quarta-feira, 25 de julho de 2012

A MORTE DE DEUS


            O protestantismo moderno, com certeza carente de uma Reforma radical como a do século XVI, tem tomado certas posições intrigantes (ou instingantes?) que desconcertam os que se interessam pelos assuntos teológicos. Refiro-me mais especificamente aos dois corifeus do protestantismo atual. Bonhoeffer, Robinson e respectivas escolas, que sustentam, embora em tempo e lugar diferentes, que o cristão deve adotar a visão contemporânea de que "Deus está morto" e, em consequência, tornar-se adulto, esquecer-se da religiosidade e piedade interior, construir a cidadela secular, e assim estará realmente "mais perto de Deus".
      Creio que do ponto de vista de uma rudimentar análise psicológica existe algo a favor de Bonhoeffer e Robinson. Ambos diagnosticaram claramente o descontentamento dos cristãos modernos com o padrão de religiosidade que, apesar de sincero, simplesmente os abafa e constrange. Certamente porque há, com efeito, uma grande e inegável necessidade de renovação e libertação religiosa, muito embora o Cristianismo realmente prometa a seus seguidores um espírito de liberdade e de amor, como também um contato vivo e dinâmico frente à  realidade que os rodeia.
      Apelaram então os teólogos citados para a necessidade que homem e mulher modernos têm de uma religião que sintam ser realmente autêntica, e não simplesmente um misto de imaginação piedosa e submissão a normas éticas e rituais. Ao procederem assim, Bonhoeffer e Robinson concluíram que nenhuma religião é a única norma de fé aceitável em termos de modernidade. Pregaram um Cristianismo absolutamente alheio a qualquer religião.
      Podemos dizer que tal visão se baseia numa escolha entre Deus de um lado, e do outro o homem e a mulher? Isto porque esses teólogos e sua escola simplesmente nos questionam: - "Se formos forçados a escolher entre uma fé árida e formalista em Deus lá em cima, e um amor dinâmico e criativo de homem e de mulher aqui em baixo, abandonaremos a idéia de Deus e acolheremos homem e mulher. Cremos que deste modo estaremos mais perto de Deus, na Sua absoluta obscuridade, pois Ele se esvaziou para tornar-se homem e manifestar-se apenas no homem e na mulher".
      Parece-me, realmente, que esta escolha apresenta certos aspectos admiráveis, porque prefere o risco à formulação de realidades quase sempre abstratas. A verdade triste é que, no enfoque da religiosidadea tradicional, se discute interminavelmente sobre um Deus escondido no Céu, e não se mostra quase nenhum interesse pelos seres humanos cá na Terra.
      Esta intrigante posição religiosa dos dois teólogos protestantes, pela mesma escolha implícita, parece dizer-nos em contraposição: - "Se formos obrigados a escolher entre homem e mulher pecadores, perversos, gananciosos, lascivos, e o Pai Eterno nos Céus, indubitavelmente daremos as costas à maldade humana e nos prostraremos diante do Pai."
      Estas duas escolhas, a meu ver, estão completamente erradas, porque não existe tal divisão no Cristianismo. Não é simplesmente OU Deus OU homem e mulher, mas encontrar Deus amando a ambos, e descobrir o sentido verdadeiramente humano em nosso amor para com Deus. Uma escolha não é possível sem a outra. Por isso eu me atrevo a discordar de que possamos apreciar a dignidade e a maioridade da pessoa humana decidindo-nos a favor dela e contra Deus. Faltando o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a eminente dignidade de homem e mulher é prejudicada de modo gravíssimo, como se verifica hoje com frequência em diversos setores da atividade humana.
      Creio sinceramente que é imperioso apelar não só para a Escritura Sagrada, mas também para o senso comum e para a experiência universal dos nossos tempos. Seríamos certamente frívolos ou platonicamente românticos aceitando uma visão idílica da impiedade, sabendo que seus resultados têm sido e de fato são com certeza tão evidentes e terríveis para todos nós.
      O Cristianismo, ao contrário, continuará a clamar que o amor do homem e da mulher será inseguro e ilusório, se não proceder da ação oculta de Deus e de Sua Graça. O amor de Deus será sempre a fonte única de todo amor vivo e autêntico para nossos irmãos, homens e mulheres, de todos os tempos e lugares.
      Nestes termos, concluo que o protestantismo de Bonhoeffer e de Robinson fez uma opção errada, e os protestantes atuais, aceitando tal opção, estarão também entrando num caminho errado.
     

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O SILÊNCIO DE DEUS


      Num certo sentido, homens e mulheres deste nosso mundo estão cercados por todos os lados  pelo silêncio de Deus, abandonados totalmente à própria sorte de seres contingentes e finitos.
      Este silêncio enigmático e sufocante desconcerta a muitos cristãos desejosos de qualquer manifestação sensacional de Deus. Uma espécie de teofania do Antigo Testamento, com raios e trovões, que arrancasse homens e mulheres de sua letargia, purificando para sempre o mundo e reconduzisse novamente à fé a humanidade inteira.
      A tentação exercida entre nosso povo pelas diversas formas do exoterismo e de seus sucedâneos é uma prova dessa fome doentia de apalpar, de apreender, de agarrar essa presença ou ausência misteriosa que governa e mantém o mundo.
      Entretanto, para nós, crentes, este silêncio de Deus é aparente, porque Deus nos fala sem cessar. Sua Palavra está aí perto de nossas mãos, nas Sagradas Escrituras. Nos templos e igrejas o culto e a liturgia nos vem continuamente lembrar esta realidade empolgante: Deus está no mundo. Deus desceu à Terra e se fez como um de nós.
      Não é apenas uma presença figurada, como na Arca da Aliança. É uma presença que se tornou concreta e palpável na Encarnação. Deus se fez carne, levantou Sua tenda entre os filhos. Deus se encarnou e entrou na história humana para dela não mais sair.
      O Senhor é bom e misericordioso. Não quis ofuscar homens e mulheres com Sua glória, por isso penetrou sorrateiramente entre eles, fez-se um entre muitos, e é preciso descobrir Sua presença escondida, encarnada sob as vestes do cotidiano.
      Ele está aí e nos chama; nós, porém, não ouvimos Sua voz, não queremos abrir nosso coração à Sua Palavra, ao seu Verbo, que se fez pessoa como nós.
      É este o silêncio de Deus, um silêncio causado por nós próprios, que sufocamos os apelos divinos com os nossos barulhos inúteis.
     Faz tanto tempo que Ele veio à Terra, e muitos de nós não viram ainda a Sua face. Muitos de nós ainda não O conhecem de verdade, ou olham para Ele apenas nos momentos em que as conveniências pessoais ou sociais assim o exigem.
      E é precisamente nisto - creio eu - que está a causa de todas as nossas frustrações e desgraças.  Há alguém entre nós que nós ainda não acolhemos ou que não conhecemos. É necessário  então descobrir esta presença de Deus entre nós. Saber encontrar o Deus escondido, e saber ver a Sua ação e a Sua presença nos acontecimentos mais íntimos e desconcertantes de cada vida humana.
      Muito mais que compreender, é preciso que vivenciemos esta presença de Deus entre nós. Viver lado a lado com Ele, que não é um Deus distante. Eis aí sua tenda no meio de nossas cidades, em nosso lar, no meio de nós. É como um vizinho e amigo. É preciso que Ele permaneça assim para sempre:
      No meio de nossos problemas. Dentro de nossa família. Dentro do nosso trabalho. Dentro de nossa vida. Dentro de nossas alegrias e sofrimentos.
      Ele sabe o que é alegrar-se, sabe o que é sofrer, estar cansado, ter fome e sede. Foi para isso que se fez um de nós.
      É preciso saber encontrá-Lo sempre, e tê-Lo sempre conosco nesta vida, para que não O percamos na eternidade.  

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A MINHA POBRE MÃO ESQUERDA....


      O saudoso arcebispo de Olinda e Recefe, Dom Hélder Câmara, além de primoroso escritor,  foi também poeta, e poeta dos bons. Possuo muitíssimos dos seus poemas e, entre eles, aprecio bastante este, em que ele celebra a mão esquerda, quase sempre esquecida por nós:

                                         Perdoa, mão esquerda!

                                    Se eternamente, és segunda...
                                    Faz-me bem
                                   A simplicidade com que acorres
                                   Ao menor aceno
                                   Da mão direita, tua irmã,
                                   E como estás distante
                                   De ressentimentos e mágoas,
                                  Complicações e complexos... 

      Refletindo sobre este poema do ilustre arcebispo, não é verdade que há muitíssimas pessoas neste nosso mundo que passam a vida inteira no papel de mão esquerda?... Em quase todas as situações importantes, quem é que aparece? A mão direita. Quem toma a maioria das iniciativas? Qual é a mão considerada mais forte? A não ser nos casos, poucos, de pessoas canhotas, a mão direita sempre se apresenta como a rainha do pedaço, e a mão esquerda, coitada! é sempre a gata borralheira, como lemos nos livros dedicados às crianças do mundo inteiro.
      Na vida real, quem faz muitas vezes o papel de mão esquerda é uma tia solterona que mora com a irmã, mãe de uma fieira de filhos. Nessa casa, quem mais trabalha, quem mais se cansa, quem se mata no trabalho doméstico, muitas vezes, muito mais que a mãe da molecada, é sempre a tia solteirona... Na hora de decidir, de tomar decisões importantes, nisto ela nunca é ouvida...
      E a história se repete em muitos outros lugares e situações... Às vezes, principalmente em repartições ditas  públicas, lá está o Diretor, o Chefe de seção... Os mãos direitas!... Mas ai deles se não houvesse um funcionário ou funcionária subalternos, que são verdadeiramente os que suportam todo o peso dos trabalhos da repartição... São os primeiros que ali chegam e os últimos que saem.
      Quando se trata de qualquer missão difícil, grita-se por eles. Na hora de aparecer, na hora dos louvores e apertos de mão, aparecem o Chefe de Seção e o Diretor, as mãos direitas.
      Sabemos que não é fácil ser mão esquerda. Ajudar a mão direita, com entusiasmo, com calor, com alma, sem nem por sombra passar-lhe pela cabeça tomar o lugar da mão direita.
      Aliás, lembra-me aqui uma frase de Cristo, que disse em relação às esmolas: - "Não saiba tua mão esquerda o que faz a direita."  (Até o Senhor Jesus botando prá escanteio a pobre mão esquerda? Estamos mesmo a caminho do fim do mundo...).
      A beleza do trabalho da mão esquerda é fazer sem nada reclamar, fazer sempre, mas não como quem faz um favor ou como quem pensa que é necessário e insubstituível...
      A autêntica mão esquerda é um prolongamento da direita, com quem trabalha em perfeita harmonia e no mesmo ritmo...
      Passando agora à finalidade última deste "discurso": na vida, Você, meu eventual leitor, como é que Você se sente? Como mão direita ou como mão esquerda? Sente-se mão direita, sempre? Tem papel importante a cumprir? Papel de Diretor ou de Chefe de Seção? Tudo bem, mas valorize mais sua mão esquerda! Lembre-se que, sem ela, muito do que Você faz, não conseguiria fazer sem a prestimosa e gratuita ajuda dela...
      Por acaso se sente mão esquerda? Ocupa um trabalho subalterno, humilde, em que outros brilham à sua custa? Sente doer-lhe as ingratidões, as injustiças, quem sabe, invejosas perseguições?
      Deus me livre de aconselhar a mão esquerda a que assuma papel de escrava, papel de capacho...
Mas que ela, a minha querida mão esquerda, tenha bem presente que seu encanto é a sua simplicidade, o seu desprendimento, sua falta de inveja da mão direita... É tanto maior, quanto menos se preocupa em aparecer...
      E, terminando, peço licença ao eventual leitor para saudar, com muito respeito e amizade, os milhões de criaturas que neste mundo de Deus têm na vida a missão desde todos os tempos reservada à minha irmã, à querida Mão Esquerda!... 

terça-feira, 10 de julho de 2012

A CÓLERA DE DEUS SERÁ REAL?


      "Ser homem, diz o teólogo luterano Karl Barth, significa situar-se na presença de Deus, como Jesus está, isto é, suportar a cólera de Deus."

      Não gosto de um "otimismo" que se encolhe diante da verdade. Mas ela tem que ser compreendida. Jesus suporta a cólera e Ele vive. Porque Ele a suporta e vive, nós também a suportamos e vivemos. Não, porém, por nossa própria força, e sim pela dEle. E porque Ele a suportou na Cruz, a cólera se torna para nós amor, salva-nos, purifica-nos, abre-nos as portas do Céu. 
      Aqui estou eu, neste entardecer muito frio de Curitiba, talvez indevidamente tentando acrescentar minhas pobres idéias católicas às do luterano Barth. Idéias, aliás, tão bem e tão terrivelmente expressas em São João da Cruz, na "A Subida do Monte Carmelo".
      Comparem, portanto, isto do catecismo calvinista com a "Noite Escura", também de São João da Cruz:
      - "Que compreendeis pela palavrinha "sofreu"?
      "Que Ele, todo o tempo de Sua vida, mas especialmente no fim, suportou no corpo e na alma a cólera de Deus contra toda a raça humana."
      Nada há aqui do "dolorismo" de certos tipos de piedade. A perfeita seriedade que encerra é de qualidade que revira num só instante toda a nossa vida. Outras perspectivas falam dos sofrimentos de Cristo com requintados pormenores físicos. Escapam-lhes, entretanto, o essencial, que é a cólera teológica, que atinge terrivelmente as fibras mais íntimas e profundas da alma.
     Em certos tipos de literatura piedosa as dores do Senhor são enumeradas como as de alguém que em realidade não foi atingido. São quantitativas, pormenorizadas, retorcidas até à última gota essencial de agonia. Mas a seriedade da cólera não está aí, porque  -  como geralmente se percebe  -, na mente do pregador Deus está satisfeito, contente com a dor. Porém, se a palavra "cólera" é pronunciada, toda essa piedosa elaboração se torna desagradavelmente frívola e vazia.
      A cólera significa que Deus não está satisfeito, não está "contente" com as dores do Redentor, cujo amor suporta a cólera e nos redime, afastando-a de nós.
      A triste verdade é que já perdemos o sentido da cólera de Deus. Ela é apenas trovão, simples manifestação de poder. A verdadeira cólera é ontológica. Atinge até as mais íntimas e profundas fibras da alma, chamando-a à razão e à reflexão, com uma urgente transformação de vida.
      Diante da cólera de Deus, creio que terei de tornar-me cristão!

domingo, 8 de julho de 2012

A ESPERANÇA QUE NOS SUSTENTA


      O que sustenta os santos são as três virtudes teologais: a Fé, a Esperança e a Caridade (= o Amor). .Dessas três virtudes uma delas sobressai nestes nossos tempos conturbados, cheios de conflitos e contradições: a Esperança.
      A Esperança, eis a virtude que muito me seduz. O resto do mundo deseja, cobiça, reivindica, exige, e chama tudo isto esperar,  porque não tem paciência nem discernimento, quer apenas fruir a hora presente, até esgotar a taça, e a expectativa de poder esgotá-la até o fundo não pode ser chamada de esperança; seria, antes, um delírio, uma agonia.
      Além disso nosso mundo vive demasiadamente depressa, nosso mundo parece não ter tempo de esperar. A vida interior de homem e mulher modernos possui um ritmo demasiado rápido para que nela se forme e amadureça um sentimento tão ardente e terno, a esperança, e eles, homem e mulher, encolhem os ombros à idéia dessas "castas núpcias com o futuro" , como o romancista francês Bernanos define a esperança.
      E Bernanos ainda acrescenta: -"A esperança é um alimento demasiado leve para o ambicioso", porque ameaçaria enternecer-lhe e amolecer-lhe o coração...
      Também o mundo moderno não nos deixa tempo de esperar, nem de amar, nem de sonhar. É a gente pobre e sem expectivas seguras quem espera em seu lugar, exatamente como os santos  amam a Deus e padecem pelos nossos sofrimentos.
      A tradição da humilde esperança está nas mãos dos pobres, dos deserdados da sorte, do mesmo modo como as velhas rendeiras guardam o segredo de certos pontos que só elas sabem fazer e que ninguém os consegue imitar.
      A paciência dos pobres, que Bernanos nos mostra com tanta maestria nos seus romances, realiza a mesma redenção dos santos quando eles se sacrificam em benefício dos outros, seus irmãos. Agonia e renúncia à alegria, que se conjugam num único e mesmo mistério, o da esperança.
      A face do mundo espiritual desvela-se ante nossos olhos; o sofrimento que nos aflige, o silêncio misterioso e intrigante de Deus, quer sejam suportados sem havermos ido ao seu encontro, quer sejam livremente abraçados por amor, tornam-se a face mesma de Cristo na Cruz, operando a redenção do mundo: a esperança, no seu ponto culminante, é a Caridade, o Amor.
      Somente Deus pode dar ao homem e à mulher a força de esperar contra toda a esperança. Esta é a verdade que aprendi nos tempos de catecismo e que mantenho até hoje: as virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade (= Amor) têm Deus por autor e objeto formal. São elas o próprio Deus em nós, São elas o Cristo em nós, vivendo a alegria no seio das trevas. É a Cruz antevendo  a Ressurreição.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

SAUDADES DA RAQUEL



      Após a morte de minha filha Raquel, em 21 de agosto de 2010, decidi-me a  ter um "diário", no qual pudesse descarregar um pouco da amargura, da tristeza, da melacolia que me dominava a alma, quando me lembrava da vida intensa que minha filha levava, nos poucos anos em que passou conosco.
      No dia em que, passado um ano, sua filha Isabela, 13 anos, minha esposa e eu, na Santa Missa celebrada em sua memória, choramos a sua dolorosa ausência física entre nós, tive a intuição de que a tristeza da separação somente pode ser minorada com o socorro do alto, do Céu, numa palavra, de Deus. E este socorro nós o conseguimos através da prece, da abertura de nosso coração diante de Deus e de Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo.
      E foi relendo o "diário", nesse dia em que a ausência física de minha filha completava um ano, dolorido e cheio de saudade, que meditei novamente no que registrei, dia a dia, sobre a prece, sobre a oração, que se tornou a maneira mais simples e poderosa de colocar-me em contado espiritual com a Raquel.
      Com lágrimas de saudade é que fui lendo tudo aquilo que escrevi no dia 21 de agosto de 2011,  após voltarmos da Santa Missa, na igreja de nossa paróquia:
     "O consolo que buscamos pela ausência da pessoa amada, minha filha Raquel, só pode ser alcançado pela oração na presença de Deus, pois a oração é com certeza a respiração de nossa alma.
      Só a prece nos consola da felicidade que não conseguimos, e da infelicidade que nos tortura  pela ausência da Raquel, essa tortura que se tornou nossa alimentação diária.
       Horas há em que me sinto prestes a soçobrar à simples lembrança de tudo o que a vida me prometeu mediante minha filha, e que logo me retirou. E é nesse instante dolorido, que basta às vezes uma simples oração atentamente recitada para me aplacar a dor, para minorar todo o sofrimento do meu coração.
      Mesmo quando tudo nos parece perdido, é principalmente então que a oração nos revela que Deus é a melhor das consolações que podemos encontrar no sofrimento.
      Por mais dolorida que se torne nossa vida, é necessário não interromper a cadeia da oração, pois é somente a oração que resolve tudo, mesmo quando nosso mundo interior parece perdido.
      E eu creio firmemente que a oração resolve tudo, porque descobri que não podemos encontrar a paz a não ser enquanto oramos. E essa paz não é uma auto-sugestão, mas um abandono filial à vontade de Deus.
      Quando estudava Teologia, em São Paulo, nos inícios da década de sessenta, meu professor de Teologia Dogmática, monsenhor Roxo, nos dizia que a finalidade da oração é menos obter o que pedimos, do que tornarmo-nos outros. E acrescentava que seria preciso ir mais longe, e dizer que pedir alguma coisa a Deus nos transforma pouco a pouco em pessoas capazes de renunciar às vezes até ao que pedimos com tanta insistência.
      Refletindo sobre esta frase do Monsenhor, cheguei à conclusão de que ela deveria ser repetida a todos os que, rezando, não obtiveram o que pediram a Deus. "Tornarmo-nos outros", sermos capazes de renunciar até ao que pedimos, tenho certeza absoluta de que é penetrar na Fé verdadeira. Precisamos agarrar-nos a Deus porque é Deus, e não porque isso nos interessa, ou por qualquer outro motivo, mesmo sublime. A oração é, portanto, uma coisa sagrada, e eu penso que o melhor livro sobre a prece deve ser lido de joelhos, de mãos postas e olhos fechados.
      Aliás, tenho a firme convicção de que o verdadeiro livro sobre a oração é o próprio Deus, e é a Ele que a oração nos conduz". 
      E terminei minhas anotações, nesse primeiro ano do falecimento da Raquel, transcrevendo no meu "diário" esta oração a Maria, que encontrei no livro intitulado "Varouna", de Julien Green e que venho lendo há já quase um mês:
 - "Maria, eu a saúdo, porque é bela e o crescente da Lua está a seus pés, e porque eu estou sozinho e necessito falar a alguém que me escute com bondade. Confio-lhe então todos os meus pesares. Queixo-me a Maria da minha solidão e sinto-me menos só. Digo a ela que tenho um coração humano, e que esse coração tem frio porque Aquele a quem devo amar não está nele, e ela compreende, porque é a mãe de toda a humanidade. E quando fecho os olhos tenho a impressão de me aninhar junto dela, com a cabeça em seus joelhos, e que ela toca os meus cabelos com a ponta dos dedos.  Tais são os devaneios de uma alma inebriada de tristeza."

terça-feira, 3 de julho de 2012

Confidências...

      Eis-me no limiar dos setenta e sete anos... Que pensaria agora de ti o jovem que tu foste aos dezesseis, se te pudesse julgar? Que diria ele, diante do que tu vieste a ser na vida?  No que acabaste de te transformar, contra todas as expectativas mais otimistas? Acaso valeria a pena viver como tu tens vivido até agora?
      Que secretas esperanças de teus familiares tu desiludiste, das quais tu mesmo nem mais recordas?
      Seria apaixonante, embora muito triste, confrontar esses dois seres: aquele que tu tinhas todas as possibilidades de ser, e agora seres o que tu és, desmentindo todas as esperançosas expectativas...
      Imagino tu, enquanto mais moço, apostrofando o que te tornaste agora:
      - Tu me enganaste, tu me roubaste... Onde estão os sonhos que te confiei, e que tu me juraste que iria realizá-los? Que fizeste daquelas riquezas que eu tão loucamente coloquei nas tuas mãos? Eu respondia por ti, era responsável por ti. E tu me falhaste. Mais valia eu ter ficado com tudo o que então possuía, e que, colocado em tuas mãos, tu o  destruíste.
      Deixei de admirar-te, pelo contrário. E que diria o mais velho de nós dois para defender-te?
      Falaria da experiência adquirida, de idéias inúteis atiradas fora, poria diante de ti alguns livros, falaria da sua reputação, rebuscaria febrilmente nos bolsos, abriria gavetas para encontrar alguma coisa que te justificasse. E tu sempre me falhaste.
      E se a vida te julgasse, tu te defenderias muito mal.
      E eu, que julgando a ti me julgo a mim mesmo, creio que continuaria tendo vergonha do que sou agora, diante do que eu poderia ter sido, e não fui!

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O SILÊNCIO DE DEUS



      - "E, contudo, Deus não disse absolutamente nada."
      Esta frase de Robert Browning exprime o nosso sentimento perante o drama de muitas pessoas que, sempre fervorosas em sua vivência do dia a dia e em suas preces, não sejam especialmente protegidas por Deus, em meio aos perigos da tentação e do pecado.  Não mereciam elas que Deus lhes enviasse um anjo para impedi-las de tropeçar?
      A Teologia nos responde que Deus não o faz porque respeita a nossa liberdade. Ele não intervém a cada instante para obstar o desdobramento das consequências das nossas secretas cumplicidades; com efeito, os frutos revelam a raiz que alimenta a árvore.
     Estamos então abandonados a nós mesmos perante o pecado inscrito com tanta antecedência em nosso íntimo, de tal maneira que nada de humano o pode apagar?
      Não: se estamos infinitamente mais longe de Deus do que imaginamos, estamos também mais perto dEle do que podemos supor. A Graça divina trabalha nas profundidades do ser. Ou melhor dizendo: só Deus pode fecundar o solo último e secreto do nosso ser espiritual, só Deus pode desfazer e recompor a nossa vida, e tornar a criá-la à Sua imagem e semelhança.
      A verdade é que o Senhor permite-nos medir, em nossos pecados, a profundidade da nossa fraqueza congênita, apesar de isto não significar que não seja preciso lutar sempre contra as tentações e os impulsos para o pecado.
      O aparente abandono e o silêncio de Deus na tentação é, portanto, o reverso de Sua presença divina. Depois do pecado, nós tomamos consciência que, apesar dos esforços ascéticos e da oração que devemos realizar sem tréguas, (Deus não nos salva sem a nossa cooperação, diz-nos a Teologia), somente a Graça de Deus que sonda a profundidade dos pensamentos e dos corações, pode devolver-nos a verdadeira liberdade espiritual.
      Em outros termos: os esforços ascéticos, as preces quase sempre inábeis, assemelham-se aos exercícios que um aluno de natação realiza fora da água; se não fosse a água profunda da Graça, jamais a aprendizagem da nossa liberdade se transformaria na liberdade autêntica dos filhos de Deus.
      O fato é que, a experiência pessoal do pecado, embora não diretamente desejada por Deus, nos ensina esta verdade fundamental. Se nós nunca nos surpreendêssemos débeis ou fracos, se nós nunca nos considerássemos pecadores em profundidade, jamais descobriríamos de que abismo profundo precisaríamos gritar pelo socorro de Deus.
      Nunca adivinharíamos por quais caminhos secretos Deus nos ajuda, por quais despojamentos do nosso orgulho nos ensina a corrermos ao Seu encontro. É uma verdade da qual muito pouco nós tomamos consciência, mas que a leitura do Livro de Jó nos tornaria patente: é ali, no âmago do abandono aparente de Deus, que o Senhor atua, conforme o testemunho do teólogo:
       - "Como não ver que Deus nos trabalha sem cessar? Nosso drama quase nunca é representado no plano que julgamos, e do qual por vezes nos é dado escolher apenas um aspecto fugaz e lamentavelmente incompleto. Até à nossa morte, permaneceremos misteriosos a nós mesmos, estaremos diante de nós mesmos como desconhecidos que se olham e não se compreendem." (Charles Moeller, "O Silêncio de Deus", I, pág. 400).

domingo, 1 de julho de 2012

O SOFRIMENTO E A ESPERANÇA CRISTÃ


      Homem e mulher são feitos de tal modo que, não estando moral e espiritualmente preparados para irem ao encontro de Deus, nem o milagre mais extraordinário os convencerá. É preciso ser paciente. Não querer antecipar-se aos desígnios o Senhor. Ter Fé e Esperança. Nunca tentar interpretar os atos da providência divina.
      Pode dizer-se que  essa doutrina é conhecida, e não impede que o silêncio de Deus pese terrivelmente sobre nós, num tempo em que seria tão necessária uma pequena trégua, ao menos para haver tempo de tomar fôlego antes de reiniciar a marcha para a frente.
     Certa família gastou uma pequena fortuna para enviar uma criança doente numa peregrinação a Aparecida do Norte, com a esperança de que a Virgem Maria lhe concedesse a cura. Todos rezam para que isso aconteça, pais, irmãos e irmãs, parentes e amigos, todos rezam nessa intenção. Mas a criança não se cura.
      Todos nós, católicos, sabemos que o principal milagre de Aparecida, de Lourdes, e o de outros lugares de peregrinação religiosa, reside justamente no fato dos que não se curam voltarem resignados e mais amigos de Deus e de Sua Providência. Se o milagre não acontece, e muito menos converte o mundo, uma cura miraculosa transformaria a vida espiritual dos beneficiados.  Mas porque se cura este, e não se cura aquele outro?
      Mistério terrível, Pode-se, deve-se mesmo dizer que a fé daqueles que tudo sacrificaram para obter a cura de um filho, sem serem atendidos, é especialmente posta à prova por Deus. - "Pois se agradas a Deus, terás de ser submetido à tentação" - alerta-nos o livro de Tobias.
      Aqueles cuja fé foi submetida a mais duras provas estão certamente mais perto de Deus, mais ativamente ocupados na redenção do mundo,  do que os que apenas sofrem as dificuldades clássicas da vida, clamam "Senhor! Senhor," mas não entrarão talvez no Reino.  Aquele que sofre e vê o seu sofrimento prolongar-se, entrevê um Deus que julga melhor ainda que a melhor coisa dele conhecida no mundo: um filho Seu. Esse está próximo de Cristo.
      É uma doutrina profunda, mas difícil. É na passagem pascal da morte para a vida que se resolve o enigma do sofrimento humano e do silêncio de Deus.
      A Fé e a Esperança do pobre,  do homem e da mulher que sofrem, não perecerão, porque o Pobre, maior sofredor da História, foi um inocente, que de rico se fez pobre, a fim de nos saciar com Suas riquezas, Jesus de Nazaré.
      O silêncio de Deus é a Sua mesma palavra; Sua ausência, a Sua presença. Porque a ausência de Deus, o Seu silêncio, é a Cruz, o instrumento de morte e de RESSURREIÇÃO, EM JESUS CRISTO.