Num certo sentido, homens e mulheres deste nosso mundo estão cercados por todos os lados pelo doloroso e angustiante silêncio de Deus, abandonados totalmente à própria sorte de seres contingentes, finitos, entregues à morte.
"Homens e mulheres sentem que suas vidas se intercalam entre duas gigantescas noites: a noite da não existência. Ontem não eram. Esse ontem recua bilhões de anos até o famoso big-bang inicial. E antes dele paira o silêncio do nada. Após a morte, abre-se nova noite escura sem término. Entre essas duas ameaças do caos inicial e final, homem e mulher caminham solitários, sem luz.
É o que leio em "Introdução à Teologia", de Libânio/Murad.
Ou nas perturbadoras palavras do cientista J. Monod:
- "Homem e mulher sabem que estão sós na cega imensidão do universo, de que saíram por puro acaso).
Ou como diria Albert Einsten:
- "Estranha é nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós vem para uma curta passagem, sem saber por quê, ainda que algumas vezes tentando adivinhar um propósito". (Dawkins, "Deus, Um Delírio").
Continuando, poder-se-ia invocar Pascal, nos seus "Pensamentos":
- "Aspiramos à verdade, e só encontramos incertezas. Buscamos a felicidade e só achamos miséria e morte. O silêncio eterno desses espaços infinitos nos apavora..."
O saudoso Papa Bento XVI em seu livro "Jesus de Nazaré", comentando o salmo 73, em que o justo sofredor protesta diante de Deus contra os males que nos acometem, pergunta:
- "Deus não vê nada, realmente? Não ouve? Não se preocupa com o destino do homem?" E cita um dos lamentos do salmista:
- "Foi então para nada que conservei um coração puro? Sou provado a cada hora e molestado continuamente..."
É de fato um grande enigma, e diante dele os crentes sentem duramente o peso do silêncio divino, não como negação da existência de Deus, mas sim como sensação de abandono e indiferença por parte de Deus. Este silêncio enigmático e sufocante desconcerta a muitos cristãos menos prevenidos, sempre desejosos de qualquer manifestação sensacional de Deus. Uma espécie de teofania do Antigo Testamento, com raios e trovões, que purificasse para sempre o mundo corrompido, curasse todas as mazelas e sofrimentos da humanidade, e reconduzisse à Fé teocêntrica os povos e as nações.
Acossados por este silêncio de Deus para eles incompreensível, homem e mulher de todas as etnias fazem ouvir o seu gemido angustioso, um gemido que vem de longe, expresso por boca humana, e que parece refletir uma dor primeira que remonta às origens do mundo. Não um gemido genérico do animal ferido que sente a terra entreabrir-se para devorá-lo, mas o gemido existencial do homem e da mulher, isto é, o gemido da alma erguida que se levanta e interroga a Deus, pedindo-Lhe explicações para a onda de mal e de sofrimento que envolve por todos os lados o mundo por Ele criado.
Começando pelo bíblico Jó ("Pereça o dia em que nasci, que sobre ele não brilhe a luz); continuando pelos salmistas; assumido dramaticamente por Jeremias nas suas elegias, até culminar no angustiado grito de Jesus de Nazaré na cruz, este gemido secular perpassa por toda a Bíblia, num clamor contínuo e sem respostas:
- "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Clamo de dia, e não respondes; grito de noite, e não encontro repouso..." - (Salmo 22).
Nos quatro evangelhos a tradição existencial do silêncio de Deus aparece de forma muito explícita em dois momentos muito importantes da vida de Jesus de Nazaré: no Horto das Oliveiras (Mt 27, 36-46, Mc 14, 32; Lc 22, 39-46 e, em seguida, na cruz (Mt 27, 46; Mc 15, Lc 23,46, Jo 19-28).
Já em nossos dias, visitando o campo de concentração de Auschiwtz, onde um milhão e meio de judeus foram mortos pelos nazistas, o Papa Bento XVI deixou-se levar pela emoção e lançou também este brado, que surpreendeu e comoveu o mundo inteiro:
- "Por que, ó Deus, o Senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava Deus naqueles dias? Por que ficou Ele em silêncio? Como pôde permitir esse massacre sem fim, esse triunfo do mal?
E eu, parodiando a pungente pergunta do judeu alemão Hans Jonas na Europa do pós-guerra, tomo a liberdade de acrescentar:
- "Onde está Deus, que não vem libertar-nos da violência das guerras e do terrorismo desenfreado que acomete regiões inteiras deste nosso mundo?
E poderia ainda acrescentar com Andrés Torres Queiruga, no seu livro "Recuperar a Salvação":
- "Onde está Deus quando nos acontece uma desgraça, ou nos sentimos infelizes? Onde se situa Deus em nossa vida e em nossa História?"
A tentação exercida entre nosso povo simples e marginalizado, principalmente os das periferias, pelo baixo espiritismo e pelas incontáveis seitas pentecostais e milagreiras, é prova de uma fome quase doentia de milagres, fome de apalpar, de apreender, de agarrar essa presença ou ausência misteriosa que governa o mundo:
-"Ah! Se rompesses os céus e descesses! As montanhas se desmanchariam diante de Ti!" (Isaias, 63,19).
Para a mentalidade contemporânea, homem e mulher experimentam uma dificuldade quase insuperável no seu ansiado contato com Deus. Isto porque "Deus, enquanto mistério indizível, não pode ser encontrado em nosso mundo, parece não poder entrar nesse mundo com que nós temos de nos haver, pois que assim Ele Se tornaria o que não é, a saber: uma realidade singular lado a lado com outra realidade que não Ele." (Karl Rahner, "Curso Fundamental da Fé").
Na verdade, para nós cristãos-católicos, Deus nos fala sem cessar. E é justamente a Liturgia que nos vem continuamente lembrar esta realidade empolgante: Deus está no mundo. Deus desceu sobre a Terra e se fez como um de nós. Não é apenas uma presença figurada como na Arca da Aliança. É uma presença tão difundida e tangível, que nos envolve como uma atmosfera por todos os lados, como envolve o mundo. Já o disse Teilhard de Chardin, sacerdote e cientista, no seu livro "El Medio Divino":
- "Que nos falta então para que O possamos abraçar? Somente uma coisa: vê-Lo."
Presença que se tornou concreta e palpável na Encarnação. Deus Se fez carne, na pessoa de Seu Filho, levantou Sua tenda entre nós, entrando na história humana para dela não mais sair. Portanto, para nós, "a vida histórica de Jesus é a revelação mais plena do Deus cristão." (Leonardo Boff, "Jesus Cristo Libertador").
Deus Se nos manifesta, sim, e nós O conhecemos pela mediação de Jesus de Nazaré. Em Jesus, Deus Se manifestou a nós como Aquele que Se interessou de tal modo por nós, que quis participar intimamente do nosso destino, e assim tornar-Se o Deus próximo e familiar, o "Deus conosco", o "Emanuel" que conhecemos pelos Evangelhos.
Como cantou o padre Zezinho, evangelizando através da música: "Em Jesus, Deus Se tornou refeição e Se fez o caminho."
Lembremo-nos, também, do que está escrito no Apocalipse:
- "Eis que estou à porta, e bato", significando que Deus está na soleira e bate à porta, mas, se não a abrirmos livremente, Ele não entrará. Por absoluto respeito à nossa liberdade, recusa-Se a forçar a entrada do nosso coração e da nossa vontade livre. Permanece, entretanto, presente sempre, perdoando e salvando, não Se vai embora, e continua a bater.
Por isso, é muito salutar que tomemos consciência desta verdade terrível: - É próprio da liberdade humana poder, com sua minúscula recusa, perdida nas imensidades do tempo e do espaço, deter o oceano da Graça divina." (Charles Moeller, "A Fé em Jesus Cristo").
Jesus de Nazaré, pela Sua vida e pela Sua prática, como o "Abbá"- Seu Pai - é bom e misericordioso. Não quis ofuscar-nos com a luz de Sua glória e poder; por isso penetrou sorrateiramente entre homens e mulheres, fez-Se um entre muitos, e é preciso descobrir a Sua presença escondida, encarnada sob as vestes do quotidiano. Ele está aí e nos chama; nós, porém, nem sempre ouvimos Sua voz, nem sempre queremos abrir nosso coração à Sua Palavra que Se fez carne, que Se fez Eucaristia.
Assim, este perturbador "silêncio de Deus" é um silêncio causado por nós próprios, que sufocamos os apelos divinos com os nossos barulhos inúteis. Não há "silêncio de Deus", e sim incapacidade humana para captar imediata e claramente Sua voz. Voz que insiste, apesar de tudo, e que é experimentada, quando A percebemos como dom pessoal e gratuito, porque Deus não Se mostra de modo arbitrário, mesquinho ou favoritista. Revela-Se a todos e desde sempre na generosidade irrestrita do Seu amor por todos nós.
E é o que acabamos de celebrar na quaresma, e estamos ainda a celebrar neste tempo pós-pascal, em nossas igrejas e no recesso de nossos lares.
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