sexta-feira, 13 de maio de 2016

GRATUITA VADIAGEM



           Escrevi no meu último blog que a vida é longa de mais. Se a vida é longa de mais, por que não "matar o tempo" enquanto ainda estou vivo?   "Carpe diem", (aproveita bem o dia), aconselhava o poeta latino Horácio, terror das aulas de latim do Professor Caselato, nos meus tempos de ginásio.
           Creio que devo a este saudoso professor o amor que tenho ao latim até hoje, e é uma edição latina da Bíblia Sagrada o meu livro de cabeceira, que leio e medito antes de dormir. Para quem nunca teve contato com ele, digo que o latim bíblico é de fácil leitura para quem teve mesmo que apenas um vislumbre da primorosa língua considerada morta (não para mim, está muito claro).
           Feita esta observação, retomo o que disse na primeira linha  -  a vida é longa de mais  - Não só é longa demais e, pior que isso, assenta mal na minha vida de hoje, oitentão aposentado que sou, com o traseiro já um tanto amarfalhado por passar grande parte do dia sentado, "matando" o tempo, enquanto "mato"  problemas de palavras cruzadas.
           Como fazer? Como "matar" o tempo? A vida é longa de mais, vivo eu a repetir. Mas ninguém parece ouvir; e cá estou eu, tropeçando nos próprios pés, enrodilhado em blusas e cachecóis tentando defender-me do friozinho danado de Curitiba, tomando dezenas de xicrinhas de café bem quente durante o dia para me aquecer...
            Nos dias em que o sol casmurro me dá o ar de sua graça, dou-me também a andar pelas ruas do bairro á procura de algum acontecimento extraordinário. Ao menos andaria em vez de ficar sentado, cansaria o corpo em vez de ficar matando charadas.  Saio de casa. Gosto de espiar as pessoas que passam.
             De repente um transeunte me interessa prodigiosamente: vou atrás dele, com precauções de namorado e de polícia. Espio-lhe os gestos, surpreendo-lhe o  vigor de suas passadas. Aquela moça que passou, por exemplo, saia plissada palmo e meio acima dos joelhos, ocupou bastante tempo no meu pensamento. Principalmente por causa de  um pormenor que hoje em dia só tenho visto nas novelas da Globo, quando retrata tempos passados: seu chapeuzinho difícil e vermelho, com uma fita a balançar num dos lados.
             E eu me ponho a ruminar: cada um de nós é um archote ardendo com a resina de seu sangue. É uma chama, um corpo em combustão, e lá por causa da sua natureza íntima, como acontece nas raras noites curitibanas estreladas: a chama no céu é vermelha; cada estrela parece-me uma vela acesa, e a rua por onde passo, com suas luminárias,  parece-me uma interminável procissão de velas bruxuleantes. Ora, porque velas? Onde vira eu uma vela pela última vez?... Parece-me que foi na última visita que fizemos ao cemitério "Memorial da Saudade",  em São José dos Pinhais onde estão sepultados meu filho Júlio e   minha inesquecível filha Raquel, para quem a Isabela , sua filha, e minha neta, lhe acendia uma vela, com seus olhos marejados de saudade.
              Descansem em paz, meus queridos mortos, que em tempo não muito distante, eu estarei aí em companhia de vocês dois, se Deus assim o quiser!
             Como a rua só me respondesse com o fluxo incessante de gente apressada, eu voltei para casa revolvendo, não sei por que cargas d´água, pensamentos sombrios e meio tenebrosos.
             Por que então não me seria melhor expor ao vento dos séculos meu cansado peito nu, rasgar as roupas, rasgar a carne, descobrir o próprio coração?
             Antes ser chama viva. De que me serve agasalhar carvões ardentes, de consumo lento e cotidiano? Seria muito melhor, nesta minha vida longa, octogenária, ser chama viva, que se veja de longe, e que crepite tão alto com a festa e a glória dos incêndios incontroláveis!

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Aroldo Teixeira de Almeida é bacharel em Filosofia e Teologia Sistemática, e professor aposentado de Português e Francês, do Quadro Próprio do Magistério Paranaense.
             




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