...e a velha estrada ficou em meus olhos
pois os caminhos, também, envelhecem
e morrem
somos da mesma idade, querida estrada
vê com que amizade
contemplo
tuas barrancas meio gastas
enquanto olhas
fraternalmente
as rugas em meu rosto sempre mais fundas
anunciando minha septuagésima nona idade
tua glória é também a minha
é a de servirmos de caminho
e de não prostrarmo-nos
cansados
e de não nos retermos
e de gastar-nos, sempre,
conduzindo, conduzindo,
até o fim da jornada...
*****************
Não sei se Você, meu benévolo leitor, entendeu esta minha conversa com a velha estrada. A placa da imaginação é datada do mesmo longínquo ano em que nasci em Minas Gerais, na pequenina cidade de Caldas... fevereiro de 1936!
Mas estrada se gasta. Se não houver cuidado de mantê-la em forma, se não for sendo renovada, vai envelhecendo e pode até se acabar, ficar intransitável, como já estão muitas estradas do meu bairro, o velho Tingui de muitas guerras.
Os dois, eu e ela, nos olhamos como velhos amigos que se viram crianças e, hoje, lado a lado, contemplam as marcas do tempo.
Mas o importante foi lembrar à estrada e a todos nós, caminheiros - pois todos nos parecemos com estradas - lembrar que o importante para as estradas e para nós é servir de caminho, é ajudar a caminhar...
Ai da estrada que, em lugar de facilitar a caminhada, prendesse a si quem devesse atravessá-la... Papel da estrada, como o meu, é ajudar a caminhar, a não parar, a seguir...
Mesmo que a estrada se gaste com a passagem de carros e caminhões, mesmo que ela se gaste com o número de pessoas que passam a pé - quem sabe, também, com o gado que passa da engorda para o matadouro: a estrada se gasta servindo, gasto bendito!
Nossa alegria deve ser, também, servir.
Certo dia, em visita ao geriatra meu médico, perguntei ao cabineiro do elevador, já velho no ofício, quantas pessoas subiram e desceram, levadas por ele, em seu elevador... Não soube calcular, mas sorriu feliz pensando na multidão a que já serviu...
Também o velho e querido chofer do táxi, que leva minha neta Isabela ao colégio, não soube calcular quantas pessoas transportou nos três ou quatro carros que já possuiu... Não soube calcular, mas ele também ficou feliz, pensando em como tem servido à Humanidade...
Perguntem ao carteiro quantas cartas entregou até hoje. Perguntem à telefonista quantas chamadas recebeu e quantas transmitiu... E ao velho pescador quantos peixes já pescou - mesmo que Vocês não acreditem no número que ele informou... E à cozinheira do meu restaurante predileto quantos pratos preparou e quantas panelas lavou...
Até hoje, curioso, só encontrei uma velha parteira, cá no bairro, que estava com a resposta exata quanto lhe perguntei quantas crianças ela "aparou..."
Pois ela respondeu sem vacilar:
- "Tenho trinta e dois anos de trabalho e anotei, dia-a-dia, numa cadernetinha de bolso: até hoje, oitocentas e cinquenta e oito crianças... e não perdi nem uma..."
Que glória, velha estrada de minha vida, a de gastar-nos, gastar-nos, servindo, servindo, servindo, servindo!...
*******************
Dedico este texto à memória de minha querida filha Raquel que, se estivesse viva, estaria neste dezessete de março fazendo quarenta e oito anos em sua breve existência. Infelizmente, não podemos mais tê-la conosco, pois ela partiu prematuramente para a Casa do Pai de todos os pais. Que ela descanse na paz do Senhor Jesus!
********************
Em tempo:
A Liturgia da Missa, neste quarto domingo da Quaresma traz, como Salmo Responsorial, o Salmo 136, que aqui transcrevo, em Latim e em Português:
I - O texto latino, como está na "Vulgata" =
Ad flumina Babylonis, illic sedimus et flevimus,
cum recordaremus Sion.
In salicibus terrae illius
suspendimus citharas nostras.
Num illic, qui abduxerant nos,
rogaverunt a nobis cantica,
et qui affligebant nos, laetitiam:
"Cantate nobis ex canticis Sion!"
Quomodo cantabimus canticum Domini
in terra aliena?
Si oblitus era tui, Jerusalem,
oblivioni detur dextera mea!
Adhaereat lingua mea faucibus meis,
si non memonero tui,
si non posuero Ierusalem
super omnem laetitiam meam.
Recordare, Domine, contra filios Edom
diem Ierusalem,
qui dixerunt:
- "Evertite, evertite
ipsa fundamenta in ea."
Filia Babylonis vastatrix,
beatus qui rependit tibi
mala quae intulisti nobis!
Beatus qui apprehendet et allidet
parvulus tuus ad petram!
**********************
O texto, em tradução portuguesa da "Bíblia de Jerusalém":
Que se prenda a minha língua ao céu da boca,
se de ti, Jerusalém, eu me esquecer.
Junto aos rios da Babilônia
nos sentávamos chorando,
com saudades de Sião.
Nos salgueiros por ali
penduramos nossas harpas.
Pois foi lá que os opressores
nos pediram nossos cânticos;
nossos guardas exigiam
alegria na tristeza.
"Cantai hoje para nós
algum canto de Sião."
Como havemos de cantar
os cantares do Senhor
numa terra estrangeira?
Se de ti, Jerusalém,
algum dia eu me esquecer,
que resseque a minha mão.
Que se cole a minha língua
e se prenda ao céu da boca,
se de ti não me lembrar!
Se não for Jerusalém
minha grande alegria!
**************************************************
E não é que, compulsando as "Obras Completas", de Camões, publicadas por Hernâni Cidade, no volume 1, encontrei ali o belíssimo e longo poema, intitulado "Babel e Sião", do qual, por brevidade, transcrevo apenas algumas estrofes:
Sôbolos rios que vão
por Babilônia, me achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
dos meus olhos foi manado;
e, tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Ali, lembranças contentes
na alma se representaram;
e minhas coisas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
com rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.
E vi que todos os danos
se causavam das mudanças,
e as mudanças, dos anos.
Onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
*****************************************
Ó tu, divino aposento,
minha pátria singular,
se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que farei, se em ti eu me achar?
Ditoso quem se partir
para ti, Terra excelente,
tão justo e tão penitente
que, depois de a Ti subir,
lá descanse eternamente!
*******************************************
O Poema vai longe e cheio de encantamento, mas sirvam estas poucas estrofes, para mostrar-nos o quanto o Salmo bíblico impressionou a alma do Poeta, e o fez derramar-se em versos maravilhosos de sua "Lírica", nesta soberba paráfrase.
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Em tempo:
A Liturgia da Missa, neste quarto domingo da Quaresma traz, como Salmo Responsorial, o Salmo 136, que aqui transcrevo, em Latim e em Português:
I - O texto latino, como está na "Vulgata" =
Ad flumina Babylonis, illic sedimus et flevimus,
cum recordaremus Sion.
In salicibus terrae illius
suspendimus citharas nostras.
Num illic, qui abduxerant nos,
rogaverunt a nobis cantica,
et qui affligebant nos, laetitiam:
"Cantate nobis ex canticis Sion!"
Quomodo cantabimus canticum Domini
in terra aliena?
Si oblitus era tui, Jerusalem,
oblivioni detur dextera mea!
Adhaereat lingua mea faucibus meis,
si non memonero tui,
si non posuero Ierusalem
super omnem laetitiam meam.
Recordare, Domine, contra filios Edom
diem Ierusalem,
qui dixerunt:
- "Evertite, evertite
ipsa fundamenta in ea."
Filia Babylonis vastatrix,
beatus qui rependit tibi
mala quae intulisti nobis!
Beatus qui apprehendet et allidet
parvulus tuus ad petram!
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O texto, em tradução portuguesa da "Bíblia de Jerusalém":
Que se prenda a minha língua ao céu da boca,
se de ti, Jerusalém, eu me esquecer.
Junto aos rios da Babilônia
nos sentávamos chorando,
com saudades de Sião.
Nos salgueiros por ali
penduramos nossas harpas.
Pois foi lá que os opressores
nos pediram nossos cânticos;
nossos guardas exigiam
alegria na tristeza.
"Cantai hoje para nós
algum canto de Sião."
Como havemos de cantar
os cantares do Senhor
numa terra estrangeira?
Se de ti, Jerusalém,
algum dia eu me esquecer,
que resseque a minha mão.
Que se cole a minha língua
e se prenda ao céu da boca,
se de ti não me lembrar!
Se não for Jerusalém
minha grande alegria!
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E não é que, compulsando as "Obras Completas", de Camões, publicadas por Hernâni Cidade, no volume 1, encontrei ali o belíssimo e longo poema, intitulado "Babel e Sião", do qual, por brevidade, transcrevo apenas algumas estrofes:
Sôbolos rios que vão
por Babilônia, me achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
dos meus olhos foi manado;
e, tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Ali, lembranças contentes
na alma se representaram;
e minhas coisas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
com rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.
E vi que todos os danos
se causavam das mudanças,
e as mudanças, dos anos.
Onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
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Ó tu, divino aposento,
minha pátria singular,
se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que farei, se em ti eu me achar?
Ditoso quem se partir
para ti, Terra excelente,
tão justo e tão penitente
que, depois de a Ti subir,
lá descanse eternamente!
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O Poema vai longe e cheio de encantamento, mas sirvam estas poucas estrofes, para mostrar-nos o quanto o Salmo bíblico impressionou a alma do Poeta, e o fez derramar-se em versos maravilhosos de sua "Lírica", nesta soberba paráfrase.
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