segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A DIFICÍLIMA ARTE DE FALAR



          Certa vez, visitando uma família amiga em Barbosa Ferraz, interior do Estado, na entrada da casa encontrei, em moldura de muito bom gosto, esta mensagem:

                                               "Falem! - Alegres, rindo
                                                mas sem ferir a Caridade,
                                                nem a Humildade,
                                                nem a discrição.

          Confesso que me agradou o convite a ser espontâneo, natural, o convite a falar e a rir... mas sem esquecer também o convite a ser discreto...
          Quando me sinto à vontade, costumo falar pelos cotovelos, como se diz por aí...
          Quando tenho qualquer problema com alguém - o que graças a Deus é muito raro - ou quando me sinto meio amolado, que dificuldade para falar! Normalmente fico nos monossílabos:
           - "Sim", "Não" "Talvez"...
           As palavras ficam-me amarradas, querendo ser arrancadas a saca-rolha!
           Seria bom conselho o de não deixar que os outros paguem pelas minhas contrariedades e meus inúmeros problemas pessoais!
           Daí: falar sem ferir a Caridade!
           Você por acaso já reparou como rara é a conversa em que alguém não seja tesourado?!... E às vezes e muitas vezes, a tesoura desce sem dó nem piedade, rasgando fundo, rasgando forte! Não raro a reputação alheia é estraçalhada, com a maior leviandade, sem que haja nenhuma certeza do que está sendo dito...
            E mesmo que seja verdade plena, quem me autorizaria a despir as criaturas diante dos outros!...
            Costumo julgar, condenar, atacar, - por escrito ou falando - como se eu mesmo fosse um poço de virtudes, sem sombra de alguma falha!
            No entanto, aprecio quem é capaz de conversar animada e alegremente, sem alfinetadas, sem tesouradas e, claro, sem golpes de foice!
            Aliás, nem é menos difícil falar sem ferir a Humildade. A conversa vai se animando e não raramente, cada um e cada uma vai cantando suas vantagens, vai cantando os seus feitos heróicos...
            Ah! se me passasse pela cabeça a gozação a que sou levado quando vivo trombeteando meus próprios feitos e vantagens!
            Quando me rio dos outros e das outras que se espalham, se exibem como pavões que abrem a cauda e ficam rodando, seria ingenuidade pensar que ao me retirar do grupo em que me achava, não seria tesourado também, como fiz com outros...
             Aí fico parafusando comigo mesmo: seria mais fácil falar e não ferir a discrição, do que  falar  sem ferir a Caridade e a Humildade?... Qual nada... Não é fácil para mim guardar segredo de  verdade... Às vezes, até o que me é confiado com a garantia de não ser passado adiante, não tem mesmo jeito: o próprio sigilo profissional aqui e ali é sempre arranhado!...
             E os três avisos na porta daquela casa que visitei, por mais importantes que sejam, ainda são avisos para evitar falar contra a Discrição, contra a Humildade, contra a Caridade...
             Mas sei também que é perfeitamente possível usar o dom divino da palavra para unir e aproximar irmãos, para alegrar a todos sem a ninguém ferir, para sustentar a animação da palestra dando hora e vez aos mais humildes, aos mais tímidos...
             Lembro-me de um texto do Novo Testamento - Carta de São Tiago - texto este que vale a pena ler e reler, ler e meditar o que ele escreve sobre a nossa língua faladeira...
             Lá na minha terra, a longínqua Minas Gerais, o povo diz que há certas pessoas que vão precisar, quando falecerem, de dois caixões: um para o corpo e outro, maior ainda, para acomodar a língua!...
             Ô povo sabido, o da minha velha terra natal!... E eu digo que é feliz quem merecesse escutar do Senhor Jesus, no Juízo Final:
             - "Usaste tua língua de modo correto. Nem falaste a mais, nem a menos. Louvaste teu Criador e Pai. Fizeste de tua língua um eficiente instrumento de paz e de amor.!"

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Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense, e bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, SP.
           
        
                                               

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O CRISTÃO E O SEU CORPO



            Compulsando os dados históricos, verificamos que na antiguidade a concepção maniqueísta causou grandes lutas ao Catolicismo. Em certas épocas o maniqueísmo era o adversário mais forte e mais perigoso do Catolicismo na conquista do Ocidente. Nessa luta, o perigo foi tanto maior, quanto mais o maniqueísmo penetrara na hierarquia eclesiástica, sob formas camufladas, pois havia muita semelhança  aparente entre a abstinência dos cristãos e a dos maniqueus.
            O Apóstolo Paulo já lutara contra ambos os extremos maniqueus na comunidade de Corinto, em cujo porto marítimo não só havia o comércio de bens materiais entre o Oriente e o Ocidente, mas também a troca de idéias. Ao lado dos laxistas, que gozavam o sexo à maneira da comida e da bebida diárias, o Apóstolo combateu igualmente os rigoristas cristãos, que queriam desprezar o matrimônio, julgando-o pecaminoso em si.
            A História conta-nos que também Tertuliano apostatou, porque não concordava com o "laxismo" do Papa Calixto, que readmitia, na comunidade eclesial, tais pecadores quando convertidos.
            E o grande Orígenes foi tão fiel discípulo de Platão que, reverenciando a hostilidade ao corpo, castrou-se a si mesmo. Talvez o caso de Orígenes exemplifique melhor a penetração maléfica do dualismo platônico e maniqueísta na ascese cristã. Mas, ao mesmo tempo, também mostra a reação decidida da autoridade eclesiástica e a prontidão com que desde os primórdios a Igreja lutou contra tais idéias extremistas.
           As tendências maniquéias, contudo, conseguiram infiltrar-se no monaquismo oriental. Isto foi possível, porque as formas externas da ascese maniquéia mal se distinguiam da cristã. As formas externas do rigorismo manifestam-se particularmente na habitação, na alimentação, na veste, na renúncia total ao conforto, ao banho, no gênio inventivo para toda a espécie de extravagâncias penitenciais, de flagelações, etc.
           Tudo isso hoje nos parece nada mais que uma caricatura monstruosa da virtude cristã. Por outro lado, nos desertos da Síria florescia uma espiritualidade equilibrada, como nos mostram os exemplos de Santo Atanásio, São Basílio e muitos outros.
            O grande organizador do monaquismo ocidental, São Bento, combateu conscientemente esses exageros advindos do menosprezo moral do corpo. Consciente das suas consequências nefastas, deixou-se guiar por uma visão mais harmoniosa do humano.
            Enquanto Antônio e Pacômio apenas permitiam uma refeição diária, que consistia de vegetais e raízes, e exigiam abstinência total de carne e vinho, sono curto, veste pobre e suja de seus monges, São Bento concedia duas refeições diárias e, aos que exerciam trabalhos pesados,  até mais. Além disso, tolerou o consumo do vinho e da carne. Ademais, exigia que em viagens e aos domingos os monges vestissem roupa boa, que se banhassem, dormissem bem, para melhor louvar a Deus no santo ofício.
            Esta concepção harmoniosa da pessoa humana abriu os beneditinos à cultura, tornando-os pioneiros da cultura ocidental moderna. Somente ulteriores reformas da ordem vulneraram a harmonia original da visão de São Bento.
            A virtude cristã não consiste na idolatria do corpo, nem na sua hostilidade. Na linguagem totalizante da Bíblia, os conceitos de carne e espírito têm outra consonância, que na filosofia grega ou racionalista. Ora servem para acentuar um, ora outro aspecto de uma e mesma realidade.
            Assim, o Antigo Testamento não fala da queda do corpo humano e sim da queda do homem. E Cristo não veio para redimir almas, mas para redimir homens e mulheres, e com eles todo o cosmos material. No  juízo final não ressuscitarão almas, mas homens e mulheres.
           A Graça Batismal santifica nosso corpo nas suas últimas fibras, tanto que podemos exclamar com o Apóstolo Paulo:
            - "Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?"
            O cristão realiza-se tanto mais e melhor, quanto mais, a exemplo de Cristo nos Evangelhos, harmonizar em si a dimensão física e espiritual, individual e social, de sua personalidade.

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Aroldo Teixeira de Almeida, professor aposentado de Português e Francês, do Quadro Próprio do Magistério Paranaense, é bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da PUC da Capital paulista.
           


       

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

"...e por falar em Poesia"



        Visitando livrarias ali na XV de Novembro, acabei comprando uma antologia de poetas brasileiros, das várias "escolas" estudadas pela Literatura.
         E estes poetas brasileiros abriram-me todo um mundo novo. Antes de mais nada, acho que o Português é uma língua estupenda para a Poesia. É uma língua de admiração, de inocência, de alegria, cheia de calor humano e, portanto, de indiscutível humor, no bom sentido da palavra...
         O humor, que me parece inseparável do amor, se diverte e se ri da singularidade de cada ser individual, não porque este é um cômico ou desprezível, mas porque é singular, único. A singularidade, o ser inocente me surpreende sempre, e a surpresa, neste plano humano, é tanto humorística quanto  admirável.
        Lendo e relendo os poetas brasileiros, eu os julgo diferentes dos outros poetas latino-americanos. Sua índole mansa, seu amor franciscano pela vida, seu respeito por todos os seres vivos só esteve plenamente reproduzido, tanto que eu saiba, em Carrera Andrade, do Equador, e Ernesto Cardenal, que sofreu as agruras do exílio, na Nicarágua porque, líder intelectual dos "sandinistas" que lutavam contra a ditadura, foi perseguido implacavelmente por Somoza.
        Na realidade, não há, nos poetas brasileiros, nada de duro, de amargo, de artificial, nem atitudes doutorais e doutrinadoras, coisas que se encontram em tantos poetas hispano-americanos, por mais admiráveis que sejam.s
        Que diferença entre Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, cujo amor é pelos humanos, em contraposição a alguns dos poetas marxistas escrevendo em espanhol, e cujo amor é por uma causa.
         Com rapidez descobrimos, sob a superfície dessa dedicação às causas, a profunda corrente de ódio pelos homens a profunda corrente de ódio pelos homens, anunciada pela falaz exaltação em que cada série de interpretação termina com um abraço entre o seleto grupo de partidários: - "MAS NÓS, irmãos, ergueremos nossas cabeças e marcharemos para o futuro."
          No entanto, intuímos nessa marcha para o futuro a certeza de que este, nas suas mãos, será feito em pedaços com um grosseiro machado sem corte.
          Mas o inevitável é que tem de haver essa amargura. É inevitável. Tanto Alfonso Reyes como Neruda me comovem. Ambos são profundamente humanos. E Neruda permanece humano apesar da indescritível banalidade e pomposidade dos seus poemas posteriores - linha do Partido...
           Volto aos meus conterrâneos, brasileiros.
           Considero Jorge de Lima um poeta que me entusiasma profundamente, um místico de visão tanto cósmica quanto cristã.
           O mesmo humor paradisíaco que encontro nele. É como um "jogo" cheio de atrativos vê-lo contemplar o universo - basta ver o capítulo oitavo do livro dos "Provérbios".
       

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

UMA CURIOSIDADE BÍBLICA


                                                          O gato e a Bíblia

          Conversando com um vizinho, que é Ministro da Eucaristia em minha paróquia, nosso assunto eram pormenores interessantes da Bíblia Sagrada.
          Em certo ponto de nossa conversa, ele me disse:
          - "A título de curiosidade, nunca encontrei na Bíblia qualquer alusão ao gato, enquanto o cachorro é citado muitas e muitas vezes".
          Aproveitei esta "deixa" para mostrar-lhe que a Bíblia fala frequentemente do cachorro, é verdade, mas não se esquece do gato, animal para mim tão encantador. E respondi a ele:
           - "Engano seu. Abra sua Bíblia, em Baruch, 6, 20-21, e lá encontrará o seu gato..."
           Dei-lhe minha Bíblia para procurar o texto citado, e o vizinho o encontrou e o leu em voz alta:
           - "Suas faces estão negras da fumaça que se espalha na casa. Corujas, andorinhas e outros pássaros voam sobre seus corpos e suas cabeças, e gatos também passam sobre eles."
           (Lembrei a ele que este texto é uma alusão aos deuses da Babilônia... E, me parece, aí é a única vez em que o gato aparece na Bíblia).
           Será mesmo verdade? Espero confirmação...

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"...do meu "Diário" (15-09-2014):

            - "Deus, ó Deus, por que me abandonastes?" - palavras de Cristo, na cruz.
            - "Deus, ó Deus, onde estás, que não respondes?" - palavras minhas, lamentando o silêncio de Deus face às minhas queixas pelas mortes prematuras de meus filhos Raquel e Júlio.

            Para muitas pessoas pode não ser, mas para mim é uma triste constatação:-
            Tanto no caso de Jesus, testemunhado pelos Evangelhos, quanto no meu desafortunado caso, só consigo guardar este lamento: - "...e Deus não disse absolutamente nada!"
             Seria esta queixa uma blasfêmia contra a Providência de Deus?
             Se de fato for, eu me retrato e Lhe suplico humildemente o Seu perdão...

                                                             **************

    

terça-feira, 16 de setembro de 2014

"... e por que não pensar na morte?"


       Rumi, um poeta persa do século XIII que andei lendo dias atrás, escreve sobre a morte, mostrando que nossa atitude em face da morte é, na realidade, um reflexo de nossa atitude para conosco e para com a vida. Quem ama realmente a vida e a vive para aceitar a morte sem tristeza.
       O poema de Rumi trata da "Beleza da Morte". Transcrevo algumas linhas:

       - "Aquele que tem a morte por encantadora entrega sua alma para adquiri-la. Quem a considera como um lobo, desvia-se do caminha da salvação."

       - "Para cada um, a morte é da mesma qualidade que ele próprio, filho meu: para um inimigo de Deus, inimigo. Para o amigo de Deus, amigo..."

       - "Teu medo da morte é, em realidade, medo de ti próprio: vê o que é aquilo de que foges."

       - "O que estás vendo é a fealdade de teu próprio rosto, não a face da morte. Teu espírito é como a árvore, a morte como a folhas."

        Lendo estas frases de Rumi, o poeta, penso que essa "amizade" pela morte não é o mesmo que um desejo patológico da morte. O desejo patológico da morte é mera recusa da vida. É um abdicar as dificuldades e tristezas da vida, um ressentimento em relação às suas alegrias.
       O desejo patológico da morte nada mais é que incapacidade de viver.
       Eu, como cristão que sou, creio que a verdadeira aceitação da morte em liberdade e espírito de Fé, exige também uma aceitação fecunda da vida.
       Quem teme a morte e quem por ela anseia estão, ambos, na mesma condição: estão admitindo não terem vivido!

                                                            *********************

Lido o texto acima, nada melhor que lembrar este inolvidável soneto do príncipe dos poetas de língua portuguesa, Luís Vaz de Camões:

                                                           O dia em que nasci morra e pereça,
                                                           Não o queira jamais o tempo dar;
                                                           Não torne mais ao mundo e, se tornar,
                                                           Eclipse nesse passo o Sol padeça.

                                                                                 A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
                                                                                 Mostre o mundo sinais de se acabar;
                                                                                 Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
                                                                                 A mãe ao próprio filho não conheça.

                                                          As pessoas pasmadas, de ignorantes,
                                                          As lágrimas no rosto, a cor perdida,
                                                          Cuidem que o mundo já se destruiu.

                                                                                 Ó gente temerosa, não te espantes,
                                                                                 Que este dia deitou ao mundo a vida
                                                                                  Mais desgraçada que jamais se viu!


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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

GESTOS QUE DESPERTAM



            Há gestos que despertam, que levam a refletir, que marcam.
            Anos atrás, quando uma vez, saí de madrugada da casa de parentes em São Paulo, para tomar o ônibus de volta a Curitiba, guardo até hoje a imagem de minha avó, septuagenária, de braço erguido, segurando um candeeiro para iluminar o mais possível meus passos até a rua...
            Há gestos assim que valem como um programa de vida: erguer um candeeiro, afastar as trevas, difundir a luz, mostrar o caminho...
            E, também, muito belo o gesto de acender um lampião, ou uma vela, ou simplesmente acender o fogo humilde que vai cozinhar os alimentos.
            O gesto de regar plantas é também muito expressivo. Acho muito necessário difundir este gesto e lembrar aos nossos amigos, e de modo especial aos esposos e aos noivos, que o Amor é plantinha frágil que precisa ser regada continuamente!
            Subir e descer! Dois gestos que sempre me ajudam a refletir... Subir, sem entontecer, sem julgar-se maior que os outros, nem melhor do que ninguém... Descer, recordando a grande Descida, a vinda do Filho de Deus ao mundo para tornar-se Homem, nosso Irmão...
            Descer, de coração alegre e leve, para ficar mais perto dos Pequenos, dos Humildes, dos que sofrem...
            Peço vênia para continuar citando gestos que me parecem muito expressivos:
            Despertar de manhã cedo, abrir os olhos, vê-los enchendo-se de luz de um novo dia que se inicia, lembrança viva do Início da Criação...
            Adormecer, dormir, perder contato com a vida consciente, mergulhar no torpor: lembrança perfeita da morte, meditação oportuna sobre o grande sono do qual despertaremos no grande dia da Ressurreição...
            Para que gesto mais expressivo do que caminhar? é, para mim, um ideal de vida: progredir na compreensão, caminhar na Fé, na Esperança, no Amor!
            Abraçar também é um gesto lindo. É o contrário de separar. Abraçar é unir. E me faz lembrar que há tanto desencontro, desunião entre esposos, entre pais e filhos, entre irmãos, entre vizinhos, entre patrões e operários, entre países, entre continentes...
            Ler: mas não só letras, sílabas, palavras e frases. Ler a Natureza. Saber entendê-la. Saber interpretá-la. Descobrir o Criador por detrás das Criaturas.
           Voar foi sempre um sonho para o homem. Sonho hoje em plena realização. O homem já não se contenta de voar de cidade a cidade, de país a país, de continente a continente: partiu para a Lua, desceu em planetas, e sonha ainda chegar às profundezas do Universo...
           Quando se começa a descobrir o simbolismo de cada atitude e de cada gesto, nota-se que o Universo inteiro vira um grande Sacramento, no sentido de algo visível, de tangível, de audível, que nos leva ao Criador e Pai de todos os pais.
           Que gesto não tem uma quinta dimensão? Que gesto não é capaz de levar-nos além do espaço e do tempo, e de chegar até Deus, e mergulhar-nos na Eternidade?...
 
                                                        ***************

Mergulhemos na poesia inspirada de Camões, o príncipe dos poetas da Língua Portuguesa:


                                                   Onde acharei lugar tão apartado
                                                   E tão isento em tudo da ventura,
                                                   Que, não digo eu de humana criatura,
                                                   Mas nem de feras seja frequentado?

                                                                       Algum bosque medonho e carregado,
                                                                       Ou selva solitária, triste e escura,
                                                                       Sem fonte clara ou plácida verdura,
                                                                       Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

                                                  Porque ali, nas entranhas dos penedos,
                                                  Em vida morto, sepultado em vida,
                                                 Me queixe copiosa e livremente;

                                                                       Que, pois a minha pena é sem medida,
                                                                       Ali triste serei em dias ledos,
                                                                       E dias tristes me farão contente.

                                                           ******************

Aroldo Teixeira de Almeida é professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense, e bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, SP.
 
 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

DAS ARTES, A MAIS BELA


           
            Cá na paróquia de meu bairro, em Curitiba, nos domingos há a tradicional "Missa dos Jovens", e a Igreja parece explodir quando aqueles jovens de todas as idades se põem a louvar a Deus com cânticos e orações em altas vozes. É um espetáculos emocionante, e eu pareço ser arrebatado às alturas com esse entusiasmo e fervor juvenil.
             E eles costumam, a uma só voz, cantar:

                                          "Fica sempre um pouco de perfume
                                           nas mãos que oferecem rosas,
                                           nas mãos que sabem ser generosas.
                                           Dar um pouco do que se tem
                                           a quem tem menos ainda
                                           enriquece o doador,
                                          faz sua alma ainda mais bela.
                                                            Dar ao próximo alegria
                                                            parece coisa tão singela;
                                                            aos olhos de Deus, porém,
                                                            é das artes a mais bela..."

              Basta reparar: quando o canto atinge seu auge, a impressão poderia ser que fica sempre um pouco de perfume nas mãos de quem tem rosas em forma de cânticos para oferecer ao Senhor:  a certeza de que nas mãos de quem sabe e pode ter generosidade Deus derramará Sua Graça em abundância, prenúncio da Glória a nós reservada no Reino dos céus.
              E eu, nessas ocasiões, me ponho a refletir: a quem do pouco de que dispõe, ajuda a quem tem menos ainda, Deus providenciará para que nada falte também em sua vida...
              O fato é que a pobreza, em geral, torna os Pobres egoístas. É a luta pela vida, pela sobrevivência. Podendo afastar, afastam; podendo empurrar, empurram, na esperança de, com menos concorrentes, poder ter um pouquinho mais...  É triste ver como, em geral, os Pobres se devoram entre si.
             Entretanto, é preciso lembrar, sempre, que há Pobres capazes de acudir, felizes, a quem precisa ainda mais do que eles...
             A canção dos jovens, lá da minha paróquia, diz que "dar um pouco do que se tem a quem tem menos ainda, enriquece o doador e faz sua alma ainda mais bela..."
             O cântico, para mim, termina de modo surpreendente. Passa a falar em uma ajuda especial: a de dar ao próximo alegria. Algo que, à primeira vista, parece tão simples, tão sem valor, tão sem importância dar ao próximo um pouco de alegria... No entanto, os jovens cantam que dar aos outros alegria é a mais bela das artes...
             Exagero? É mesmo tão importante e difícil assim dar aos outros alegria?
             Chega a ser arte? E é belo alegrar o próximo? Fazer com que surja uma réstia de azul no céu cinzento, cor de chumbo, que acabrunha um irmão, será mesmo "das artes a mais bela"?
             Que pensarão a respeito os moços que, com suas guitarras elétricas e suas vozes quentes e jovens, enchem a Casa de Deus, na minha paróquia, cantando:
 
                                           Dar ao próximo alegria,
                                           Fazer coisa tão singela;
                                           Aos olhos de Deus, porém,
                                           É das artes a mais bela...


                                                      ********************

O autor é professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense e bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da PUC paulista.
        
 
 
 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O SONHO DE KARL BARTH


            Começo o mês de setembro terminando a leitura da biografia de Karl Barth, o grande pregador luterano. E, na sua biografia, leio que Karl Barth teve um sonho. Sonhou com Mozart.
            Barth sempre se sentiu melindrado pelo catolicismo de Mozart e pelo fato dele rejeitar o protestantismo. Foi Mozart quem disse:
            - "O protestantismo está todo na cabeça." E acrescenta: -"Os protestantes não conhecem o sentido do "Agnus Dei qui tollis peccata mundi".
            No sonho, Barth foi indicado para examinar Mozart em Teologia. Desejava tornar o resultado do exame tão favorável quanto possível. Assim, em suas perguntas, aludia expressamente às famosas "Missas" do compositor.
            Mozart, porém, não respondeu palavra.
            Confesso que fiquei profundamente comovido com a descrição deste sonho de Barth. O sonho tem a ver com sua salvação, e Barth está talvez se esforçando por admitir que ele será salvo mais pelo Mozart que nele existe, do que por sua Teologia.
            Cada dia, durante anos, Barth tocava Mozart todas as manhãs antes de iniciar seu trabalho sobre o Dogma. Procurava, talvez inconscientemente, despertar o Mozart sapiencial nele oculto, a sabedoria interna que se harmoniza com a música divina e é salva pelo Amor, sim, mesmo pelo eros. Enquanto o outro ser, o teológico, aparentemente mais preocupado com o amor, abraça um ágape mais severo, mais cerebral. Um amor que, afinal, não está em nosso próprio coração, mas somente em Deus, e é revelado apenas à nossa cabeça.
           Barth na sua biografia nos diz também, com muito sentido, que "é uma criança, mesmo uma criança divina, que nos fala na música de Mozart".
           Alguns, declara Barth, sempre consideraram Mozart uma criança em relação às coisas práticas da vida. Ao mesmo tempo, ao menino-prodígio Mozart nunca foi permitido ser criança no sentido literal da palavra. Tinha apenas seis anos quando deu seu primeiro concerto.
          Contudo, foi sempre uma criança "no sentido mais elevado do termo".
          E eu, emocionado com a leitura de sua biografia, só posso me manifestar com estas palavras:
          - "Não temas, Karl Barth! Confia na misericórdia divina. Se bem que cresceste e te tornaste um brilhante teólogo, Cristo permanece em ti uma criança. Lendo a história de tua vida, tive a profunda intuição de que existe, lá nas profundidades de nossa alma, um Mozart que será prenúncio de nossa Salvação!
 
                                                        ********************

E, para trazer uma pitada de poesia para  nos alegrar o espírito, leiamos este belo soneto de autoria do "príncipe" dos poetas de língua portuguesa,  Camões:

                                                Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
                                                Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
                                                Sem falta lhe terá bem merecido
                                                Que lhe seja cruel ou rigoroso.

                                                                     Amor é brando, é doce e é piedoso,
                                                                     Quem o contrário diz não seja crido;
                                                                     Seja por cego e apaixonado tido,
                                                                     E aos homens, e inda aos deuses, odioso.

                                                Se males faz Amor, em mim se vêm;
                                                Em mim mostrando todo o seu rigor,
                                               Ao mundo quis mostrar quanto podia.

                                                                    Mas todas suas iras são de Amor!
                                                                    Todos estes seus males são um bem,
                                                                    Que eu por todo outro bem não trocaria.


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Aroldo Teixeira de Almeida, professor aposentado do Quadro Próprio do Magistério Paranaense, é bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Capital dos paulistanos.