segunda-feira, 3 de abril de 2017

CAPITU, A MENINA DOS OLHOS DE RESSACA



            Estou relendo pela quinta ou sexta vez o "Dom Casmurro", obra prima de Machado de Assis. Releio, não tanto por causa do autor, mas o releio porque, cada vez que o faço, mais me apaixono pela Capitu, a menina dos olhos de ressaca.
            E, terminada a releitura, sempre me vem à cabeça, queira eu ou não queira, a interrogação que nunca deixa de martelar-me o cérebro: por que será que o ranzinza Machado de Assis foi tão ruim com a Capitu?
            Sempre ouvi dizer que, apesar de ser considerado o maior escritor brasileiro, era ele um sujeito cínico, perverso mesmo, mas nunca imaginei que fosse Capitu quem deveria sofrer as malvadezas dele.
            Saudosa e pobre Capitu!
            Não me chamo Bentinho, não morei nunca no casarão da Matacavalos, mas não consigo  perdoar o que o Machado fez com Você, nem a esquecerei jamais!
            Quantas vezes ainda hoje, apesar dos oitenta e um anos no costado, nas balbúrdias da vida, no silêncio do  estudo, na concentração da prece, ou nos gestos do amor, eu me vejo de repente ensimesmado, distraído, pensando em Você, conversando com você, namorando-a à distância, nós dois sentados à beira do poço, na chácara do velho Pádua!
            Parece-me vê-la novamente, aquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita meio desbotado, os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, o riso claro, espontâneo e alegre. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças negras, com as pontas atadas uma à outra, a descer-lhe pelas costas, à moda do tempo...
            Ainda me lembro daquele dia em que, ao entrar na sala de visitas, ouvi proferir meu nome e escondi-me atrás da porta. E ali, trêmulo, com medo de um espirro, ouvi o José Dias contar à minha mãe muita coisa de nós dois, que andávamos pelos cantos, aos segredinhos, e que, se pegássemos de namoro, então é que seria a dificuldade para me botarem no seminário, fazerem-me padre, promessa de minha mãe!...
            Fugi da varanda. Ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me boca a fora. Vozes confusas me repetiam o discurso do José Dias:
            - "Sempre juntos... " - "Aos segredinhos..." - "Se eles pegam de namoro..."
            Ah! Capitu! Naquele tempo tudo isso eram apenas travessuras de crianças, ainda não sabíamos analisar o que nos ia pelo coração. Você se lembra do dia em que eu a surpreendi escrevendo no muro com a ponta de um prego? Eu quis ver de perto e dei um passo. Você agarrou-me, mas , ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e tapou o escrito com o corpo. Foi o mesmo que atiçar em mim o desejo de ler o que era. Dei um pulo, e antes que Você raspasse o muro, li dois nomes abertos ao prego, e esses nomes eram os nossos!
            Voltei-me para Você. Você tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro...
            Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, diria o velho Machado. Na verdade, eu e Você não falamos nada, o muro falou por nós. Daí então, Capitu, poderíamos ter sido muito felizes. Mas mamãe tinha feito promessa de botar-me para padre. E não havia jeito de tirar-lhe isso da cabeça, pois até o vigário da paróquia estava a seu favor.
             Você preferia tudo ao seminário. Até fugir Você me propôs, ou então ligar uma canoa a muitíssimas outras, fazer até Roma uma ponte de canoas, e lá pedir ao Papa dispensa da promessa de minha mãe. Nada lhe parecia difícil, pois Você era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, muito mais mulher do que eu era homem.
            E o tempo correu. Alguns dias antes de partir para o seminário, fui visitá-la em sua casa. Encontrei-a na varanda, penteando os cabelos. Tomei o pente de suas mãos, desmanchei-lhe os cabelos, e eu mesmo quis penteá-los. E o fiz muito devagar, demoradamente, com carinho,
desmanchando e penteando de novo, indefinidamente, como se quisesse segurar o tempo!
            Você refletia. A reflexão não era coisa rara em Você, mas nesse dia era uma reflexão toda especial. Você pensava em algum último e desesperado recurso para me livrar do malfadado seminário. Fiquei tão comovido com a sua dedicação que corri à janela e comprei duas cocadas de um moleque que passava. Tive de comê-las sozinho. Em meio à crise, eu ainda achei tempo para cocadas, ao passo que Você não quis saber delas, e quanto Você gostava de doces! E o moleque foi cantando rua a fora o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância: -"Chora, menina, chora; chora porque não tem vintém."
            Creio que a letra, destinada a ferir a vaidade das crianças, foi que aborreceu minha amiga, pois logo me disse: - "Se eu fosse rica, Você fugia, metia-se num navio e ia para a Europa..."
            Como se vê, Capitu, Você aos quatorze anos já tinha ideias atrevidas. Mas apesar delas, apesar do juramento que fizemos certa tarde à beira do poço, de que um dia nos casaríamos, apesar dos mil "pai-nossos", e das mil "ave-marias" que prometi aos céus, minha mãe me botou no seminário!
           E a nossa despedida, Capitu? Você se lembra? Foi de tardezinha, debaixo do caramanchão; e ali ficamos, não sei quanto tempo, somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades.
           Vieram depois as lutas. Eu não queria saber do seminário. Os padres lustrosos e enfatuados me enfaravam. Enjoava-me o cheiro do incenso. Enfastiavam-me as longas rezas. A carolice dos companheiros dava-me nos nervos. E inventava planos para sair. E monsenhor Cabral, o reitor, não deixava. O José Dias, cúmplice, não descobria logo a maneira mais honrosa de safar-me da batina. Mamãe continuava esperançosa de ainda me ver um dia dizendo missa. E Você lá na sua janela, pensando... sofrendo... E como eu sofria também nesse tempo, Capitu!
            Depois... depois... Ah! Machado de Assis!... O que é que Você foi fazer da minha Capitu de olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada?
                                           
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           Fecho o livro no ponto em que um dia o deixei, para chorar a traição da Capitu. E, chorando sua traição, sinto vontade de chorar a morte da minha juventude e dos  mal- ajambrados sete anos que passei num seminário da Capital paulista, também promessa de minha inesquecível mãe, que Deus a tenha na Sua paz!

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