A "coisa" se deu quando ainda residíamos em Barbosa Ferraz, interior do Paraná, e não me lembro da data. Era noite, e tínhamos visita de parentes que residiam em Maringá, e ali estavam em nossa casa, como sempre costumavam fazer.
Depois de uma conversa franca, entre pessoas de boa educação, como eu julgava que éramos, alguém do grupo descobrira numa revista um brinquedo, uma espécie de exercício de memória.
Éramos sete ou oito pessoas, constituindo esse fenômeno que nos romances otimistas se chama de "serão familiar". Cada um se esforçava por provar sua inteligência e sua boa memória, e havia risadas divertidas quando alguém dizia disparates. Fiz também uma charada inofensiva, e gostei da aprovação do pessoal.
De repente o relógio de parede meteu onze badaladas na reunião familiar.
- Credo! Já são onze horas. Parecia mais cedo...
- Foi bom. Só assim passamos duas horas agradáveis.
Alguém, não lembro quem foi, disse aquela frase. Tínhamos conseguido passar duas horas, isto é, tínhamos engolido, sob o engodo da charada, duas enormes pílulas cósmicas. Não sei como se despediram, e só me recordo de estar fechado em meu quarto, sentado diante de minha desarrumadíssima mesa de trabalho, assim meio arrasado, sem motivo aparente, como quem tivesse feito uma caminhada fatigante por estradas de pedra e lama, e visse chegar a tarde chuvosa diante de uma confusão de caminhos que não iam ter a nenhum lugar.
Meu costumeiro pessimismo, como sempre, estava à flor da pele. Minha vontade nervosa de andar nem tinha o melhor caminho que escolher, tanto fazia um como outro, ambos com chuva e ambos estúpidos. Acho que eu seria capaz de andar neste ou naquele, pela noite a dentro, encharcado, cansado, sem a menor esperança de uma porta que se abrisse para me acolher.
Então me veio à cabeça uma lembrança de minha infância quando, ainda pequenino, muito pequenino, na modesta cidade de Caldas onde nasci e vivi meus primeiros anos de vida. Pois foi nesse tempo que, no colo de minha mãe, ouvi a história terrível de João e Maria lida num livreto de estórias infantis.
No momento em que os dois irmãos se perdiam na floresta escura e misteriosa, eu sentia um arrepio que iria durar por muitos e muitos anos. E por mais feroz que fosse a velha feiticeira que ia prender os meninos na gaiola, por mais que soubesse que iam correr o risco da fogueira, era com grande alívio que ouvia minha mãe contar então que as crianças tinham visto ao longe o brilho de uma luz... Aí tudo teria uma solução, a gaiola, a fogueira, a velha malvada. Mas, estar sozinho e perdido no escuro da floresta, era terrível de mais.
E me veio à cabeça, de novo, o que todos fazem, andando nas ruas, conversando nos bares entre um caneco ou outro de chope... era só isso: engolir horas. Matar o tempo. Viver como se a pequenina cidade de Caldas tivesse sido a antecâmara duma burocracia colossalmente inútil numa espera sem sentido, numa espera paciente, desmemorizada, suavemente temperada duma espera que se diverte com gritinhos de alegria enfermiça, como pequenos protestos de horror ao vazio da alma...
A vida é longa de mais, disse para mim mesmo. É longa de mais, assenta muito mal em mim. Parece um camisolão talhado para enorme manequim e que me foi atirado nas costas por um destino impiedoso, muito cruel...
E hoje, exilado das terras de minha infância, o que fazer? Como matar o tempo que se escoa sem parar? Chegados os oitenta anos de idade, após uma existência trabalhosa e sem muita perspectiva de tempos melhores, a conclusão só pode ser esta: a vida é mesmo longa de mais. Ou o tempo será meramente uma frase e a repetição dos dias, dos meses e dos anos, um sinal da Divina Paciência que espera de mim uma resposta, e não cansa de me chamar?
Mas eu mal ouço esse chamado. E cá estou eu em Curitiba, tropeçando nos meus anos idos e vividos, passando muito mais que meio século, entretido em colher mais fracassos que vitórias, andando sozinho pelas ruas do meu bairro, espiando os outros que passam. Ali, aquele quase ignorado vizinho: espio-lhe os gestos, e o vejo entrar numa lanchonete, talvez para tomar um refresco de coco. Tenho a impressão de que se eu o abordasse subitamente, travando-lhe o braço, poderia surgir entre nós dois um entendimento inesperado.
Entretanto, sei que eu não conseguiria fazer esse gesto profundamente humano; desanimava, pensando que esse gesto seria esquisito e mal recebido, e o jeito seria prosseguir minha jornada tarde a dentro, sob o sol causticante que me parecia uma fornalha dissolvente...
"C´est la vie", diria Rilke, o poeta francês de minha predileção. Nada mais que a vida... Essa vida à qual procuro inutilmente dar-lhe um sentido, mas que está sempre fugindo-me às mãos!...
"C´est la vie", diria Rilke, o poeta francês de minha predileção. Nada mais que a vida... Essa vida à qual procuro inutilmente dar-lhe um sentido, mas que está sempre fugindo-me às mãos!...
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Aroldo Teixeira de Almeida é bacharel em Filosofia Sistemática e Professor Aposentado de Português e Francês, do Quadro Próprio do Magistério Paranaense.
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