Simone de Beauvoir, companheira do filósofo francês líder do existencialismo ateu, Jean Paul Sartre, escreveu nas suas "Memórias de Uma Moça Bem Comportada" que os padres não pregam sobre o inferno porque não acreditam mais nele. Se é verdadeiro o fato, não sei; o que sei é que outro famoso ensaísta e poeta francês, Charles Péguy, viu-se obrigado a abandonar a Fé católica diante das pregações aberrantes sobre o inferno, uma vez que ele, dizia, não encontrou outra possibilidade mais honesta com Deus e consigo próprio, porque não conseguia compreender o inquietante mistério do inferno. Em todo caso, como disse a Beauvoir que os padres atualmente não pregam mais sobre o inferno, eu completo que ainda bem, porque muitos estragos já se fizeram com tais pregações. A própria sabedoria popular nos ensina que "o medo é mau conselheiro". E a história religiosa também já demonstrou que a "pastoral do medo" conduz necessariamente ao fracasso. Aqui me lembro de uma frase pronunciada pelo meu professor de Teologia Sistemática, na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, nos idos de sessenta: -"Como falar ou escrever sobre a bondade e o amor gratuito e incondicional de Deus, ou da sublime intuição do evangelista João de que "Deus é amor", tendo a imagem do inferno diante dos olhos?"
A pregação de padres e pastores sobre esta inquietante realidade coloca-nos um problema muito difícil, pois o inferno é um mistério obscuro, além de um problema sombrio para os tempos de hoje e de uma nova mentalidade teológica. Sua abordagem tradicional presta-se a todas as deformações e tende a evocar os piores monstros de nosso subconsciente. Para muitas pessoas pode converter-se em uma fonte dolorosa e turva de escrúpulos e angústias existenciais. E quanto à sociedade, muitas vezes em tempos ainda recentes seus horríveis fantasmas foram usados para fortalecer o poder e legitimar a opressão. Por si mesma, vista a partir da religião, tal pregação representa um tema secundário e colateral, um resto do que não foi alcançado, uma mera sombra da salvação fracassada. Mas o fato preocupante é que ela, na boca de padres e pastores desavisados, acaba mobilizando as molas mais profundas da vivência religiosa, e colocando em questão os próprios fundamentos da Teologia.
A simples evocação do inferno nas pregações, parece estar em contradição com a bondade divina e a liberdade humana, o sentido amoroso da Criação e a vontade salvífica universal de Deus, e muito mais o valor absoluto da Redenção trazida a nós pela morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Lembremo-nos de que certas afirmações tradicionais sobre o inferno são tão monstruosas que, se fossem verdadeiras, deslegitimariam a Fé cristã de maneira radical.
Nestes termos, que dizer de um pai, ou de uma mãe, na bem-aventurança do Reino de Deus, sabendo que um filho seu ou uma filha querida estão no inferno, padecendo os mais terríveis tormentos, e por toda a eternidade, muito maiores que os mais atrozes perpetrados por Hitler e sua camarilha, nos tempos do holocausto? E os ateus e os agnósticos nos questionam, e com razão: que religião é essa, que ensina em seus templos tais monstruosidades, ao mesmo tempo que tem a coragem de pregar que o apóstolo João apresenta Deus como sendo Pai, como sendo Amor?
Neste aspecto, convém antes de tudo, e urgentemente, afirmar o "caráter não-literal mas metafórico de toda a linguagem dos últimos fins "(Queiruga, "Repensar a Salvação") e, concretamente, do inferno. Algo elementar na mais elementar exegese, mas sobre o qual é preciso insistir, pois todos nós nos recordamos com horror as descrições literais do fogo do inferno ou dos diversos e inauditos tormentos padecidos pelos condenados. Tormentos infinitos por um pecado ou pecados finitos. Algo que não somente ainda ocorre na pregação de padres e pastores, mas também e principamente, nos livros populares de devoção.
A pregação tradicional sobre o inferno na ecumene cristã parte de uma imagem de Deus que nos faz estremecer. Sua influência obscura e subterrânea, ao longo da história da Teologia, reforçou sombras e fantasmas que nunca deveriam ter-se aproximado sequer da nossa idéia sobre a verdeira e autêntica face de Deus, a do Abbá Pai/Mãe, a nós revelada por Jesus de Nazaré, cuja essência consiste em amar (1Jo 4,8-16). A partir da intuição deste Deus que nos criou por amor, na condenação de homem e de mulher ao inferno só podemos ver, não algo que Deus deseja, quer ou impõe como castigo, mas justamente o contrário: algo que Deus padece, com que sofre, mas que não pode evitar, porque respeita a liberdade humana. Como poderia ser de outro modo, se Deus cria unicamente por nós e para nós; para comunicar Seu amor e Sua salvação, buscando somente nossa realização e nossa felicidade? Não é isto que acontece com um pai e uma mãe simplesmente honestos e normais, quando vêem um filho que entra no caminho da autodestruição, no uso de drogas, por exemplo? Darão a ele os seus melhores conselhos e o ajudarão com todas as suas forças; porém, se ele persiste, não o "castigarão", acrescentando mais desgraça à sua desgraça, ou tornando ainda mais duradouro e doloroso o processo de sua autodestruição. Sucederá o contrário, isto sim: sofrerão com ele e ainda mais que ele, porque sentirão como próprio o fracasso do filho.
O profundo e sensível cardeal inglês, Newman (representando, neste sentido, muitíssimos cristãos sinceros), viveu largamente a dolorosa experiência, nas pregações de sua época, de uma tenebrosa concepção do inferno, que acreditava obrigatória em seu sentido literal. Escreveu ele em seu livro "Apologia por vita sua", publicado em 1997: -"Desde este tempo, (aos quinze anos) dei também pleno assentimento interior e minha fé plena à doutrina dos castigos eternos, como ensinada por Nosso Senhor mesmo, com igual sinceridade que a da felicidade eterna, se bem que ensaiava, por várias vezes, tornar aquela verdade menos espantosa para a imaginação."
Pierre Teilhard de Chardin, padre, teólogo, paleontólogo e místico francês, que causou furor na década de cinquenta/sessenta com seu livro "O Fenômeno Humano" e mais tarde com "O Meio Divino", fez confluir nestas duas importantíssimas obras, vivas e já amadurecidas na expressão, as idéias que mais agitavam a alma ardente e de amplos horizontes do autor.
Pois é em "O Meio Divino" que Teilhard, analisando em profundidade o problema do mal neste nosso mundo, escreveu estas palavras impressionantes pela sua sinceridade: -"Meu Deus, entre todos os mistérios que nos pregam e nos quais devemos crer, não há nenhum que choque mais o nosso olhar humano do que o mistério da condenação. E quanto mais nos fazemos homens, conscientes dos tesouros escondidos no mínimo dos seres, e do valor que representa o átomo mais humilde para a unidade final, mais nos sentimos desconcertados com essa idéia do inferno."
Entre os ateus, agnóticos e iluministas foram muitos, desde David Hume e John Stuart Mill. até Bertrand Russel e Anthony Flew, os que buscaram na idéia de inferno os argumentos de maior contundência para atacar o Cristianismo. Com efeito, diziam eles, um deus capaz de criar e manter "esse" inferno apresenta-se a eles como o paradigma de uma crueldade sádica e implacável.
Na verdade, certa insistência no castigo e no inferno desconhece o próprio núcleo do Deus bíblico, a quem o profeta Oséias chegou a intuir como incapaz de castigar, "porque sou Deus e não homem". (Os 11,8-9), e que o apóstolo Paulo quase "definirá" como "Aquele que consiste em perdoar" (cf. Rm 8,33; leia-se 8,31-39), texto este, com certeza, um dos mais sublimes da literatura religiosa universal. É por ter perdido de vista esse "coração de Deus", cuja ternura deveria ser mantida como pressuposto sempre erguido, anterior a qualquer outra consideração, que a doutrina sobre o inferno pôde levar a exageros que por vezes beiram o monstruosamente sádico. Recorde-se, a propósito, que o teólogo oficial da Igreja Católica até tempos atrás, Tomás de Aquino, na sua "Suma Teológica", chegou a afirmar que "para que a bem-aventurança dos santos satisfaça mais e eles possam dar mais abundantes graças a Deus por ela, lhes é concedido ver todos os detalhes das penas dos ímpios no inferno". (ST, Supl. q.194, a1). Verdadeiro e cruel absurdo!
É o inferno uma realidade ou um mito? Note-se que até aqui eu não afirmei nem neguei a existência do inferno. Questionei, sim, e continuarei questionando essa pregação tradicional sobre ele nas assembléias e na literatura devocional cristãs. Se me sobrar tempo e condições de entrar na discussão da realidade ou da não realidade do inferno, deixo desde já resguardada a chave hermenêutica central da experiência bíblica a ser observada e que é mais consentânea com a verdadeira e autêntica face de Deus a nós revelada por Jesus de Nazaré: - TUDO O QUE DEUS FAZ OU MANIFESTA É EXCLUSIVAMENTE EM VISTA DE SUA VONTADE SALVÍFICA UNIVERSAL.
É o inferno uma realidade ou um mito? Note-se que até aqui eu não afirmei nem neguei a existência do inferno. Questionei, sim, e continuarei questionando essa pregação tradicional sobre ele nas assembléias e na literatura devocional cristãs. Se me sobrar tempo e condições de entrar na discussão da realidade ou da não realidade do inferno, deixo desde já resguardada a chave hermenêutica central da experiência bíblica a ser observada e que é mais consentânea com a verdadeira e autêntica face de Deus a nós revelada por Jesus de Nazaré: - TUDO O QUE DEUS FAZ OU MANIFESTA É EXCLUSIVAMENTE EM VISTA DE SUA VONTADE SALVÍFICA UNIVERSAL.