segunda-feira, 30 de abril de 2012

ESPERANÇA DOS HOMENS


       "Nosso tempo é um tempo de esperança", proclamava tempos atrás a declaração final do Congresso pela Paz e a Civilização Cristã, reunido em Florença, Itália. Para o compreender, é preciso decifrar o sentido dos acontecimentos. Nós, que nos identificamos como cristãos, necessitamos convencer-nos da ambiguidade de todas as situações históricas concretas nas quais devemos encarnar a nossa esperança teologal.
      Muitos filósofos e teólogos, mergulhados nas suas reflexões e pesquisas, ocupam-se dos fins transcendentes de homem e de mulher numa outra vida, a eterna, de tal maneira que praticamente não concedem nenhuma atenção às preocupações materiais que nos oprimem. Parecem esquecer das esperanças terrenas que possuímos neste nosso mundo.
      Procuram-se incessantemente as verdades eternas, mas passa-se ao lado daquelas que se refletem no movimento concreto e quotidiano da História. Eis porque me parece residir aqui a grande distância entre o pensador e filósofo católico e o homem e mulher comuns, no dia a dia. Passam-se as coisas como se o pensador cristão receasse intrometer-se nas coisas terrenas que afetam a vida da comunidade concreta.
      Parecem esquecer que também para nós, seres comuns, existe uma esperança neste mundo...Em todo caso, ainda encontramos pensadores cristãos que se preocupam com os prosaicos problemas que atormentam a vida de homens e mulheres na sua vida diária.
      Um desses pensadores, católico, Charles Tresmontant, em seu livro "Ensaio sobre o Pensamento Hebraico", traz palavras candentes sobre o tema. Diz ele:
      - "O sofrimento e a derrota são a intervenção de Deus, para que homem e mulher não se instalem numa condição de passividade e alheamento diante dos problemas do mundo. Cada vez que a cristandade deixa perder ou negligencia uma partícula da missão de que é depositária e que tem o encargo de fazer frutificar, um adversário se levanta e a ataca em nome dessa partícula da missão que ela, a cristandade, deveria cuidar. Se a cristandade nada mais anuncia aos pobres, outros anunciarão aos pobres a justiça; mas em troca investirão contra a cristandade para a despedaçar, como outrora o assírio e o egípcio atacavam Israel e o devastavam quando ele se mostrava infiel aos desígnios de seu Deus."
      Creio que, mais do que outra coisa, nós que nos dizemos cristãos devemos tomar como nosso dever a preocupação com a esperança terrestre do homem e da mulher, porque a esperança humana não é separada, e sim distinta da esperança teologal numa vida eterna, como nos ensina a religião.
      Para quantos milhões de seres humanos nosso Cristianismo nada mais é que uma religião exclusivamente ocupada com a salvação da alma, esquecendo que somos também corpo? Ou quando nossa prática cristã não passa de uma obsessão pelo pecado, um medo de tudo o que é terreno?
      É claro que todos nós, seguidores de Jesus de Nazaré, levamos nossa vida amparada pela esperança da terra prometida por Ele.
      Mas é preciso não esquecer que essa terra prometida tem seus inícios nesta terra nossa de todos os dias.  Deus confiou-nos uma tarefa que não se cumprirá sem nós. Confiou ao homem e à mulher, no coração do universo, o cumprimento de uma "jornada de trabalho" sobre a Terra, aquilo a que São Gregório chamava de "jornada cósmica", e esta obra não se cumprirá sem nós. 
      Sempre gosto de refletir nesta frase carregada de esperança: somos co-criadores com Deus.



quinta-feira, 26 de abril de 2012

JULIEN GREEN, TESTEMUNHA DO INVISÍVEL

      76 anos, aposentado, boa saúde e paz com o mundo, não tendo outra tarefa para fazer senão cuidar de minha neta Isabela, entrando  na adolescência, resta-me um tempo enorme que dedico à leitura, e isto eu o faço procurando os melhores autores da literatura brasileira e estrangeira. A cada dois meses leio um autor diferente, estudando-lhe a vida e a produção literária. Neste ano de 2012, dediquei janeiro e fevereiro para a leitura de Georges Bernanos, romancista francês, e publiquei neste blog  um texto sobre ele, chamando-o de "profeta da alegria". Março e abril ficou por conta de Julien Green, escritor americano que escreveu seus principais livros em francês, e faleceu em Paris, em 98.
      Nestes dois meses estou lendo, com alegria e emoção, o seu esplêndido Journal, em que Green  narra seus dramas pessoais, desde a juventude, em que teve a veleidade de entrar para um mosteiro e tornar-se monge contemplativo, até a idade adulta, quando perdeu a Fé e mergulhou numa vida carnal desenfreada. Mas a graça de Deus foi mais forte e não o abandonou nunca. Finalmente, já enfastiado dessa vida vazia, voltou à crença antiga, conversão esta confessada em páginas brilhantes do Journal.
      A parte mais emocionante do Journal, para mim, é aquela em que ele fala dos rastros de Deus sempre encontrados em seu caminho, mesmo nos tempos de descrença. Na verdade, Deus nunca abandonou o filho pródigo. O Journal permite balizar o itinerário da graça no decorrer dos anos de apostasia.
      Aparentemente, nada acontece, e Green parece afastar-se cada vez mais de Deus. Deixa de ler a Bíblia, que em outros tempos foi a sua leitura diária. A religião quase não o preocupa; se antes costumava entregar-se à oração, agora a deixou de vez.
      O que me admira nele é que, após a sua volta à Fé e à prática religiosa,  Green nos deixou, no Journal, livro III, que estou lendo nesta semana, textos maravilhosos sobre a prece, que então se tornou o seu alimento, o seu pão de todo dia, como ele mesmo confessa. Para ele, a oração, este mundo da palavra divina, só pode ser alcançado pela sua prática constante. Fala repetidas vezes dessa realidade quase divina, que deveria ser a respiração de nossa alma:
      - "A verdadeira ordem está baseada na oração; o resto não passa de desordem, mais ou menos bem disfarçada." (J. III, 11).
      Só a prece nos consola das felicidades que não conseguimos manter vivas em nossa vida:
      - "Horas há em que me sinto prestes a soçobrar à simples lembrança de tudo que a vida me ofereceu outrora, e que logo me retirou. Esta fome que trazemos em nós, basta às vezes uma simples oração atentamente recitada, para lhe aplacar as ânsias, para apagar todo o desejo de nosso coração." (J. III, 1). 
      Para Green, a oração não é, portanto, petição de favores temporais. É antes de mais nada apaziguamento de desejos doentios, purificação do interior mais íntimo da alma. Mesmo quando tudo parece perdido, e principalmente então, ela nos revela ser Deus melhor que todas as felicidades humanas:
      - "Por sombria que se torne a vida, é necessário não interromper a cadeia da oração, pois é a oração que resolve tudo, mesmo quando a casa parece perdida." (J. III, 41).
      Ela resolve tudo, "porque não há paz senão na prece."(III, 55). Essa paz não é uma auto-sugestão, mas um abandono à vontade de Deus:
      - "A finalidade da prece é menos obter o que pedimos do que tornarmo-nos outros. Seria preciso ir mais longe e dizer que pedir alguma coisa a Deus nos transforma, pouco a pouco, em pessoas capazes de renunciar às vezes até ao que pedimos." (J. III, 80).
       Esta frase, no meu entender, devia ser conhecida por todos os que não obtiveram o que pediam. Tornar-se outro, ser capaz de renunciar ao que se pede, é penetrar na Fé verdadeira; é preciso recorrer a Deus por se tratar de Deus, e não porque nos interesse, ou por qualquer outro motivo, mesmo sublime. Este Deus, busca-O nossa alma quase sem o saber. A oração é, portanto, uma realidade sagrada:
      - "Folheando livros sobre a oração, pensei comigo mesmo que o melhor livro sobre a prece deve ser lido de joelhos, de mãos postas e olhos fechados." (J. III, 182).
      Outra frase admirável deste capítulo: o verdadeiro livro "sobre" a oração é o próprio Deus. A oração leva-nos ao conhecimento místico de Deus.
      É na paciência da Fé que a claridade mística se revela pouco a pouco; é também no amor, - segredo da religião mas também seu paradoxo,  porque se trata de amar um Ser invisível, - que se abre a porta do Reino divino.
      Amar até morrer de amor por alguém de quem nunca vimos o rosto nem ouvimos a voz, é todo o Cristianismo. Um homem fica de pé diante de uma janela a ver cair a chuva, e de repente manifesta-se nele uma alegria que não tem definição na linguagem humana. No mais profundo deste minuto singular, envolve-o uma tranquilidade misteriosa, que nenhuma preocupação temporal perturba: eis aí o refúgio, aliás o único, pois o Paraíso outra coisa não é, senão amar a Deus, e não há outro Inferno que o de não estar com Deus. (J. III, 61).
      É preciso procurar Deus onde Ele está, no silêncio:
      - "É no silêncio que Deus habita. Lá é a Sua morada, e não no vento, nem no tremor de terra, nem decerto no ruído de palavras que fazemos continuamente, mas no íntimo de nós mesmos, lá onde já não alcançam as vozes do mundo." (J. III, 280). 
      Finalizando a leitura deste capítulo terceiro, um dos mais preciosos do Journal, a evocação do profeta Elias no monte Horeb, quando Deus lhe fala "num doce frêmito" e o profeta tapa o rosto para O ouvir, é um resumo de toda a autêntica e admirável doutrina de Julien Green sobre a vida religiosa, que culmina na  mística, apanágio de todos os santos.
      É por isso que considero Julien Green  "testemunha do invisível".

sábado, 21 de abril de 2012

crime na catedral

     

      a linda chamazinha nua e delicada
      tão prosaicamente nua num copo vermelho de azeite
      quase minúsculo vagalume dentro da noite
      ilumina debilmente
      as paredes coloridas
      da imensa catedral talhada em pedra

      ao redor
      trevas amedrontadoras
      mas
      a chamazinha nua e delicada não tem medo
      seu corpo branco e palpitante
      desenha na parede
      uma luminosa promessa de luz

      uma noite
      - sempre a noite -
      esse moleque travesso e indiscreto
      o vento
      de mansinho pé ante pé
      entrou
      pelo buraco da fechadura
      surpreendeu a chamazinha toda despida

      e ela
      tremendo de vergonha
      pudor ofendido
      corou corou intensamente
      e se afogou
      na vermelha piscina de azeite

      e foi assim
      noite após noite
      nunca mais esse moleque perverso
      o vento
      quis deixá-la em paz

      sempre que a pequenina chama
      nua e delicada
      ensaia o seu bailado
      desenhando na parede fria da catedral
      sua luminosa promessa de luz

      lá das sombras traiçoeiras
      vem o indiscreto garoto

      - "oh, que vento mal-educado!" -

      surpreendê-la

      e então
      trevas medonhas e assustadoras
      crescem na imensa catedral talhada em pedra

quarta-feira, 18 de abril de 2012

CRIAÇÃO OU EVOLUÇÃO?

      Nas primeiras páginas da Bíblia aprendemos que no princípio Deus criou o céu e a terra, as plantas e os animais do nada, e por último criou o homem, Adão, do barro da terra, e criou a mulher Eva, de uma costela de Adão. Este texto, redigido há mais de dois mil anos atrás, é o texto sagrado comum para judeus e cristãos. E mais: se somarmos a idade das gerações patriarcais, chegaremos a uma idade máxima de seis a nove mil anos para a humanidade.
     No século XVI surgiram as ciências experimentais, cujo desenvolvimento provocou verdadeira crise, quando no século XIX Darwin e sua escola afirmaram que toda a realidade é o resultado de um processo de evolução. Entretanto a ciência, particularmente a geologia e a paleontologia, amontoa cada dia novas descobertas de esqueletos, ossos e fósseis para documentar a evolução em todas as esferas dos seres vivos. Inclusive, a ciência hoje em dia já consegue datar, com relativa precisão, a idade de homem e de mulher entre quinhentos mil a dois milhões de anos.
      Em consequência, o cristão, cioso da leitura bíblica, entra fatalmente num dilema: quem tem razão, Moisés ou Darwin? Homem e mulher descendem do macaco, ou foram formados do barro da terra?
      É verdade, também, que o "slogan" de que homem e mulher descendem do macaco, afirmação esta que originariamente visava degradar o homem e a mulher, já foi superado pela própria ciência. Se é verdade que hoje, a maioria dos cientistas, cristãos ou não-cristãos, admite a hipótese do evolucionismo, é igualmente verdade que ninguém ainda ousa simplificá-lo de tal maneira tão radical. Não obstante, compreendemos a grande reserva de muitos cristãos, no concernente ao problema do evolucionismo. Com efeito, o problema da origem do homem e da mulher é um problema existencial para cada um de nós, porque está intimamente ligado ao problema do nosso destino.
      A atitude de reserva ou de receio de muitos cristãos, frente à teoria do evolucionismo, certamente é mais devida ao fato de Karl Marx e Engels, ateus, não só se terem feito advogados do proletariado, mas também da ciência. Ambos tomaram, de imediato, a teoria evolucionista de Darwin, como base da dialética histórica. E é claro que isto aumentou os preconceitos dos cristãos conservadores, agravando, inclusive, a polêmica entre teólogos e cientistas.
      A teoria evolucionista, que serviu de base ao marxismo, comunista, ainda é bastante primitiva do ponto de vista científico, por ser uma teoria basicamente mecanicista. E é esta a teoria do evolucionismo, que os jovens educados no socialismo ainda hoje aprendem. Nos museus, nos capítulos introdutórios de muitos livros escolares, e nos quadro-negros dos países socialistas, a teoria da evolução pode ser vista em cores vivas. O primeiro da lista é o gorila barbudo. depois seguem em ordem crescente o homem de Neandertal, o "homo sapiens" como caçador e agricultor. Finalmente aparece o homem social, o homem branco de cabelos louros. Na verdade, esta é uma maneira muito primitiva de representar a evolução.
      Concedemso, hoje, que as idéias do evolucionismo, em si, não são mais monopólio da ideologia marxista ou comunista. Na verdade, entre os próprios cristãos sempre houve ferrenhos defensores do evolucionismo. Lembro aqui a figura discutida do jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin, que encontrou entusiasmados seguidores no mundo intelectual europeu. E se de fato a evolução for uma verdade incoteste, segundo a ciência, como então podemos interpretar os textos bíblicos?
      É difícil encontrar outras páginas da literatura universal que tenham exercido tamanha influência sobre o espírito humano, como os capítulos iniciais da Bíblia, principamente entre os assim ditos fundamentalistas. Não obstante, poucos capítulos também são mais discutidos do que estes. O que o autor bíblico quis dizer a respeito do problema que hoje nos atinge?
      Os teólogos modernos são unânimes em dizer que a Bíblia não é um manual de ciências naturais ou de história. A Bíblia é o livro de nossa história salvífica, sendo obra comum de Deus, pela inspiração, e do homem e da mulher, pela revelação escrita. E os autores humanos usaram o gênero literário próprio dos orientais antigos e de sua vivência, estática e geocêntrica, para poderem ser compreendidos por seus contemporâneos. E como poderiam ter feito de outra maneira?
      A Bíblia apenas quer transmitir-nos a mensagem salvífica da redenção, isto é, não pretende ensinar-nos o modo, mas o por quê de Deus ter criado o homem e a mulher. Assim, o campo próprio da ciência está limitado entre o começo e o fim absoluto, isto é, entre a criação e o seu término. A própria teoria da evolução supõe logicamente a criação.
      Quando o escritor bíblico diz que homem e mulher foram criados do barro da terra, não pretende argumentar nem pró nem contra uma possível evolução. Apenas quer significar que o próprio Deus ligou homem e mulher intimamente ao universo material. E quando diz que foram criados à imagem e semelhança de Deus, que lhes inspirou a vida com um beijo amoroso na face, quer significar ao mesmo  tempo sua transcendência, sua união íntima com o próprio Deus.
      Concluindo: a ciência, sob este aspecto, até poderá ajudar-nos a compreender melhor a sublime mensagem revelada pela Bíblia.
     
           

sábado, 14 de abril de 2012

O CRUCIFIXO E OS TRIBUNAIS


       Dizem os estudiosos que a  Constituição consagra nosso país como um Estado laico. Sendo assim, e suposta pela Constituição também a liberdade de se professar qualquer crença, não obstante fica o Estado proibido de favorecer esta ou aquela confissão religiosa. Isto, como consequência do laicismo em que deve viver o Estado no seu todo.
      Diante deste raciocínio, como aceitar a presença de símbolos religiosos, principalmente o crucifixo, nos tribunais e demais órgãos públicos?
      Se o Estado é laico, ele não pode ter vínculos institucionais com nenhum sistema religioso ou confissão religiosa particular. Eis aí um assunto querido e trabalhado por intolerantes de todos os matizes e cores ideológicas.
      O último, de que tenho conhecimento, provocou a réplica, na Gazeta do Povo, assinada por Joel Pinheiro da Fonseca, sob o título de "O crucifixo no banco dos réus". Diz o autor, textualmente:
      - "Estão tirando os crucifixos dos tribunais. Tudo em nome do Estado laico. Não sou jurista, não sei dizer se o crucifixo viola nossa legislação. Proponho, então, analisar o conceito de Estado laico e comparar diferentes aplicações possíveis dele à luz da razão."
      A partir daí, e depois de várias análises do significado do termo "laicismo", com exemplos de outros países, citando particularmente os Estados Unidos e um pronunciamento a respeito, por parte do presidente Obama, o autor  conclui que "o Estado laico benevolente reconhece sua própria história e tradições, sem por isso torná-las normativas."
      No meu entender, tirando as consequências desta afirmação, creio que a fé ou a ausência dela é questão essencialmente particular e individual, e o Estado não pode alegar nenhuma competência para intervir nesse campo, a não ser aceitar e proteger a livre manifestação religiosa de homem e mulher na sociedade e no lar.
      Entretanto, apesar destes parâmetros, é necessário reconhecer que sendo o Brasil um país predominantemente cristão, com ênfase nas tradições católicas desde o seu descobrimento (Terra da Santa Cruz), também nossas tradições jurídicas passam pelo cristianismo e pela Igreja Católica, na convicção de que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos fundamentais, independentemente de raça, sexo, cor, ou classe social, convicção esta que tem origem indubitavelmente na fé cristã, consubstanciada nos Evangelhos e na vivência quotidiana.
      Voltamos então ao início destas considerações: como aceitar a presença de símbolos religiosos, principalmente o crucifixo, nos tribunais e demais órgãos públicos, tão combatida por todo um exército de intolerantes dos mais diversos matizes?
      Se é um ateu, por que se preocupar com um símbolo religioso, se ele, como ateu, não vê nenhuma consistência por trás desse símbolo? Lembro-me aqui do filósofo francês ateu Jean Paul Sartre, que dizia não precisar de Deus. Entretanto, o nome de Deus era presença constante nas suas peças teatrais. Lembro-me que nessa época, década de sessenta, escrevi um artigo no qual afirmava que Sartre deu cabo de Deus, mas não sabia o que fazer com o cadáver, que se tornara para ele uma terrível  obsessão.
      Há quem veja no crucifixo um fator ofensivo a cristãos não-católicos que, não admitindo a veneração de imagens, consideram a presença desse símbolo uma ofensa a seus princípios. E eu tomo a liberdade de dizer que tal sentimento revela mais sobre essa pessoa do que sobre a própria presença do crucifixo.
       É verdade inconteste que o Estado brasileiro não depende da fé cristã para que aceitemos seus critérios e normas de comportamento; ir além disso e exigir que se extinga dos lugares públicos todo símbolo religioso, é exigir que toda uma cultura, toda uma tradição milenar se apague, só para que não seja uma certa ofensa a um credo que não se  professa.
      Apesar de laico, o Estado não precisa ser inimigo da religião, e nem sequer precisa fingir que ela não existe. Dentro de nossa secular tradição religiosa e cristã, faz muito sentido que o crucifixo, símbolo da salvação eterna para a maioria de nosso povo, esteja presente nos órgãos públicos, notadamente nos tribunais, onde se pratica a justiça, norma candente nas Escrituras Sagradas.
      Que a presença do crucifixo tenha se tornado questão séria a ser debatida nos meios de comunicação, vem ilustrar muito mais o caráter intolerante e belicista do nosso propalado laicismo, do que a própria questão em si.
       
     

terça-feira, 10 de abril de 2012

O CRISTÃO E O SEU CORPO

      Não raras vezes, ainda hoje, ouvimos a pergunta: o Cristianismo é hostil ao corpo? Esta pergunta tem sua razão de ser, porque na história do pensamento ocidental nem sempre se teve consciência da dignidade orgânica "corpo-alma" do homem e da mulher. Duas concepções do ser humano caracterizam o pensamento ocidental: a materialista e a platônica. A última, de origem grega, manifesta um dualismo extremado na filosofia de Platão e menos na de Aristóteles, e tem influenciado certas formas da ascese cristã.
      No platonismo o corpo é a prisão da alma ou a sepultura do espírito. E quando a ascese cristã trocou homem e mulher bíblicos com a idéia do cárcere platônico, logo surgiram as mais desastrosas consequências. O próprio Platão já atribuíra um menor valor à dimensão corpórea humana. Com isso, na variante do néoplatonismo, o dualismo oriental também penetrou na ascese cristã. Nessa visão dualista o mundo é criação de um espírito mau, sendo, por isso, também radicalmente mau. Assim compreendemos o porquê no século III e IV o maniqueísmo desprezasse toda a matéria, apegando-se apenas ao puro espiritualismo.
      É claro que tais escolas espiritualísticas, abstraindo das necessidades reais da vida concreta, na teoria exigiam dos seus discípulos coisas impossíveis. Por isso, na vida prática, muitas vezes caíam num materialismo desenfreado. Justificavam as suas orgias porque sendo o corpo e a alma, o espírito e a matéria, princípios em si tão contraditórios, não se poderiam influenciar mutuamente. Situando corpo e alma em dois patamares diferentes, descobriu-se uma fórmula adequada para justificar a vida mais desenfreada, uma vida com teoria idealista, porém prática na materialista; aplaudiam uns as orgias mais bestiais, enquanto outros proibiam o uso do vinho, da carne, do matrimônio, e daí por diante.
      O apóstolo Paulo já lutara contra esses extremismos maniqueistas na comunidade de Corinto, em cujo porto marítimo não só havia o comércio de bens materiais entre o Oriente e o Ocidente, mas também a troca de idéias. Ao lado dos laxistas, que gozavam o sexo à maneira da comida e da bebida diárias, o apóstolo combateu igualmente os rigoristas cristãos, que desprezavam o matrimônio, por o julgarem uma prática pecaminosa.
      Conta-nos a História que também Tertuliano apostatou da fé cristã, porque não concordava com o "laxismo" do Papa Calixto, que readmitia pecadores convertidos, na comunidade eclesial. E o grande filósofo e teólogo Orígenes foi tão fiel discípulo de Platão que, reverenciando a hostilidade ao corpo, castrou-se a si mesmo.
      Talvez o caso de Orígenes exemplifique melhor a penetração maléfica do dualismo platônico na ascese cristã. Mas, ao mesmo tempo, mostra também a resposta decisiva da autoridade eclesiástica e a prontidão com que desde os primórdios a Igreja lutou contra tais idéias extremistas.
      O grande organizador do monaquismo ocidental, São Basílio, combateu conscientemente esses exageros advindos do menosprezo moral do corpo. Consciente das suas consequências nefastas, deixou-se guiar por uma visão mais harmoniosa do corpo humano. Enquanto seus contemporâneos Antônio e Pacômio apenas permitiam uma refeição diária, que consistia em vegetais e raizes, e exigiam abstinência total de carne e vinho, sono curto, vestes pobres e sujas de seus monges, São Bento concedia duas refeições diárias e, aos que exerciam trabalhos pesados, até mais. Além disso, tolerou o uso do vinho e da carne. Ademais, exigia que em viagens e aos domingos os monges vestissem roupa boa, que se banhassem regularmente, e que dormissem bem para melhor louvar a Deus no ofício santo.
      Verdadeiramente, o Cristianismo bem vivido nos ensina que a graça batismal santifica nosso corpo até as suas últimas fibras, tanto assim que podemos exclamar com o apóstolo Paulo: - "Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?"
      O cristão realiza-se tanto mais e melhor, quanto mais, a exemplo de Jesus de Nazaré, nos Evangelhos, conseguir harmonizar em si mesmo a dimensão física e a espiritual, individual e social de sua personalidade, de maneira integral e inseparável. 

quarta-feira, 4 de abril de 2012

TESTEMUNHAS DA RESSURREIÇÃO


      O centro de toda a fé cristã é o mistério pascal. Por isso, o ano litúrgico culmina com a celebração dos grandes mistérios redentores: paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. A mensagem que os Evangelhos, hoje, nos anunciam, é a seguinte: aquele mesmo Jesus de Nazaré, que fora crucificado na terra dos judeus, sob o pretor Pôncio Pilatos, vive! Sim, Ele ressuscitou dos mortos!
      Os apóstolos, os discípulos e as mulheres são testemunhas de sua ressurreição. Para testemunhar a fé na ressurreição do Senhor, não temeram a morte, o martírio. De maneira fidedigna proclamaram que o Senhor Jesus ressuscitou dos mortos. O apóstolo Paulo chega a dizer à comunidade de Corinto: - "Se Cristo não ressuscitou dos mortos, nossa pregação é vã e vã também é a nossa fé."
      A ressurreição de Cristo é pois o coração do cristianismo. Não é o produto da fantasia dos apóstolos, mas mistério de fé, um mistério com o qual cada um de nós terá de confrontar-se pessoalmente. Um mistério que pede a decisão pessoal de cada um de nós. Não se trata apenas de um evento histórico do passado, que  se recorda à memória. É um mistério que sempre de novo se torna presente e atuante no meio de nós, pela fé e na celebração da eucaristia.
     Cada dia a fé coloca homem e mulher diante de novas decisões. Nossos pais decidiram-se pelo pecado. Jesus de Nazaré redimiu a humanidade com seu sangue na cruz, sem contudo dispensar-nos de nossa decisão pessoal. Deus ficou fiel ao seu povo infiel.
      Talvez tenhamos muitíssimas razões para não crer na ressurreição de Jesus. Toda a certeza humana repousa no testemunho dos apóstolos e discípulos, e no querigma da Igreja primitiva. Somente a fé me diz que Cristo ressuscitou e com Ele também hei de ressuscitar.
      Os apóstolos não adoraram um Deus morto. Se bem que o Novo Testamento diz expressamente que ninguém observou o ato da ressurreição, os evangelhos testemunham de forma inequívoca o encontro dos apóstolos com o Senhor ressuscitado. Ademais, a fé permitiu-lhes reconhecer que a morte de Jesus de Nazaré na cruz é a chave da história redentora.
      Quando, de madrugada, as mulheres peregrinaram ao sepulcro, evidentemente, esperavam encontrar ali o cadáver do Senhor. Assustadas, tiveram que verificar a sepultura vazia. E Cristo revelou-se a elas e aos apóstolos. Estes eram homens rudes, mas não ingênuos ou simpatizantes com crendices, pois entre eles estava o incrédulo Tomé: - "Não creio que o Senhor ressuscitou, antes de colocar minhas mãos em suas chagas!"
       Poderia ter-se esperado que o Senhor ressuscitado tivesse aparecido às grandes multidões, particularmente aos que O crucificaram, para certificá-los de seu glorioso triunfo.  Isto, porém, não aconteceu. Cristo revelou-se apenas a um punhado de testemunhas escolhidas. É certo que nós gostaríamos de ver na ressurreição o triunfo visível e palpável da glória e do poder do Filho do Homem, no mesmo esplendor com que Deus outrora se revelara a Moisés no monte Sinai, entre raios, relâmpagos e trovões. Talvez até imaginemos o sucesso que tal acontecimento teria tido junto aos algozes cruéis.
      Mas, quem são os verdadeiros algozes da morte do Senhor? Quem de nós já não foi um pequeno Judas? Cristo não veio para condenar homens e mulheres, mas para salvá-los, para implantar o Reino de Deus entre nós.
      Cristo veio para semear a semente do Reino de Deus entre os homens e as mulheres. Por isso, depois da ressurreição diz aos seus: - "Ide e convertei a todos os povos, fazendo-os meus discípulos". Se depois da ressurreição tivesse cruzado a Palestina com uma comitiva de triunfadores, certamente teria causado grande sensacionalismo, e as multidões teriam corrido atrás  dele com gritos de júbilo e de entusiasmo, mas entusiasmo passageiro. A massa humana é inconstante como as águas do rio. Um dia gritam "hosana" e no outro "crucifica-o". E Cristo não veio para provocar sensacionalismo passageiro. Ele quis despertar testemunhas da ressurreição, ministros da palavra redentora do Pai na pessoa do Verbo. Ele quis congregar uma comunidade de seguidores, prometendo-lhes a vinda do Espírito Santo. E como poderia fazê-lo com uma multidão amorfa e inconstante?
      Enquanto as obras das grandes multidões se desfazem como bolhas de sabão ao sopro do vento, a fé de Abraão, de Isaac e de Jacó fala até nossos dias. O sangue dos mártires foi semente de novos cristãos. Foram eles homens e mulheres fortes na fé, que compreenderam o apelo do Senhor: É preciso que o grão de trigo morra para poder viver mais.
      Nenhum dentre nós pôde ser testemunha ocular da ressurreição, mas todos nós teremos que o ser na fé. A fé na ressurreição dinamiza a vida da Igreja, nos enche de esperanças, de esperanças eternas.
      E é justamente isto que expressamos, quando mutuamente desejamos a uns e a outros uma feliz e santa Páscoa!
      

A PROCURA DE DEUS

            "Procurai Javé enquanto é possível encontrá-lo. Invocai-o enquanto Ele está perto."
            (Isaías, 55,6)
     
            Homem e mulher não darão sentido às suas buscas vida a fora senão quando procuram Deus. É visando este termo que eles conseguem ir até ao fim de si mesmos, e até para muito além. É atingindo-o que eles cumprem a sua vocação. É entrando por esse caminho que eles conhecerão a verdadeira e duradoura alegria. Quer queiram, quer não, a verdade é que homem e mulher andam à procura de Deus. E quando O encontram, Ele também vai ao seu encontro, dirige-se a eles, solicita deles aquilo que eles não talvez não possam, não devam, nem queiram dar-lhe. Mas permenece o fato de que homem e mulher, conscientes ou inconscientemente, estão à procura de Deus.
           Mesmo quando o rejeitam, ou por não compreendê-lo, ou porque foi-lhe apresentado uma caricatura de Deus, ou porque chegam a negá-lo mediante teses bem construídas, até mesmo quando, como o fez Nietzsche, acabam proclamando a morte de Deus ou, como o ateu Sartre com a sua blasfêmia - "Eu suprimi e aniquilei Deus Pai"-, pois até a esse ponto, homem e mulher escondem no recesso de seus corações uma torturante nostalgia de Deus. Como diria Charles Moeller em sua monumental obra "Literatura do Século XX e Cristianismo",  - "Sartre vangloria-se de ter matado a Deus, mas não consegue desvencilhar-se de Seu cadáver."
            Ou como Michel Mourre, em páginas de comovedora sinceridade, conta que durante uma missa na catedral de Notre Dame, em Paris, fez esta oração: - "Odeio a Igreja, porque me julgo incapaz da sua esperança, incapaz de aceitar esse Deus crucificado que ela oferece a mim!"
            Tentando explicar esse fenômeno tanto da rejeição, quanto da procura de Deus, Pascal distingue três categorias de homens e de mulheres em relação a Deus: - "Não há senão três espécies de pessoas: umas que servem Deus, tendo-O já encontrado; outras que se empenham em buscá-Lo, não O tendo ainda encontrado; outras que vivem sem O procurar nem O ter achado. As primeiras são sensatas e felizes; as últimas são loucas e infelizes; as do meio são infelizes e insensatas."
            Abrangerá esta tríplice distinção todas as situações espirituais? Aqueles que tendo encontrado Deus e O servem, têm de O procurar ainda. Existirão seres humanos que vivam sem O buscar? Os ateus não são outra coisa senão idólatras. Além disso, Pascal não nos diz qual a natureza dessa busca de Deus.