A gente se acostuma quase sempre para preservar a pele, para evitar feridas e sangramentos emocionais, para poupar os dissabores do dia-a-dia. Aos poucos, de tanto acostumar, nos acostumamos conosco mesmos, a ponto de não sabermos mais desfrutar das alegrias da vida.
A gente se acostuma com muitas coisas para não sofrer. Em doses pequenas, fingindo não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Mas, será também verdade que o tempo nos fará acostumarmo-nos com a ausência de uma pessoa querida, como sempre foi e como sempre será minha querida e falecida filha Raquel?!
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É a mais pura verdade:
Hoje, de manhãzinha, este velhote meio careca, ralos cabelos brancos na cabeça, já bastante carcomido pelo peso de seus 78 anos e pelas batalhas da vida, confessa francamente, de público, que chorou.
Estava dando uma arrumadela em seus livros, na estante, e encontrou ali, meio espremido entre grossos livros de Teologia, um pequeno volume intitulado "Um olhar sobre a cidade", de autoria do saudoso e inesquecível Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, falecido no dia 28 de agosto de 1999.
O velhote chorou, confessa mais uma vez, porque encontrou na primeira página do livro esta dedicatória:
- "Para o pão duro, munheca e boco-moco do meu irmão, esta oferta grátis para que 1979 marque para Você uma maior abertura de si mesmo. Darcy, janeiro de 1979."
Darcy. Minha irmã. Aquela que, procurando mais vida numa mesa de cirurgia plástica, na vida encontrou a morte, ao lado da Raquel, minha filha que, lutando contra a morte num leito de hospital, na morte encontrou a Vida Eterna.
Pois é, ambas, meus dois amores: Darcy, minha irmã. Raquel, minha filha.
Folheando o belo livro de Dom Hélder, encontrei lá nas últimas páginas um poema de Cecília Meireles, com o sugestivo título de "O Último Andar".
Poeta, poetisa. Qual dos mortais seria tão insensível que não amasse estes seres tão misteriosos, quase etéreos, quase anjos, que com suas palavras conseguem nos arrancar das baixadas deste mundo e conduzir-nos para as sublimes alturas da fantasia, da parábola, da beleza, através de seus versos?
E tanto é verdade, que me atrevo a transcrever aqui os versos maravilhosos de Cecília Meireles, que também fizeram o velhote chorar de manhãzinha:
O último andar
No último andar é mais bonito
Do último andar se vê o mar
É lá que eu quero morar
O último andar é muito longe
- custa-me muito a chegar -
Mas é lá que eu quero morar
Todo o céu fica a noite inteira
Sobre e último andar
É lá que eu quero morar
Quando faz lua
No terraço fica todo o luar
É lá que eu quero morar
Os passarinhos lá se escondem
Prá ninguém os maltratar
No último andar
De lá se avista o mundo inteiro
Tudo parece perto, no ar
É lá que eu quero morar
O velhote chorou de manhãzinha porque, relendo o poema de Cecília Meireles, lembrou-se da Raquel, sua filha querida que "flechou verticalmente o céu em busca do infinito". E este infinito, novo nome para o "Último Andar", é ali que se tornou definitivamente a morada eterna da Darcy e da Raquel, ambas os meus dois amores.
Ambas no último andar.
Será vaidade querer morar no último andar, onde ambas hoje moram? Se de lá se vê o mar, se a noite inteira todo o céu fica sobre o último andar, se de lá se avista o mundo inteiro - como não querer ir para o último andar? Sobretudo se é lá, no último andar, que os passarinhos se escondem para ninguém os maltratar, como pode ainda haver dúvida, quanto a meus dois amores quererem morar no último andar?
Há muita gente que não gosta de falar em morte. O velhote, que chorou de manhãzinha, também não gostava de falar em morte, pois o falar ou o lembrar da morte o fazem chorar.
E tem duas fortes razões para isso: a Darcy, sua irmã, e a Raquel, sua filha.
Cumpriram ambas uma missão cá na Terra, que lhes fora confiada pelo Pai. Ele, ao fazê-las participar da Sua própria natureza divina, deu-lhes, como a todos os seres humanos, a missão de dominar a Natureza e completar a obra da Criação.
Homens e mulheres, na sua vida mortal, foram fiéis a essa missão, que consideraram como a mais apaixonante que lhes foi dada pelo Criador: a de agir como cocriadores com o Criador, de lutar como colibertadores deste mundo com o também Libertador.
Para os meus dois amores - a Darcy e a Raquel - como o foi para os Santos, a Morte não lhes apareceu como um horrendo esqueleto com uma foice nas mãos. Elas, como os Santos, não tiveram medo de morrer. Se morrer, para elas é ressuscitar, sei que elas nunca falaram em morrer. Quando fosse o caso, elas falavam em "ressurreição na morte", ou então preferiam falar em "partir".
E no seguimento de São Francisco de Assis, uma, que procurava mais vida, e procurando mais vida se deparou com a morte; - a outra, que lutava contra a morte, e lutando contra a morte encontrou a Vida Eterna - saíram ambas vitoriosas, porque saudaram a Morte como uma irmã querida, que veio para levá-las para a Casa da Vida Eterna.
Para o Último Andar!
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Descanse em paz, minha filha querida, na Casa do Pai de todos os pais!...
Seu pai.
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