Minha filha Raquel, que te partiste
tão cedo, desta vida, descontente:
repousa lá no Céu eternamente,
e fique eu cá na Terra, sempre triste.
Se lá no assento etéreo aonde subiste
lembrança desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que em meus olhos de pai tu sempre vista.
E se vires que pode merecer-te
alguma a coisa a dor, que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão logo daqui me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou!
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Faz cinco anos que minha filha Raquel partiu, desta vida, para a Casa do Pai de todos os pais. Morte cheia de angústia e sofrimento, causados pelo câncer que lhe invadiu os seios, com metástase para a coluna vertebral e para o cérebro.
Tenho meditado constantemente nesse doloroso mistério que é a morte, principalmente a daqueles que amamos e que viveram, conosco, uma vida de Fé.
É verdade que a morte cristã, como a de minha filha, se acompanha frequentemente de angústia, mas esta angústia nada tem a ver com o medo vil que sente quase sempre o arreligioso, o agnóstico, ou o ateu, diante do imponderável que os aguarda.
A angústia do cristão moribundo é apenas a angústia mística, o pressentimento, o temor ante a magnitude do mistério de Deus. É o frêmito de todo o seu ser à beira dessa mudança radical que dissolve e recompõe o corpo de pecado para transfigurá-lo em corpo de glória na ressurreição, e esta ressurreição eu a creio sinceramente realizada NA morte, como me ensinou, tantas vezes, meu mestre Frei Leonardo Boff, nas aulas de Teologia.
A morte do cristão é abandono humano, solidão, deserto de Deus; porém, no seio deste deserto, Deus fala, além da noite dos sentidos e do espírito. Por muito profunda que possa ser a angústia da morte para o cristão, ela é acompanhada por uma alegria que excede o sentimento.
As mortes cristãs, além da angústia, são também doces, mas de uma doçura diferente da serenidade estóica dos arreligiosos, dos agnósticos e dos ateus. Essas angústias são aceitas, às vezes desejadas, como no caso dos santos, que pediam a Deus para sofrerem cada vez mais, a fim de salvar os outros, porque aqui se encontra o mistério da Páscoa: embora a morte cristã, como a morte de Jesus de Nazaré pareçam, humanamente falando, trevas e angústia, é também alegria. E se essa alegria é aparentemente idêntica à agonia de suor e sangue, não é porque seja ilusão, mas porque é sobre-humana, ultrapassando todo o entendimento.
É uma alegria sobrenatural, divina, um dom de Deus. O cristão e a cristã, por sua Fé, têm certeza da vitória de Cristo sobre a morte; as angústias que eles experimentam são as angústias de Jesus na cruz; elas resplandecem de alegria em meio aos sofrimentos e às trevas, ou ao pretenso abandono de Deus: -"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? " - gritou Jesus de Nazaré na cruz.
No livro de Georges Bernanos, "Diário de um pároco de aldeia", seu personagem principal, o vigário da aldeia, está consciente desta verdade. Ele pronuncia, ao morrer, uma das mais belas frases que encontrei na literatura do século passado: -"Tudo é Graça!"
A razão teológica deste fato é que, na angústia da morte cristã, há a experiência do deserto, o deserto bíblico que todo homem e toda mulher devem atravessar para se unirem a Jesus no Calvário. No Calvário, porém, está a ressurreição, cujos primeiros vislumbres a alma cristã recebe já nos umbrais da morte.
Aliás, certo ou errado, eu sempre mantive a crença de que a ressurreição não é um futurível problemático, em um também problemático fim dos tempos. O fim dos tempos, no meu entender, ocorre justamente na morte, e é aí, na morte, que Deus nos concede a Graça da ressurreição: ressurreição NA morte, nem antes nem depois.
Minha filha Raquel, na sua agonia, sofreu muito, dores terríveis provocadas pelo câncer em seu cérebro. Entretanto, ela não se queixava, absolutamente. Apenas murmurava na sua longa e dolorosa agonia: "Meu Deus, seja feita a Vossa vontade!"
Tendo plena consciência do fim de sua vida nesta terra, ela pegou minhas mãos, apertou-as tanto, que até doeu. E me pediu, entre lágrimas, que lhe prometesse fazer feliz sua filha Isabela, então com doze anos. E eu, entre lágrimas também, lhe prometi, e é o que tenho tentado fazer até hoje, apesar dos protestos de parentes, que dizem que estou sendo exagerado, e até prejudicando a menina. Isto não me impressiona. Tenho consciência de que estou cumprindo uma promessa sagrada, e tentarei cumpri-la enquanto viver.
É pela sua morte sofrida e cheia de angústias, pelos indizíveis sofrimentos por que passou, que tenho a íntima certeza de que a Raquel ressuscitou na morte, e agora está em paz na Casa do Pai de todos os pais, velando por sua filha, velando por seus pais e irmãos.
Descanse na paz do Senhor, minha inesquecível filha Raquel!
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17 de março de 2015.
Se minha filha Raquel fosse ainda viva, estaria nessa data completando 48 anos de idade. Não pudemos festejar seu aniversário natalício, apenas chorar, desconsolados, a sua ausência física entre nós. A morte inexorável a levou para a Casa do Pai de todos os pais e mães que ainda peregrinam pelos caminhos deste mundo.
Ela separou-se fisicamente de nós, mas passou a viver mais intensamente do que nunca, com sua filha Isabela, com seus irmãos Carlos e Júnior, e com seus chorosos pais, após o seu falecimento em 21 de agosto de 2010, em hospital de São José dos Pinhais, vitimada por insidioso câncer.
Numa união misteriosa e singular no Espírito Santo, comunicada às coisas que deixou e aos acontecimentos do dia-a-dia em que viveu conosco por esse tão curto tempo, a verdade é que ela partiu para a Eternidade, mas continua a viver conosco pela dor sem remédio da saudade.
Sua morte fez que a revivamos nos objetos em que tocou, nas vestes que deixou e que conservamos com carinho, na lembrança das palavras que com ela trocávamos, nos fatos alegres ou tristes que se seguiram à sua partida, e que nós lhe comunicamos diariamente na prece, e com ela conversamos como se estivesse ainda viva em nosso hoje solitário lar.
A morte, destino de todos os agora ainda viventes, a levou, mas a devolveu de novo a nós, banhada pela luz da Eternidade com Deus e pela gloriosa certeza de sua ressurreição NA morte, que é a Fé que anima e conforta seus pais e irmãos, e que os mantém ainda vivos para cultuarem sua memória.
Continuando viva entre nós, por essa humilde, invisível e misteriosa presença de cada dia, de cada hora, de cada momento, com que impregnamos de esperança a nossa saudade, como também a radiosa alegria da certeza de que ela, na Casa do Pai de todos os pais, passou a velar por nós, agora na plenitude de sua vida com Deus e os santos, no Céu.
Nesta certeza, nós a temos sempre a nosso lado, em nossa vida de cada dia, velando por sua filha adolescente Isabela, por seus irmãos Carlos e Júnior, por seus chorosos pais.
Presença permanente nos trabalhos do dia-a-dia, no silêncio e na solidão das noites, enxugando-nos as lágrimas da saudade imorredoura.
Seu pai.
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15-10-2015:
Neste ano de 2015 estamos chorando o quinto ano de falecimento de minha filha Raquel. A tristeza infindável que nos martiriza pela ausência física da pessoa amada é, paradoxalmente, aliviada pela estranha alegria e pela certeza absoluta de que ela, pela sua vida profundamente vivida, pela Caridade ardente que animava todo o seu relacionamento com as pessoas que a rodeavam, descansa hoje na Bem-aventurança Eterna junto ao Pai de todos os pais.
Com seu organismo debilitado pelo câncer que lhe corroía coluna vertebral, pulmão e cérebro, ela esperava a morte, mas transfigurada pela resignação, pela acendrada confiança em Deus, e pelo amor de toda a sua pequena família, que também sofria com ela.
Permanece a dor da saudade no coração de sua filha Isabela, de seus pais, de seus irmãos, que dedicam à Raquel este singelo poema fruto da dor, abrandada porém pela certeza de que ela descansa em paz junto ao "Abbá" de Jesus de Nazaré, no Reino dos Céus:
Eu esperei a morte como se espera o Bem amado
ignorava como ela viria
nem quando viria
mas eu a esperava
e não havia medo nessa expectativa
havia somente ânsia e curiosidade
porque sei que a morte do cristão é bela
porque a morte do cristão é uma porta
que se abre para lugares desconhecidos
mas imaginados
como o Amor
que nos leva para um outro mundo
como o Amor
que nos promete uma outra vida
diferente da nossa
Eu esperei a morte como se espera o Bem Amado
porque eu sei que em breve ela viria
e me receberia
em seus braços amigos
Seus lábios frios tocarão a minha face
e sob a sua carícia
eu adormeceria o sono da Eternidade
como nos braços do Bem Amado
Sei que este sono
será um ressurgimento
porque a morte é a Ressurreição
a Libertação
a Comunhão Total
com o Amor Total e Infinito
do Pai de todas as vidas
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Uma senhora amiga, querendo confortar minha esposa pelo falecimento da Raquel, disse-lhe que o tempo cura todas as feridas, e com o tempo ela se acostumaria com a ausência da filha falecida.
A sós comigo mesmo, comecei a refletir sobre a opinião daquela senhora, e cheguei também à conclusão de que nos acostumamos com relativa facilidade.
Sei que a gente se acostuma a andar pela rua e ver rostos conhecidos ou mostruários de lojas. A ver bancas de revistas e folhear jornais, buscando notícias ou anúncios de coisas que nos interessem.
A gente também se acostuma com o friozinho e a poluição de Curitiba, as janelas de casa sempre fechadas, os portões sempre trancados a cadeado, por receio de eventuais larápios. Com as janelas sempre fechadas, logo nos acostumamos a não abrir as cortinas. E porque não abrimos as cortinas, logo nos acostumamos a acender mais cedo a luz. À medida que se acostuma a isso, esquecemos o sol, esquecemos o ar puro, esquecemos a amplidão do olhar.
Acostumamo-nos a acordar de manhã cedo, a tomar café às pressas, porque temos de levar a neta Isabela ao colégio. A gente se acostuma a sorrir para as pessoas, sem receber um sorriso de volta. Até já me acostumei a cumprimentar o gari que varre minha rua, quase sempre sem receber uma resposta, imerso que está ele em seu trabalho diuturno.
Muita gente se acostuma a não ouvir o canto do sabiá nas árvores ao redor de sua casa, a não ouvir os pombos arrulhando no telhado, a ter medo da hidrofobia no cão doméstico, ou até a não possuir uma planta ou uma flor dentro de casa.
A gente se acostuma quase sempre para preservar a pele, para evitar feridas e sangramentos emocionais, para poupar os dissabores do dia-a-dia. Aos poucos, de tanto acostumar, nos acostumamos conosco mesmos, a ponto de não mais sabermos desfrutar das alegrias da vida.
A gente se acostuma com muitas coisas para não sofrer. Em doses pequenas, fingindo não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Mas será também verdade que o tempo nos fará acostumarmo-nos com a ausência definitiva de uma pessoa querida, como sempre foi e como sempre será minha querida e falecida Raquel?!
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