Para mim, isto é algo de insofismável:
Na Arte de todos os tempos, a mulher está presente. A alma do artista sempre peregrinou com sede à procura de um tipo ideal de mulher, uma mulher de verdade, que pudesse cativar de vez o coração do homem.
É verdade que os antigos gregos e romanos tinham lá no Olimpo as mais belas mulheres que é possível imaginar. Mas Vênus era volúvel e impudica. Minerva, soberba e belicosa. Diana era virgem, sim, mas sua virgindade não passava de traiçoeiro laço para os incautos. O pastor Endimião, da lenda, que o diga.
E os artistas, apesar da arte grega e romana parecer mostrar o contrário, ainda peregrinavam em busca da mulher ideal.
Foi então que uma estrela misteriosa surgiu nos céus do oriente. E daí, bem cedo, logo ao amanhecer do Cristianismo, madrugou também a arte marial:
Nenhum artista,
Nem o doce Virgílio, nem Horácio,
Nenhum cantor do Lácio
Jamais sonhara essa doce visão:
Maria!
Na penumbra das catacumbas, nas iluminuras e afrescos sombrios da Idade Média, na inspiração suprema da iconografia bizantina, ou nas preces talhadas em pedra, das agulhas góticas das imensas catedrais européias, Ela esteve presente.
Em Giotto, em Boticelli, em Fra Angélico, nos pincéis vigorosos de Michelângelo. Foi a alma de mãos postas, a Virgem Gótica das catedrais. Viveu a vida de cada dia nos quadros de Cellini, Van Dick e Rafael. É uma alma tremulante na "Pietá". Uma floração radiosa de vida nas "Madonas" de Leonardo. Mas é nas "Virgens" de Picasso que Ela ressumbra serenidade com maior vigor. Também no feitio de paz e simplicidade que Portinari Lhe dá nos seus painéis. Aliás, até parece que a Arte estilizada não A deixa tocar no chão. Ela fica mais leve. Menos terra.
É que o artista trabalha com o espírito!
Foi para contemplá-La que subi à montanha de que fala a lenda. Subi e contemplei. Vi os monumentos que Lhe plantaram os homens. As madonas untadas de serenidade. As virgens. Quantas, meu Deus do Céu! E eram lindas demais para não ser Ela mesma, ou então, sonhos reais de apaixonados artistas!
Depois, veio uma plêiade de poetas. Li e interpretei a todos. Uns me fizeram lembrá-La com amor. Com outros, fui indiscreto, indelicado, empurrei-os, coloquei-lhes de lado as páginas mal escritas, antipáticas, cheias de emendas e rasuras. É que se tratava dEla, e Ela merece o melhor.
Continuei, fiz-me analista de almas. Queria dissecar todos os olhos que derramaram lágrimas diante dEla. Os lábios que Lhe rezaram num sorriso ou na dor. Não me esqueci nem mesmo de bisbilhotar nas poucas linhas em que os Evangelhos contam avaramente a Sua história!...
Como seria a Mulher?
No princípio era o Verbo, e o Verbo era Artista.
Mas o Artista é anterior a tudo quanto os homens chamam de Arte. A Mãe, que O há de gerar, precisa estar a Seu gosto: para Ele, a perfeição está na simplicidade. Aliás, identifica-se com ela. Sua Mãe, portanto, há de ser simples. Simples para independer sempre de todas as formas de Arte que os homens puserem a Seu serviço através dos séculos. Pois não é verdade que todas as gerações A chamarão bem-aventurada?
Paradoxalmente, porém, a Mulher há de ser um ponto de convergência e de busca. Luz quente, capaz de germinação. Simplicidade não quer dizer carência.
A Virgem será cheia de Graça, já predissera o Anjo.
Toda essa gente que se diz Seus filhos, que escreveu e falou dEla, daria para formar uma grande cidade, aproveitando, para começar, os versos de Anchieta a Ela dedicados e escritos nas areias da praia. Começar por aí e não parar mais.
Se quisermos ser indiscretos, poderíamos entrar, por exemplo, na pobreza da cela do frade Monte Alverne. Sem licença mesmo. E se ele fosse tão orgulhoso como muitos historiadores bissextos o pintam, não entraríamos lá, nem o Papa se lembraria dele como, dos brasileiros, o defensor mais vigilante do dogma da Imaculada!
E, como este, são milhares os que a Graça pôs agarrados à saia materna, que amaram e quiseram provar em versos os seus sentimentos.
Muitos outros há, porém, que não são filhos. Ou melhor, são mais filhos que os outros - são os poetas rebeldes. Se alguém encetasse a viagem para encontrá-los, garanto, levaria uma surpresa em cada canto do caminho.
Um, em meio a tanto verso blasfemo, na languidez do desespero, onde "o pecado é belo, a violência é bela, tudo o que afirma a vida é belo", faz brotar de seu lirismo uma luz desconcertante. É Antero de Quental:
Num sonho todo feito de incertezas,
De noturna e indizível ansiedade,
É que eu vi Teu olhar de piedade,
E mais que piedade, de tristeza.
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa
E deixa-me sonhar a vida inteira!
Noutra curva da estrada está sentado o Eça de Queirós, ele e sua angústia, apesar de não ser poeta de profissão, mas simplesmente bissexto:
Eu me enojei tanto de imundícies
Que Ela se enojaria, eu sei, de minha prece...
O brasileiro Humberto de Campos, numa curva mais além, não cessa de clamar aos viandantes:
Diante dessa Mulher ideal eu me ajoelho,
Mas falta-me o alento de rezar.
Ela me parece bela demais para eu crer,
Crer em Sua realidade.
Não vamos muito longe. Aquele cavalheiro de nome berrantemente italiano, mas um poeta dos mais brasileiros, o Menotti del Picchia, amigo do "Juca Mulato" sensual, ele também encontrou um dia
A Matriz geradora da vida e da santidade,
O altar onde a humanidade
Adora o quotidiano milagre do Verbo.
Ele também acreditou que existe uma mulher mais mulher do que a sua Dulcinéia. Há de ser sempre assim. Hoje mais ainda. Entre a Religião Católica e a nossa Literatura houve um grande desentendimento. Porque a Literatura Brasileira nasceu justamente quando o Materialismo, a Enciclopédia e o Iluminismo de Voltaire mandavam no mundo. E os escritores e poetas tinham vergonha de pronunciar o santo nome de Deus.
O intelectual só teria possibilidade de encontrar no Cristo a verdade, quando a primeira grande guerra mundial desmascarasse a "Razão" divinizada, fazendo-o descrer da técnica e do progresso. Assim foi. E os ateus e materialistas, que tinham o monopólio da literatura mundial, encontraram o seu "caminho de Damasco": Chesterton, Belloc e Graham Greene, na Inglaterra; Gertrud von Le Fort, na Alemanha; Papini, na Itália; Claudel, Pèguy, Léon Bloy, Psichari, na França; Thomas Merton, nos Estados Unidos.
No Brasil, a fermentação espiritual começou com uma reação ao que era caduco, entrevado, como o academicismo, o formalismo, o parnasianismo estéril, o marasmo. Uma rebelião chamada modernista. Uma busca insofismável de autenticidade. Jovens que deixaram os discursos acadêmicos, para escreverem programas de vida.
Jackson de Figueiredo, sob a direção do Cardeal Leme e do Padre Leonel Franca, converte Alceu de Amoroso Lima, o famoso Tristão de Athayde que, convertido, se faz líder de toda uma geração. Outro, Gustavo Corção, no Centro Dom Vital e na imprensa, foi uma pena ferina e demolidora de ídolos que pretendiam subverter sua querida Igreja Católica...
Deixo de lado dezenas e dezenas de outros, para não me alongar mais. Lembro apenas que, daí então, em nossa Literatura, a simplicidade e a autenticidade se tornaram possíveis. Porque as coisas de Deus encontraram seu lugar na Prosa e na Poesia.
Rodrigues de Abreu, por exemplo, um poeta sofredor, confessa francamente, sem respeito humano, que é católico praticante, com a mesma simplicidade com que diz ser tísico e que se acha em tratamento.
Há o caso curioso de insatisfação espiritual com Jorge de Lima. Rei na poesia parnasiana, regionalista glorioso com a sua "Nêga Fulô", abandona tudo. Esse homem que cantou a sensualidade negra, e que era ele próprio um mulato sensual, nos seus últimos dias não escrevia mais poemas: compunha orações. Simples, humilde na aceitação de seu dom poético, assim como foi humilde a Virgem diante do Anjo e da aceitação do Verbo.
Tasso da Silveira, modernista, com raiva do Capitalismo e dos católicos medíocres, foi um cristão, e dos bons. E gostava mais ainda da Mãe:
"...gosto de Ti, Senhora,
Porque em Tua presença
Posso andar descalço,
Sentar-me de qualquer modo
E dizer o que sinto..."
Depois de tudo isto, talvez saibamos um pouco mais das coisas de nossa Literatura. Como também do que é Poesia. E creio que a Virgem também deve ter lucrado alguma coisa.
Poeta, não é quem sabe tamborilar com os dedos sobre um dicionário de rimas. Alinhar meia dúzia de palavras, colocar tudo em fila, rimar, e pronto. Poesia não é isso.
O poeta, o Poeta de fato, é esquivo, não gosta de muito circunlóquio, diz muito em poucas palavras, enquanto os outros, os pseudopoetas, dirão menos em palavras demais. E os que condenam a Poesia, por ela frequentemente desprezar a gramática, rir-se da sintaxe e ludibriar a regência verbal e nominal, esses, não são nem ao menos matriculados nos "cursinhos" da Arte.
Ignoram que o Poeta tem duas infâncias, e que a Poesia não pode ser produto enlatado, produzida em série, nem obra de cenáculos. A Poesia é gerada na simplicidade, na solidão. Somente no silêncio e no recato é que se encontra tempo para ser simples, para encontrar a perfeição que Deus goteja em cada ser que criou sobre a Terra.
O Poeta autêntico, essa espécie de homem ou mulher ideal que eu invejo, esse "filósofo intuitivo", como o chamou Sertillanges, saberá sempre ver o que Deus ama. E entre os amores de Deus, a Virgem nunca Lhe será despercebida.
Se a Poesia seguir este rumo, a Senhora há de purificá-la sempre mais, divinizá-la com a Sua simplicidade, transfigurá-la com a Sua pureza.
E se o Poeta é forçosamente alguém que conservou por longo tempo o estado de inocência infantil, transformando-o em estado de inocência poética, certamente Ela, a Virgem, a Senhora, receberá com prazer e alegria a infância que o Poeta traz na sua alma.
Assim, ele poderá derramar aos pés da Virgem a riqueza íntima que só ele, Poeta, pode possuir, em confidências de candura, em eclosões espirituais de quem vê a Luz, em colóquios de beleza e suavidade, somente possíveis entre o filho extremoso e a Virgem-Mãe amada!