos do seminário tentaram me mostrar nas páginas mal lidas dos Evangelhos.
Eu compreendi num relance que se é verdade que o Cristo se identifica, segundo São Mateus, com cada ser humano que sofre, que padece fome e sede, que se definha numa prisão, que se decompõe num leito de hospital, que está despido ou com frio - então a favela me mostrou, sem sombra de dúvidas, o que doze anos de seminário não conseguiram fazer: ali na favela é que estava o verdadeiro Cristo com quem eu deveria me identificar, transformar no meu próprio sangue os seus sofrimentos, os seus cravos, a sua coroa de espinhos, a sua cruz, enfim, se eu quisesse realmente ser seu discípulo. O cristo-pivete, o cristo-prostituta, o cristo-traficante-de-drogas, o cristo-bicheiro, o cristo-encurralado nos pátios mal cheirosos dos educandários de recuperação, o cristo-torturado e cheio de estigmas pelo corpo, frutos da truculência e dos cassetetes da polícia militar.
Sim, eu vi a favela. Mil barracos dependurados nos barrancos do Rio Belém, enrodilhados sobre si mesmos, abraçados todos num amplexo violento de intrigas e concorrência na luta pela vida. Lá pelas bandas do aeroporto, na tumultuosa e celebrada capital ecológica do Paraná.
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Trinta anos depois, não mais sacerdote novel e ingênuo, porém calejado e endurecido nos embates da vida, eu estava de novo na favela. Fora chamado para celebrar a mais estranha das missas de todo o meu sacerdócio, na qual a Hóstia oferecida em oblação não seria nem o pão nem o vinho. No altar do sacrifício eu ergueria aos céus o corpo, o sangue, as lágrimas, as amarguras, as frustrações, os sofrimentos e humilhações sem conta; eu ofertaria a Deus-Pai, definitivamente, a vida, a paixão e a morte do Cristo-favelado!
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Amanhecia na favela.
O rapazola respirou fundo, espreguiçou-se, saiu do barraco e entrou pela viela cheia de detritos. Deixou para trás a mãe e quatro irmãos menores. Será que não se esquecera de que ele também era menor, apesar de dar ares de ser homem?
O rapazola entrou pela estrada. E a estrada o fez de novo criança. Uma criança franzina, desconfiada, olhada com reservas pelos adultos ressabiados, que se crispavam nervosos quando cruzavam com ele na confusão dos barracos.
Os becos escuros da favela iniciaram-no na vida com o brinquedo predileto de polícia e bandido, e este brinquedo se tornara dura realidade no dia em que seu pai, denunciado por tráfico de entorpecentes, fora levado por dois brutamontes do COPE curitibano. Jurara inocência, mas o telefonema anônimo, pelo 180, falara mais alto, e levaram-no algemado. Levaram, mas se esqueceram de devolvê-lo vivo. Disseram aos jornais que numa tentativa de fuga ele agredira um dos agentes penitenciários, fugiu e foi atropelado por um ligeirinho, na avenida movimentada. A mãe, coitada! tornara-se mãe e pai. Dera à luz, por amor, a cinco filhos. Agora viúva, para sustentá-los, fizera-se trapo: vendera a beleza, que ainda lhe restava, à dura faina de catadora de papéis nas ruas da capital; perdera a energia no trabalho pesado e ininterrupto; vencera o orgulho natural da pessoa em troca de um mísero e sofrido salário de fome.
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- Que belo garoto! Olha só os olhos dele...
Somente nesta ocasião é que as madames do Batel vinham à favela, em reluzente carrão de primeiro mundo. Mas não para ajudar. Não para levar o bálsamo da bondade desinteressada aos deserdados da sorte. Era um curandeiro famoso da favela o alvo das peregrinações grãfinas.
- Que belo garoto! Olha só os olhos dele...
Ele ria a bom rir para si mesmo, pensando se seus olhos eram mesmo o que as madames diziam, pois no barraco não havia espelho em que olhar-se. Só via, perfeitamente, seu corpo franzino, seus braços magros, suas roupas surradas e sujas da faina de catar papéis nas ruas ajudando a mãe; os pés encardidos nas havaianas encontradas ou furtadas num campinho de peladas nas imediações.
- Que belo garoto! Olha só os olhos dele... não são um convite para o amor?
Ele então, assustado com o repentino entusiasmo erótico das madames, voltaria correndo, entraria no barraco, olharia meio ressabiado para a mãe. Ela certamente, como todas as mães do mundo, adoçando a tristeza do semblante cansado, o fitaria com ternura:
- O que você tem, menino? Vamos, desembucha!
- Mãe, que é amor?
Talvez, sem esperar resposta, ele mesmo se atirasse confiante nos braços maternos, como que respondendo a si mesmo. Entrega. Doação. Seria apertado contra o regaço da mulher. Como uma sacerdotisa, ela o levantaria em seus braços, olhos fitos no céu:
- ...Deus!
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Os problemas de sua vida passaram a incluir o amor. Sentia, mas não compreendia. O amor. Tudo o que o rodeava era pura luxúria.
- Como é, cara. Você já está na idade de transar. Não tem uma mina por aí, prá se divertir? Arranja logo uma, cara, se vira!
Tímido, desconfiado, certo domingo aproximou-se de uma garota que o coração apontava como devendo ser sua. Desajeitado, com medo de um fora, coração aos pulos, sussurrou: - Olá! - para a menina-moça.
- Vê se te manca, ô otário! Vai logo dizendo o que quer. Não ganhei nada ainda hoje, e não tenho tempo prá perder com garoto. Quanta grana tem aí?
Era dessas moçoilas que transpiram maldade por todos os poros, cujos olhos mostram abismos de lama. Sua primeira experiência foi desilusão. Ele procurava amor. Aquilo que a garota lhe oferecia não era amor.
Outro dia foi num biarticulado da URBS. Azar dos feios. Bolsos vazios. Tentou engambelar o cobrador, viajar de graça para o centro, dando uma de que alguém lhe furtara os trocados, mas o homem da catraca já manjava de longe malandragem de pivete e não foi na conversa. Esbravejou, ameaçou prender, entregar no Distrito. Foi aí que uma caridosa mão se apresentou e pagou-lhe a passagem. O rapazote viu o gesto e tentou agradecer. Mas faltava-lhe a prática da gratidão. Olhou apenas, fundo, a mão benfeitora. Sentiu um tapinha nas costas e algumas palavras que não entendeu. O barulho do ônibus e o trânsito difícil as encobriu.
O benfeitor anônimo desceu na próxima parada. Ele desceu também um pouco atrás. Viu o homem entrar por uma porta que ele sabia que era de uma igreja. Curioso, furtivo, o rapaz o seguiu. Havia visto muitas construções daquele tipo, mas nunca por dentro. Ressabiado, entrou pela porta entreaberta.
Lá na frente, enorme, dominando tudo, sob a luz viva dos vitrais, o Crucificado.
Olhos tristes em direção à terra; boca contraída, como a pedir água; braços e mãos estendidos num gesto de quem recita um poema de dor. Um verdadeiro crucificado, coroado de espinhos, lado aberto, corpo sangrando. Sofrimento. Dor.
Rápido, seu pensamento voou para a favela. Aquilo ali, pendurado na cruz, bem poderia ser um homem da favela, um retrato da desumanidade por que passavam seus irmãos de desdita. Teve pena dele. Quem seria? Com dificuldade soletrou: INRI.
Avançou um pouco mais, admirando tudo, em descobertas nunca esperadas. Uma grande mesa no centro, com dois castiçais. Ao lado uma lampadazinha vermelha tremelicando acesa num copo de azeite. O desconhecido que lhe pagara o ônibus passou defronte à mesa. Uma genuflexão simples, piedosa.
- Por que isso?
- É que ali está o Pão Sagrado, o corpo de Cristo, a Hóstia Santa...
- Onde? Posso ver?
- De noite. Na hora da novena.
Não voltou para a favela, não foi ao parque de diversões. De noitinha, retornou àquela casa desconcertante, que lhe prometia grandes revelações. Lá estava, junto à mesa, bem debaixo do enorme Crucificado, o homem misterioso, só que agora com estranhas vestes:
- Pão?
- É alimento.
- Corpo?
- É vida.
- Hóstia?
- Hóstia? Hóstia... Não, não sei.
Mais tarde, altar com velas acesas. Alguma coisa brilhante parecendo um sol feito de ouro. No centro, a Hóstia, branca, branca, pequenina. Fumaça perfumada, que mais tarde ele soube que se chamava incenso. Muita gente de joelhos, cantando.
Dentro de seu peito, no fundo de seu coração, sentiu que alguma coisa o roía, parecia que alguém muito próximo queria falar-lhe, e teve a impressão de que sua vida estaria para sempre, de algum modo misterioso e ainda obscuro, ligada àquela Hóstia que tanto o fascinava.
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Ele estava literalmente duro. Recomendaram-lhe certo doutor, um deputado do partido do governo, homem rico e com fama de quebra-galhos dos pobres. Na sala de espera, a recepcionista, distante e fria:
- Tem muitas pessoas na frente. Sente-se e espere sua vez.
Depois, horas mais tarde, a timidez, o nó na garganta, o pedido balbuciante e difícil de sair. - Volte amanhã. Tentarei dar um jeito. Está difícil prá todo mundo. O governo está fazendo o que pode. Tenha um pouco de paciência.
Um episódio a mais na vida de todos os dias: um homem anulando outro homem. Lá naquela casa estranha, a Hóstia, cercada de gente, não parecia ser assim. Nada de respostas secas. Nada de evasivas. Estava sempre aberta a todos. Negros, brancos, moços, velhos, crianças, homens, mulheres. Todos confiantes. Todos cheios de fé, na espera do dom que nunca falha.
- Pai nosso...
- Pai nosso?!
O pão em casa acabou de vez. Tinha ouvido não sabia onde: Comerás teu pão com o suor de teu rosto! Isto não lhe dizia respeito, não era com ele. Não trabalhava, não suava: não merecia o pão.
- O que será feito do Pão Sagrado?
- Comido.
- Eu tenho também água viva...
- Eu tenho sede. Dá-me dessa água.
- Quem comer da minha carne...
- Eu tenho fome.
- Se conhecesses o dom de Deus...
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- Entra logo, cara. Venha ver que dom estas minas podem te oferecer. Entra logo, é barato, as meninas são novinhas e não têm nenhuma doença. O que está esperando, cara? Entra logo. Uma vez só. Não vai se arrepender...
O ambiente era aquele de que muitas vezes ouvira falar, quando moleque, entre cochichos e risos disfarçados. Luzes semi-acesas, muita fumaça de cigarro, muita bebida, muitos ritmos sensuais, mulheres bonitas, quase nuas, maquiagem exagerada, se oferecendo, se doando, se vendendo. Nunca tivera coragem de visitá-las. Agora o amigo, desempregado que conseguira um bico de segurança ali, o estava convidando, com insistência.
O corpo. A adoração do corpo. Perder a consciência, esquecer a miséria, o desemprego, embriagar-se com a carne palpitante daquelas mulheres, deixar-se dominar pelas emoções incontroláveis.
Mas, e o corpo do Cristo crucificado? O corpo de Cristo! Este sim, era um corpo diferente, adorado, respeitado, venerado. Nada de profanações baratas. Sim, a dignidade do corpo! E a Hóstia, toda branca, toda pura!
- Aqui só tem barulho, algazarra...
- Não seja trouxa, cara. Isto é alegria, é festa, é prazer!
- Tudo muito escuro...
- Eh, meu, no escuro é muito melhor.
- Pois se minha vida até hoje é pura escuridão, eu quero é luz, muita luz para mim e meus filhos!
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O volver contínuo de desejos e frustrações, de esperanças e desenganos, a vida inteira infeliz e sem futuro sofreu interrupção violenta um dia. A desnutrição, os traumas do desemprego crônico, a fome, o frio, a broncopneumonia, a absoluta falta de recursos no barraco.
Nada mais havia a fazer. Chegara a hora e a vez de Deus: a celebração da Missa, a oblação do seu corpo e do seu sangue.
O ritmo da favela aparentemente não mudou; mas, para quem tinha olhos de ver, a Providência Divina a tornara uma patena, sem ouro, é verdade, pois aí reinava a pobreza extrema. Mas uma patena sublime sobre a qual descansaria a hóstia do sacrifício.
Morria, repetindo sem cessar:
- A Hóstia! A Hóstia!
Num gesto de pai, o homem misterioso do ônibus, o sacerdote endurecido nos embates da vida, chamado à favela, estreitou ao seu coração um novo Cristo moribundo, o Cristo favelado.
- A Hóstia! A Hóstia!
- Você sabe o que é Hóstia, meu filho? Hóstia é ser vítima como você sempre foi. Hóstia é deixar-se imolar... É sofrer por amor de Alguém... do homem da favela... do Crucificado... de Deus.
- Estou todo sujo... fiz muita maldade... a Hóstia é branca...
- Você agora é a Hóstia. Deus o limpa e purifica com as lágrimas que você está derramando... Você é o filho que volta.
- ...a Hóstia!
Já nada mais falta. Tudo está consumado. E prossegue a Missa:
- Recebei, Pai Santo...
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